10 de junho de 2025

Gnose, o sobrenome da rosa


Maldito o homem que confia no homem. (Jeremias 17:5)

Positivistas vs. herméticos (ou racionalistas panteístas vs. místicos gnósticos, ou ockhamistas vs. echartianos)

A Idade Média assistiu, em sua agonia, a um grande debate filosófico religioso. Perdido o equilíbrio do tomismo, o homem medieval caiu em dois extremos opostos. De um lado, estavam os humanistas racionalistas de tendência panteísta cuja figura símbolo foi Frei Guilherme de Ockham, um Édipo moderno. Tais humanistas cultuavam o Homem como supremo valor e medida de um universo divino. Queriam destruir a sociedade medieval teocêntrica e estabelecer uma nova cosmovisão antropocêntrica. Julgavam que, graças à ciência e à técnica, o homem seria capaz de vencer todas as misérias do mundo, até criar uma era de grande prosperidade material e de completa felicidade natural. Eles punham essa esperança no Homem, redentor de si mesmo, construtor da Utopia. Do lado oposto, situavam-se os místicos de tendências gnósticas, cuja figura mais característica foi, nessa época, Mestre Eckhart. Esses místicos tinham uma visão extremamente pessimista da realidade. Para eles, o mundo era intrinsecamente mau e irredimível por ser obra de um deus perverso, distinto da Divindade. Entre a Divindade boa e o mundo, haveria um abismo absoluto. Se a Divindade era o Ser, o mundo criado seria o Nada. Se o mundo das criaturas era formado por seres, então a Divindade era o Nada absoluto.

Para estes místicos, a razão humana era má e só seria desejável perder-se no Nada divino. O demiurgo, criador mau, dotara o homem de razão para que esta o enganasse, apresentando-lhe o mundo como inteligível e, portanto, como bom. A ciência e a técnica eram ilusórias. A redenção seria obtida por uma fuga mágica do mundo real. A saída não estava numa Utopia futura, e sim na volta ao Paraíso original. O homem não deveria pretender construir um Reino neste mundo; pelo contrário, o Reino deveria ser o fruto do retorno ao passado primevo. ao Éden original adâmico, o que só se poderia obter por uma irrupção divina na História, nunca por força do intelecto.

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Ser unívoco, equívoco e análogo

Com efeito, diante do ser, o espírito humano pode adotar três posturas:

1 - Considerar que o ser é unívoco. Quando tal ocorre, o homem cai no panteísmo, visto que, então, tanto uma pedra quanto deus são igualmente seres. É a posição de Parmênides, na filosofia antiga. Desta postura decorria a adoração do universo e o desprezo do indivíduo. Tudo seria Deus. No mundo moderno, essa tendência panteísta, fruto de uma visão unívoca e igualitária do ser, conduziu à adoração do Homem e da Razão, último estágio da evolução. O cientificismo materialista e racionalista do mundo atual tem aí suas raízes que historicamente principiaram com o nominalismo de Ockham.

2 - Considerar o ser como equívoco. Em consequência. afirma-se que o universo não tem nenhuma relação com o Ser de Deus. Ora, como ensina São Paulo na Epístola aos Romanos (1,20), “as perfeições invisíveis de Deus tornaram-se visíveis, depois da criação do mundo, e podem ser compreendidas por meio das coisas criadas”. Afirmar que o ser é equivoco é negar qualquer possibilidade de compreender algo de Deus através das criaturas. Desemboca-se então no deísmo e. depois, no ateísmo.

Aprofundando-se essa segunda tendência, pode-se chegar a afirmar que os seres criados são tão dissemelhantes da Divindade que se poderia dizer que são contrários a Ela. Quando tal ocorre. o homem cai na Gnose. Esta considera que o universo é essencialmente mau por aprisionar as partículas da Divindade na matéria. nas malhas da Lógica e nas cadeias da Moral. Tais partículas eram chamadas de Fünkenlein por Mestre Eckhart, de Atmans pelos Brâmanes, de Éons pelos gnósticos dos primeiros séculos do cristianismo.

O Deus criador do universo seria o demiurgo mau. Ele teria dado a razão ao homem para que esta o enganasse. Compreendendo o mundo, o homem julgá-lo-ia bom, porque inteligível. O homem quereria, por isso, permanecer neste mundo, e não desejaria retomar à Divindade da qual procedera. A libertação das partículas divinas aprisionadas na matéria exigiria a renúncia à razão, além da destruição da materialidade e da violação de todas as leis morais estabelecidas pelo Deus criador do universo. No extremo, desejar-se-ia a destruição de todo ser, de toda existência. A Gnose é antimetafísica. Dessa posição antirracional participam muitos e importantes movimentos do mundo atual. Delas o nazismo irracional e antimetafísico é o exemplo mais trágico e mais criminoso. Na chamada "Civilização Moderna", as nascentes deste rio gnóstico se encontram em Mestre Eckhart.

3 - Considerar o ser como análogo. Isto significa que as criaturas do universo são seres, mas não do mesmo modo como Deus é Ser. Nas criaturas, pode haver vestígio, imagem ou semelhança de Deus. Nas coisas materiais e irracionais, há apenas vestígio de Deus pela ordem e bondade de seu ser; nos seres racionais e espirituais, há imagem de Deus, porque, como o Criador, esses seres têm inteligência e vontade; neles, ainda, pode haver semelhança, caso sejam obedientes à lei divina que os faz santos como Deus. Tal é a explanação de São Boaventura.

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O mundo para os gnósticos

Hugo de S. Victor e São Boaventura falam do mundo como poema. São Boaventura ensina que Deus escreveu dois livros: o primeiro foi o mundo; o segundo, a Bíblia. O mundo seria um livro porque Deus, ao criar cada coisa, dizia uma palavra. "Faça-se a luz", disse Deus, e a luz passou a existir. Assim, cada ser criado corresponde a uma palavra de Deus, e o mundo é, então, um conjunto de palavras divinas encarnadas na matéria. Ora, um conjunto tão grande de palavras forma um livro, e o Universo é, portanto, um belíssimo poema.

A diferença entre os pensadores católicos e os gnósticos a respeito do mundo está em que, para os gnósticos, o mundo oculta labirinticamente a verdade e oferece mentiras enganadoras, enquanto para os católicos, o mundo é um livro legível e facilmente inteligível. Para a Gnose, o mundo é um livro labirinto enganador, concebido pela mente malvada e mentirosa do demiurgo. Para o católico, o mundo não só fala, mas proclama e canta um hino à glória de Deus. E só não ouve esse cântico, só não compreende esse poema, quem não tem l'occhio chiaro e l'afetto puro, como diz Dante.

A questão dos universais

Desde a Grécia antiga até o fim da Idade Média, o problema dos universais suscitou veementes polêmicas. Como se sabe, universais são conceitos que podem ser aplicados a todos os indivíduos de uma mesma espécie. Por exemplo, o conceito de rosa engloba todas as rosas existentes. ou que possam existir, em qualquer tempo.

O que se tem discutido é em que sentido, ou como existem os universais. Com relação a isso. formaram-se três correntes mais importantes:

a) o realismo;

b) o realismo moderado;

c) o nominalismo.

Em O Nome do Rosa quase não se fala da posição do realismo moderado. que é a posição tomista assumida pela Igreja, face à questão dos universais. No tempo em que ocorreram os fatos na abadia do romance de Eco, as posições filosóficas mais em voga, e que se digladiavam em todas as universidades e mosteiros, eram a posição platonizante, do realismo, e a do nominalismo. O realismo de tom platônico era defendido pelos místicos gnosticizantes seguidores de Mestre Eckhart. O nominalismo era partilhado pelos franciscanos seguidores de Guilherme de Ockham e por todos aqueles que tendiam para posições empiristas, racionalistas e panteístas.

Eco apresenta o debate dos universais como se houvesse apenas essas duas correntes (a mística e a racionalista) debatendo a questão dos universais. Os tomistas nem aparecem. Eco leva o leitor comum a julgar que a posição mística e gnóstica é a da Igreja Católica, o que é uma falsificação histórica.

Para que o leitor tenha ideia do que se debatia e do que se trata em O nome da Rosa, a respeito dos universais, faremos uma breve exposição dessa questão filosófica, procurando salientar a que consequências levava cada uma das soluções aventadas.

a) A doutrina do realismo filosófico sobre os universais

Para Platão e para seus seguidores, os universais teriam existência real fora da mente, no mundo superior das ideias. Esse mundo das ideias seria perfeito, divino e inteiramente desprovido de matéria. Em nosso mundo, a forma ou ideia de um ente - comum a todos os exemplares individuais de sua espécie - estaria atualmente aprisionada nos seres materiais individuais.

Explicavam os platonizantes que a ideia de rosa - o universal rosa - é uma só para todas as rosas individuais. Essa ideia não é só única e universal, como também é absolutamente perfeita, visto que os defeitos possíveis de uma rosa existem somente na matéria. É apenas a rosa concreta que murcha, é danificada ou morre. O conceito universal jamais se deteriora, envelhece. murcha ou morre. O universal é perfeito e imutável. A ideia universal goza então de uma perfeição tal que os platónicos a consideravam divina. Enquanto a rosa individual. concreta, material fenece e perece, o universal rosa permanece para sempre o mesmo, perfeito e imutável.

Concluíam disto os filósofos de tendência platônica, que a matéria era a fonte de todas as imperfeições e de todo o mal. Era na matéria, causa da individuação, que estava a origem do mal. Estar neste mundo material era ter as ideias divinas aprisionadas no cárcere da matéria. Só com a libertação da matéria é que seria possível fazer as ideias universais divinas retornarem ao pleroma divino de onde tinham caído.

Essa visão platônica era gnosticizante, como bem o demonstrou Simone de Pètrement.

Para os gnósticos, há uma oposição radical entre espírito e matéria. O espírito é divino. A matéria, produzida pelo demiurgo, é sempre má. Na constituição dos seres a forma ideal é, pois, divina, enquanto a matéria é seu cárcere maléfico. Como a matéria é a causa da individuação, para o gnóstico ser indivíduo ou pessoa é um mal. O bem está na absorção ou perda de todo eu no Todo divino, que coincide dialeticamente com o Nada absoluto.

Essa posição de divinização do universal e condenação de todo ser individual foi defendida por Mestre Eckhart e por todos os sectários gnósticos do fim da Idade Média, entre os quais os Irmãos do Livre Espírito. Não queremos dizer que todos os filósofos que defenderam o realismo, em qualquer tempo, tenham sido, de fato, gnósticos. Queremos dizer, isto sim, que o realismo, levado às suas últimas consequências, chega à Gnose.

A escolástica admitia a parcela de verdade em que Platão se fundara para cair nesse erro. Com efeito, as essências criadas por Deus existiram primeiramente na Inteligência ou Verbo de Deus como ideias exemplares. Assim como um artista primeiro tem ideia do que vai esculpir, e, depois, esculpe o que ideou, assim também a Sabedoria de Deus concebeu o que ia criar. Por isso, Deus, ao criar, dizia antes uma palavra. Por isso também se lê em São João que “tudo foi feito pelo Verbo e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3).

b) O nominalismo

No final da Idade Média, surgiu uma corrente de pensamento diametralmente oposta ao realismo platônico. Roscelin e, um tanto, Abelardo tinham-na preparado, mas ela só tomou todo o seu maior desenvolvimento com a filosofia de Guilherme de Ockham, retratado por Eco na figura de Frei Guilherme de Baskerville.

Para o nominalismo, os universais são meros nomes. Nenhuma realidade corresponderia a um conceito universal, que só existiria na mente. Os universais não se realizariam de modo algum nas coisas. São apenas obras do espírito que as palavras exprimem. Assim, “rosa” é apenas um nome. O nome “rosa” é um mero flatus vocis. A única realidade é a rosa individual, diferente de todas as demais rosas existentes.

Ockham baseou-se nas ideias de Petrus Hispanus, expostas no livro De supositionibus. Suposição é a posição que um termo ocupa numa frase, no lugar de outras coisas, diz Ockham. Podemos distinguir três tipos de suposição:

1 - Suposição material existe quando o termo empregado numa frase designa apenas a própria palavra usada. Na frase: “a rosa é uma palavra de quatro letras”, a palavra rosa é tomada em si mesma, como termo escrito ou falado.

2 - Suposição pessoal existe quando o termo usado numa frase designa um ente individual concreto e determinado. Por exemplo, na sentença: “a rosa está se abrindo”, o termo rosa está no lugar de uma determinada rosa individual concreta, à qual se faz referência.

3 - Suposição simples ocorre quando o termo utilizado designa, não um ser individual concreto, mas o conceito universal de um ser. É o que acontece com o termo rosa, na frase: “a rosa é uma flor”.

Conforme essa teoria, a palavra rosa, como universal, indica apenas um conceito mental, que não existe, de fato, na realidade. Não existindo os universais, o homem só poderia conhecer as rosas individuais, e, o que se conhece de uma rosa não pode ser aplicado a nenhuma outra rosa.

Como já ensinara Abelardo, no século XII, Ockham dizia que só o conhecimento do singular é verdadeiro, pois o homem tem dele um conhecimento intuitivo, direto. Assim, só o particular seria real. A essência equivaleria à existência.

Daí se concluía que o verdadeiro conhecimento não pode ser teórico, e sim prático e experimental. É desses pensamentos que vai nascer o experimentalismo, e o cientificismo do mundo moderno.

Isto, a longo termo, acaba por negar não só a existência das essências e dos universais, como também o valor de qualquer conhecimento teórico racional, pois “é extremamente difícil para uma tal doutrina explicar, a partir desses blocos individuais, sem nada em comum, como o pensamento pode formar as noções de gêneros e espécies”, como diz Etienne Gilson.

[...]

Assim, a negação das essências e dos universais reduzia o ockhamismo a um empirismo e a um experimentalismo radicais que comprometiam toda noção de relação.

Isto conduz ao problema da causalidade, pois entre uma causa e um efeito o que existe é uma relação. A relação é um acidente que não está num ser concreto, não é propriamente um ens in allio [ente em outro]. Ela está “entre” os seres que se relacionam. Para Ockham, que só aceitava o individual concreto, a relação não tinha nenhuma realidade, a não ser a dos termos. Por isso ele negava a relação de causa e efeito. Argumentava dizendo que a relação de causa e efeito não pode ser anterior ao efeito, já que a relação supõe a existência dos dois termos; nem podia ser simultânea, porque o efeito é consequência dela; nem podia ser posterior, pois que seria preciso dizer então que ela se produz a si mesma. O único meio de provar que uma coisa é causa de outra seria, portanto, a experiência, raciocinando com a presença ou com a ausência da causa e do efeito.

[...]

Ockham em sua obra Centiloquium, declara que a própria existência de Deus não pode ser provada. A existência de Deus, assim como sua unicidade, sua infinitude, sua onisciência, seriam questões às quais se deveria dar apenas uma adesão de fé. Desse modo, Ockham cai no fideísmo, retirando à sua teologia qualquer apoio racional.

[...]

Também a existência da alma racional no homem só poderia ser aceita pela fé, pois a razão não conseguiria prová-la. Por onde, o ceticismo de Ockham raia pelo materialismo.

A ordem do mundo, como toda ordem, consiste em uma relação entre seus elementos componentes. Ora, negando a existência real das relações, Ockham não poderia aceitar a existência de ordem no mundo e muito menos que esta ordem tivesse fundamento na própria natureza de Deus que fez o universo à sua imagem e semelhança. Para Ockham, a suposta ordem posta por Deus no mundo - se existe - é completamente arbitrária. Deus poderia ter feito o universo em qualquer outra disposição. Noutras palavras, não haveria fundamento racional objetivo para a ordem do universo.

Em consequência, a ordem moral também não era considerada objetiva. Uma ação seria pecaminosa apenas porque Deus a proibira, nada havendo nela de objetivamente mau. Se Deus tivesse ordenado o pecado, ele seria bom. A ordem moral, portanto, poderia ser totalmente invertida pelo arbítrio divino. Mais ainda. Até mesmo sob a ordem moral atual, Deus poderia ordenar a alguém que a violasse, sendo então tal ato virtuoso. O livre querer de Deus seria tão absoluto que poderia inverter a ordem moral. Esse livre querer de Deus não se fundamentaria na essência divina e, por isso, não teria nenhuma objetividade.

Desse relativismo moral os ockhamistas logo deduziram a negação de toda ordem moral, tendo alguns chegados a dizer que a lei de Deus era a única causa do pecado. [Aí admitiam então haver causa...] Outros defenderam o mais radical antinomismo, muito semelhante ao da Cabala e ao das seitas gnósticas.

c) O realismo moderado

A terceira posição da filosofia medieval face à questão dos universais é a do realismo moderado, defendida por Santo Tomás e adotada pela Igreja.

O universal nem é um mero nome, como afirmavam os nominalistas, nem tem existência num mundo imaterial de puras ideias, como diziam os platônicos e como queriam os gnósticos.

Para os defensores do realismo moderado - em particular para Santo Tomás – é preciso distinguir, no espírito humano dois universais, conforme o aspecto sob o qual se considera o universal:

1 - Universal direto, ou seja, um tipo de ser atribuído de modo unívoco a muitos seres individuais. Este universal direto é obtido pela abstração das notas individuais de cada ser concreto. O universal então acrescenta, à ideia do tipo de ser que ele expressa, um estado de abstração e de não individuação, de universalidade. É o universale post rem [universal após a coisa], existente em nossa mente por abstração.

2 - Universal reflexo que tem esse nome porque só é percebido por nossa inteligência após a comparação entre o universal direto, que havíamos concebido, com as coisas em que o aplicamos e nas quais ele se realiza de modo mais ou menos perfeito. A esse universal reflexo se dá também o nome de universal formal.

O universal direto se acha nas coisas quanto ao que ele expressa, não quanto ao modo com que o expressa.

Em cada ser concreto, há o indivíduo único, identificado por suas notas particulares individualizantes, numa essência que permite que se manifestem nele todas as atividades existentes em todos os seres de sua espécie. É esta essência que é objeto de nosso espírito sob a forma de uma mesma ideia, aplicável a todos os indivíduos da mesma espécie, e que exprime o que eles são, independentemente de suas notas individualizantes.

Desse modo, podemos considerar uma essência de três modos diversos: (a) em si mesma, com suas notas constitutivas, tal como ela existe na mente divina, corno ideia exemplar, eterna em Deus. É o universale ante rem [universal antes da coisa], isto é, o universal que Deus concebeu antes de criar uma coisa. É a este universale ante rem que Platão deu existência no mundo das ideias, como seres divinos, fora da Sabedoria de Deus. (b) a essência enquanto existente em um indivíduo qualquer em estado concreto é o universale in re [universal na coisa]. (c) a essência enquanto concebida em nosso espírito, abstrata e universa. É o universale post rem.

O universal direto (universale post rem) tem existência real em nossas mentes, enquanto conceito abstrato, e existe nas coisas concretas, enquanto forma substancial (universale in re). Por essa razão, nos é possível conhecer o que as coisas são. Tendo o homem a ideia universal “rosa” em sua mente, ao ver uma rosa real, ele pode conhecer que o conceito de rosa, existente em sua mente, existe também, formalmente na rosa concreta, individual.

O universal reflexo não se encontra realizado nem sequer nas coisas enquanto o que ele expressa, pois ele é um simples ser de razão, que tem, entretanto, fundamento nos seres individuais reais, isto é, a sua semelhança, que permite a nosso espírito agrupar seres individuais em uma mesma espécie.

Esta, em termos breves, a teoria do realismo moderado, que evita quer o materialismo, a que conduz o nominalismo, quer a Gnose, termo final do erro do realismo.

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O impulso psicológico básico da gnose e do panteísmo

Qual é essa raiz comum da qual brotam os sonhos racionalistas de construir a Utopia e os delírios irracionais da magia alquímica para vencer a morte e todos os males que afligem o homem? Essa raiz é a inconformidade com as limitações do ser humano, e particularmente com as penas que o punem. O panteísta racionalista e o gnóstico irracionalista desejam desesperadamente redimir o homem por seu próprio esforço, usando de meios naturais. Esse desejo impotente e desesperado os faz odiar a realidade tal qual ela é. Os faz odiar também o Criador e a criação feita à sua imagem e semelhança. É no ódio a Deus criador e ordenador que a Gnose alógica e o panteísmo racionalista comungam e dialeticamente se identificam. O panteísmo racionalista quer construir a Utopia. A Gnose quer a realização mágica do Milênio.

Fonte: Orlando Fedeli, Nos labirintos de Eco, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil, 2023, trechos selecionados.