25 de abril de 2025

Vinte anos de blog e algumas breves reflexões


Quer comais quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus. (1 Coríntios 10:31)

Porque vale mais um dia nos teus átrios do que mil. (Salmos 84:10)

Hoje este blog completa 20 anos e pensei que seria um bom momento para refletir a respeito da noção de progresso intelectual e, de quebra, cumprir, com imenso atraso, a promessa do post inaugural e tecer alguns comentários sobre o livro que inspirou seu nome.

Em uma recente entrevista, o médico e escritor Drauzio Varella see fez uma pergunta retórica: o que seria dele se não tivesse aprendido o que aprendeu nos livros e estudos ao longo de seus 81 anos? O quanto sua consciência estaria limitada a uma visão adolescente do mundo? De quais experiências e vivências estaria ele privado não fosse a abertura e a riqueza que a vida intelectual lhe proporcionou? Que aventura mesquinha e medíocre teria sido sua vida se seu espírito não tivesse sido tocado pelo conhecimento?

Progredir intelectualmente não é acumular ideias e fatos filosóficos e científicos. Isso não é intelectualidade, mas erudição. É verdade que a erudição é em grande medida necessária para o desenvolvimento da vida intelectual, mas não deve ser confundida com ela. O intelecto se desenvolve quando ele se adequa às verdades que descobre. É como se o intelecto se moldasse às, ou mesmo se tornasse as, verdades que vai descobrindo ao longo do tempo e, assim, adquirindo a “forma” da própria verdade. Intelecto não é “cognição”, mas a parte mais elevada do composto humano, ou seja, aquilo que temos de mais propriamente humano. Por exemplo, posso saber tudo sobre as formas a priori de Kant, ou seja, posso saber explicá-las de memória com grande destreza e precisão, mas se elas não correspondem ao real então não se trata de uma expressão de minha vida contemplativa, mas mera expressão de meu nível cultural.

E que importância tem isso? Toda. Se levarmos a sério as palavras de Cristo de que ele é a Verdade, e que naturalmente toda verdade criada participa da Verdade incriada, ou seja, do próprio Cristo, então não é difícil concluir que vida intelectual também é vida espiritual. Ao contrário do que se poderia imaginar, o aperfeiçoamento do intelecto (noûs) é o aperfeiçoamento do espírito humano por definição. E o aperfeiçoamento do espírito humano implica por conseguinte no aperfeiçoamento do caráter.

Acho cabível aqui mencionar precisamente um dos erros crassos deste grande expoente da teologia da Igreja Ortodoxa, o Pe. John Romanides. Pessoalmente o tenho com grande admiração e carinho porque foi com ele, além do Pe. Seraphim Rose, que aprendi grande parte do que sei sobre Jesus Cristo, os santos e a Igreja. No entanto, embora tenha acertado na mosca ao denunciar a religião como uma doença espiritual – o que, aliás, se aplica à própria religião cristã ortodoxa e sua mecânica litúrgico-sacramental –, o Pe. Romanides procurou alçar a Ortodoxia à pura espiritualidade do tipo monástica, isto é, à tríade purificação/iluminação/glorificação. Este expediente, claro, encontra enorme respaldo na experiência acumulada por séculos de prática hesicasta, deividamente compilada na Filocalia, mas não deixa de portar um traço ideológico inaceitável: a ideia, repetida ad nauseam pelo Pe. Romandies e seus discípulos, de que não há absolutamente nenhuma relação entre criado e Incriado. Tal postura, claramente nominalista como o próprio Pe. Romanides cogita, não tem nada de tradicional ou “ortodoxa”, mas denota uma tentativa de blindar a Ortodoxia de qualquer mácula escolástica e estabelecer um limite claro, embora falso, entre ambos. É compreensível que a partir do século XX os ortodoxos tenham se visto obrigados a elaborar uma divisão transcultural entre teologia “ocidental” e “oriental” (a exemplo de Georges Florovsky e Vladimir Lossky), mas o resultado não foi apenas inconveniente no sentido de criar um pretenso elitismo espiritual entre a Igreja oriental e as igrejas ocidentais, mas é algo simplesmente falso. A filosofia antiga, em especial Platão e Aristóteles, sempre foram para os Padres não apenas recursos indispensáveis para transmitir a Verdade revelada, mas elas mesmas, em si, são parte, embora inferior, claro, da própria Verdade. Neste sentido, os ortodoxos fariam bem em não temer, mas, pelo contrário, acolher seletivamente Tomás de Aquino e seus seguidores em geral. É o que temos procurado fazer aqui ultimamente, entre muitos outros objetivos. O Espírito, assim como o vento, sopra onde quer. Se Ele até aqui não quis soprar em mim isso não significa que eu deva fingir que estou investindo-me das energias divinas pela prática religiosa, mas devo, isso sim, como mendigo, buscá-Lo humildemente absorvendo o ser dos entes dados através de suas essências criadas. Se Deus não fez o cosmo com base em Si mesmo então o fez com base em quê? Sim, eu sei, a vida intelectual não leva à theoria, mas, como diz o povo,  é o que temos para hoje.

Esta breve digressão reforça o objetivo deste blog: servir de instrumento para a conservação e progressão da alma após a morte. Sem este objetivo em mente é impossível ordenar o restante de nossas vidas, por mais “sentido” que tentemos dar-lhe. Se aqui estudamos filosofia, psicologia, religião, esoterismo, história, cultura, o que quer que seja, a meta é uma só: enriquecer o noûs comungando-o com a Verdade. Se mulher, família, trabalho e estudos não estiverem orientados a este fim supremo então nada fará real sentido. O amor é o princípio de tudo, então todas as ações humanas têm de estar ordenadas ao Amor. Tente algo diferente e o resultado será depressão, melancolia, tristeza. Se a passagem para o mundo inteligível não lhe apetece, ouça ao menos os sinais que lhe dão seu próprio mundo sensível e, a partir daí, reflita e reaja.

E eis por que a obra do Pe. Sertillanges tem tanta importância. Não tanto pelos seus conselhos práticos, que podem ou não lhe ser úteis, mas pela ideia-força, verdadeiramente genial, de que longe dos homens somos mais homens. É na vida interior que tomamos contato com o ser das coisas, com o ser do mundo e, claro, com o ser humano, com a humanidade. É longe dos homens, ou seja, ali no interior de nosso ser, que estaremos mais com os homens. É ali, na vida noética, que encontraremos os bens a serem compartilhados em amor fraterno com os homens. Não se trata aqui de solidão propriamente, mas de recolhimento. Ao intelectual só a verdade interessa, e todo o resto deve a ela submeter-se.

Não é difícil deduzir, portanto, o que deve ser estudado primordialmente pelo intelectual. Se a ordem do espírito deve corresponder à ordem das coisas, e se há um Ser primeiro, é aí que o saber deve findar-se e é daí que deve extrair sua luz: metafísica, psicologia, cosmologia e moral, eis os assuntos sobre os quais o espírito deve aplicar-se porque a estrutura desses saberes corresponde à constituição do real e da inteligência. Todas as demais ciências dependerão das verdades colhidas nessas.

E eis aqui que entram em cena as virtudes necessárias para a vida intelectual. Trata-se, acima de tudo, da humildade. A inteligência tem por base a exclusão do orgulho porque o orgulho sente repulsa por uma ordem fora e acima dele. Ser intelectualmente forte implica, portanto, em ser receptivo, e ser receptivo implica em ser humilde. Uma das leis do nôus é a passividade porque, como se sabe, o intelecto compreende tornando-se outro, e se nossa postura diante do real for de intencionalidade, de “ansiedade”, o entendimento não ocorrerá, a verdade não penetrará.

Talvez a virtude mais prática seja a conciliação (ou acomodação). A ideia de Sertillanges, que considero fundamental, é que o estudioso não contraponha autores, mas os concilie. E, novamente, a ideia é simples: o que é interessante não são os pensamentos, mas as verdades e, portanto, não são os combates dos homens, mas sua obra e o que dela permanece. O que deve despertar o interesse do intelectual são os pontos de contato entre os autores, e é aí que deve empreender sua investigação.

Por fim, não nos esqueçamos que é a vida intelectual que confere unidade interior à alma. Sem ela, alguma mania ou paixão se apresentará sub-repticiamente como substituta da unidade, e nossas fraquezas voltarão a dominar.

* * *

As pessoas geralmente não sabem a que ponto a inteligência é plástica e receptiva a estímulos.

[...]

Pelo pensamento nós encontramos algo, não o fazemos.

[...]

A humildade é o olho que lê no livro da vida e no livro do universo.

[...]

Aquele que aprende sempre pode chegar a nunca instruir-se se não modificar em sua própria substância o que aprendeu em dóceis intercâmbios. [...] O que eu absorvo deve tornar-se eu.

[...]

A contemplação parte do amor e termina na alegria: amor do objeto e amor do conhecimento enquanto ato de vida; alegria da possessão ideal e do êxtase que ela provoca.

[...]

A recompensa de uma obra é tê-la feito; a recompensa do esforço é ter crescido. Coisa espantosa, o verdadeiro intelectual parece escapar dessas tristezas causadas pela idade que infligem a tantos homens uma morte antecipada. Ele mantém-se jovem até o fim. Dá a impressão de tomar parte da juventude eterna do verdadeiro. Tendo em geral amadurecido muito cedo, continua maduro, em nada azedo nem decaído, quando a eternidade vem recolhê-lo.

[...]

Essa confiança que está fundada sobre uma lei das coisas pertence ao trabalho mais que ao trabalhador; no entanto, o trabalhador, também ele, deve ter fé em si mesmo. Não tem ele consigo o Deus que disse: O que busca encontra, e a quem bate, abrir-se-lhe-á? Todos nós temos a Verdade por trás de nós, e ela nos impele pela inteligência; nós a temos diante de nós e ela nos chama, acima de nós, e nos inspira. [...] A luz pode filtrar através das brechas que nosso esforço alarga; quando ela se faz presente, por si mesma expande e firma seu reinado.

Fonte: A.-D. Sertillanges, A vida intelectual, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2020.

24 de abril de 2025

Traços do pensamento medieval


O sincretismo neoplatônico gnóstico foi o legado recebido pela Idade Média:

O neoplatonismo é a última escola filosófica do mundo antigo. Surgiu no século II d. C. e reuniu em seu sistema elementos derivados não só do platonismo mas também do neo-pitagorismo, do aristotelismo, dos estoicos, dos judaico-alexandrinos e até dos eleatas. Foi assim a expressão máxima do sincretismo da idade alexandrina, agregando quase toda a metafísica religiosa que continha a especulação anterior.

Esse sistema conheceu três fases: a alexandrino-romano (séculos II/III), cujo principal representante foi Plotino; a síria (séculos IV/V), iniciada por Jâmblico; e a ateniense, representada por Proclo (séculos V/VI).

Os neoplatônicos representavam o mundo como emanação da força divina, proveniente de um absoluto inalcançável (Uno). O primeiro passo dessa emanação era o mundo da razão, o mundo espiritual das ideias; o segundo, era o mundo psíquico, da alma; e o último era o mundo material. Cada passo representava uma queda sucessiva da força proveniente do Uno e por esse motivo ao mundo material só chegava um pálido reflexo de sua luz. A matéria seria, portanto, fonte de todo o mal, absoluto não ser, e o descenso dos seres encontra aí seu último limite, cessando a decadência. Por outro lado porém, o mundo corpóreo é vivente e seu verdadeiro ser é a alma que, por sua natureza, tende a retornar à fonte original (Uno). Reinicia-se desse modo o ascenso até que se atinja o ponto de partida e o círculo se feche.

Os neoplatônicos colocavam em cada fase da emanação os deuses e os demônios das religiões orientais e greco-romanas, dando vida a um sincretismo complexo e fantástico, última etapa do desenvolvimento da religião e da filosofia antigas. A mística, a adivinhação, os jejuns e as preces, levados até o êxtase com o fim de "fundir-se" com o Uno, tinham também muita importância, e algumas dessas práticas seriam adotadas pelos cristãos, particularmente pelos eremitas.

Embora vencido, o neoplatonismo sobreviveu, de certa forma, ao seu próprio tempo. Vários de seus temas foram fonte de inspiração para os primeiros pensadores cristãos. A caracterização do Uno enquanto simplicidade, autossuficiência, infinitude e absoluta liberdade; sua identificação como causa primeira e bem supremo de onde tudo provém e do qual depende, aproximava-se surpreendentemente da ideia cristã de Deus.

Outros temas ainda reforçavam essa proximidade: a Natureza entendida como vestígio do saber divino; a presença do Uno na humanidade e sua visão como luz interior que recomendava o "Conhece-te a ti mesmo"; a alma como possuidora de dupla natureza — intelectiva e sensitiva — etc. Por tais semelhanças, era comum passar-se dos filósofos neoplatônicos às Escrituras, a tal ponto que certos autores chegaram a considerar o neoplatonismo uma antecipação pagã do cristianismo.

Esse portanto o verdadeiro legado que o mundo medieval recebeu diretamente dos Antigos. Uma síntese refinada sob certos aspectos, mas também empobrecida. No vasto trabalho de amalgamar tantas correntes de pensamento, de tingi-las com um misticismo e uma religiosidade que lhe eram estranhos, de adaptá-las a circunstâncias completamente diversas daquelas em que foram originalmente criadas, o neoplatonismo despojou o pensamento clássico de algumas características preciosas. A reflexão já não era em si filosófica mas metafísica; o homem e a natureza já não eram o centro das especulações, mas apenas intermediários em um processo de conhecimento que tinha no Uno sua origem e seu objetivo último; a matéria, o mundo natural, não eram senão fonte de todo erro, de todo mal, de todo pecado... Antes mesmo que o cristianismo triunfasse e que o grande Império ruísse, tudo levava a crer que Pã, o antigo deus da Natureza, morrera.

No neoplatonismo o mal é ontológico, que é precisamente o que se esperaria de uma doutrina gnóstica:

Nessa medida, afirmava-se a superioridade do cristianismo, ao postular a existência de um Deus que tornara-se Criador por um ato de vontade e bondade. A matéria, enquanto uma de suas criações, não poderia ser princípio do mal e isto significava atribuir à personalidade individual do homem (e à sua livre vontade) a responsabilidade pelo mal e pelo bem, pelo pecado e pela redenção. Assegurava-se assim a possibilidade de salvação e refúgio eterno da alma, oferecida por um Deus preocupado com as debilidades, sofrimentos e aspirações de suas criaturas.

Similarmente, no neoplatonismo a matéria é pré-existente:

Abraçando a tradição judaico-cristã, Agostinho afirmava que o mundo fora criado por Deus a partir do nada. Nesse sentido, afastava-se ao mesmo tempo do emanacionismo neoplatônico e da tradição clássica onde a criação ou ordenação divina operou-se sobre uma matéria informe preexistente em estado caótico.

Uma bela explicação da doutrina da iluminação de Santo Agostinho:

A hierarquia agostiniana do conhecimento obedece à regra segundo a qual tudo que deve sua existência a outra coisa é inferior à coisa pela qual existe, não podendo o inferior agir sobre o superior. O homem, enquanto criatura de Deus, marcado por uma existência corpórea, está limitado ao conhecimento que os cinco sentidos lhe fornecem, podendo ver, tocar, ouvir etc. Contudo, o campo onde esses sentidos se exercitam é o mundo aparente que está subordinado ao tempo e à mudança — nasce, cresce, morre, transforma-se como o próprio homem — e tais características impregnam o conhecimento que deles advém, daí sua transitoriedade. Só em Deus e nas coisas que estão em Deus podemos, segundo Agostinho, encontrar o verdadeiro conhecimento, uma vez que Deus é bondade, sabedoria e verdade; esses não são apenas seus atributos.

As ideias, formas originárias, razões estáveis e imutáveis das coisas, estão contidas na mente divina e não nascem nem morrem, mas tudo o que nasce e morre é por elas formado. As ideias não são criaturas; antes participam da Sabedoria eterna, mediante a qual Deus criou o mundo e que é idêntica a ele. Assim, conhecer verdadeiramente seria voltar-se para as ideias, onde se funda a natureza das coisas e os juízos verdadeiros que delas formamos.

O acesso a essas verdades eternas não é totalmente vedado ao homem em função de sua dupla natureza: se ele possui um corpo, este está subordinado a uma alma que, pela sua própria natureza, guarda maior semelhança com Deus. Mesmo assim, a humanidade não pode, por si só, alcançar esse conhecimento perfeito; é necessário a intervenção divina.

Para explicar essa intervenção, Agostinho recorreu à doutrina da iluminação: Deus é a luz que ilumina a inteligência humana, tornando possível a compreensão do inteligível. Existiria portanto uma luz eterna da razão que procede de Deus e atuaria constantemente, possibilitando o conhecimento das verdades imutáveis. Da mesma maneira que os objetos exteriores só são vistos se iluminados pela luz solar, também o verdadeiro saber precisaria ser iluminado pela luz divina para revelar-se aos homens.

Avicena e sua doutrina da unidade do intelecto agente:

Foi por Avicena (980-1037) que a Idade Média conheceu a doutrina da unidade do intelecto agente, várias vezes atribuída erroneamente a Averrois. Aristóteles havia conferido à inteligência a dupla tarefa de abstrair formas inteligíveis contidas no dado sensível (função do intelecto agente) e receber em si as formas assim abstraídas (função do intelecto paciente). Avicena dotou cada indivíduo de um intelecto paciente particular, mas admitiu um único intelecto agente para todo o gênero humano.

Tomás de Aquino como refém dos tomistas puristas:

Transformado em porta-voz da Igreja, Tomás de Aquino foi canonizado em 1323; sua obra obteve a partir daí uma crescente difusão e seu nome passou a desfrutar de toda celebridade que não conhecera em vida. Entretanto o tomismo havia sido, em certa medida, amesquinhado em sua força criadora e libertadora. Concordaria Tomás em pagar tão pesado tributo?

Para Duns Scot a essência não contém apena o universal, mas também o individual, que é apreendido por intuição. Isso significa que há uma espécie de “essência individual” abaixo da essência universal:

À distinção real entre essência e existência [ser] atribuída por Tomás de Aquino, Duns Scot reafirmava o princípio tradicional da unidade do ser, utilizando-o porém para uma conclusão em tudo original: se é certo que a unidade acompanha o ser, então cada grau do ser possui também uma unidade real correspondente, existindo portanto em todo ser concreto e singular uma multiplicidade de “aspectos reais” inseparados e inseparáveis uma vez que compõem um único indivíduo.

Por outro lado, a aplicação de semelhante tese à teoria do conhecimento tinha profundas implicações. O tomismo restringia a possibilidade de conhecimento ao domínio das essências universais que determinam todos os seres individuais, e admitia a abstração como único modo de conhecimento. Duns Scot entretanto, ao afirmar que a essência contém tanto o universal quanto o individual e que portanto o real não poderia ser entendido nem como universalidade pura (pois fragmenta-se em indivíduos), nem como pura individualidade (pois comporta ideias gerais), colocava ao lado do conhecimento abstrativo, o intuitivo. Desta maneira, enquanto a abstração permitiria à inteligência captar as essências universais, a intuição conduziria à apreensão do ser existente enquanto fenômeno singular, concreto e individual.

Fonte: Inês C. Inácio e Tania Regina de Luca, O pensamento medieval, Editora Ática, São Paulo, Brasil, 1988.

15 de abril de 2025

Mindset fixo: não aprende nada e não esquece nada


Qual sua opinião a seu respeito? Você acha que nasceu com uma quantidade estática de inteligência, de personalidade, de caráter, e por isso há pouco ou nada que possa fazer a respeito? Você acha que nasceu com uma "índole" que, não importa o que faça, vai marcar você para sempre? Ou acha que pode cultivar e educar suas qualidades mediante esforço? Eis em grossas linhas os dois famosos mindsets de Carol Dweck: mindset fixo (fixed mindset) e mindset de crescimento (growth mindset). Me parece evidente que se trata de um modelo do tipo explicativo, muito próximo à TCC e às abordagens da análise do comportamento, e por isso não deixa de ter seu interesse e sua aplicação.

De maneira geral, embora Dweck não exponha a diferença nesses termos, todas as pessoas, a despeito do mindset que majoritariamente adotem, têm a necessidade de sentirem-se saudáveis, de sentirem-se “bem”. E eis a diferença: o mindset de crescimento buscará sua saúde mental precisamente no crescimento, ou seja, desde dentro. E o mindset fixo? Ele não tem alternativa senão caçar sua saúde mental mundo afora, ou seja, terá de “provar a si mesmo” perante os outros, terá de criar uma “autoestima” aceitável na sociedade.

O mindset fixo tem de sentir-se perfeito porque uma única prova em contrário representaria um golpe que o condenaria para sempre. O fracasso passa de um fato (“fracassei”) a uma identidade (“sou um fracasso”). O mindset fixo acha que sabe tudo a seu respeito e, portanto, não precisa obter este ou aquele conhecimento, habilidade, experiência etc., mas somente buscará aquilo que entende (ou “tem certeza”) que tem talento. A confiança do mindset fixo é frágil e, pior, as pessoas ao seu redor não são vistas como aliadas, mas como juízes. O esforço lhe é algo profundamente desagradável e seu diálogo interior é povoado de transtornos. E eis aqui uma curiosidade: para o mindset fixo talentoso as imperfeições são especialmente vergonhosas.

O mindset de crescimento considera o aprendizado uma experiência especialmente prazerosa. O sucesso está precisamente no aperfeiçoamento, e aqui tanto faz se há reveses e fracassos: eles servem para informar e “acordar” o mindset de crescimento a buscar uma solução de contorno.

Nos relacionamentos amorosos o mindset fixo é especialmente disfuncional. Uma vez ferido, o mindset fixo não vê alternativa senão buscar desde fora a cura para essa ferida: eis a vingança. Para o mindset de crescimento, a cura da ferida virá de dentro: eis o perdão. A vingança, do ponto de vista do mindset de crescimento, é perda de tempo e energia. O perdão, do ponto de visto do mindset fixo, é algo inaccessível. Ademais, para o mindset fixo, por sua própria característica, espera que tudo esteja “pronto” e que tudo seja “espontâneo”, e é por isso que se é necessário algum esforço então “não era para ser”; em outras palavras, a leitura mental é uma exigência do mindset fixo. Ambos, homem e mulher, têm de concordar em tudo porque problemas são sinal de deficiências profundas. Por fim, no mindset fixo a “culpa” pelas dificuldades no relacionamento ou são de suas características ou das características do parceiro. É claro que o mais comum é culpar o outro. Na vida extraconjugal, a culpa recai no “mundo”, na “empresa”, na “sociedade”, no “país”, no “trauma do passado” etc.

Como superar o mindset fixo?

(1) Abraçar seu mindset fixo.

(2) Saber o que desencadeia o mindset fixo.

(3) Dar um nome à sua persona com mindset fixo (personagem de livro, de filme, seu próprio apelido, um nome que não goste etc.) a fim de distanciar-se e romper a identidade com essa persona

(4) Educar essa persona.

Fonte: Carol Dweck, Mindset, Editora Objetiva, São Paulo, Brasil, 2017.

14 de abril de 2025

Deus não é nosso intelecto agente


Menosprezar a contribuição de Santo Agostinho à doutrina cristã é algo que se tornou comum na Igreja Ortodoxa, em especial entre os seguidores do Pe. John Romanides. No entanto, poucos se dão conta de que entre os católicos romanos houve também, embora mais discretamente, um tema importante da doutrina agostiniana que foi superado por Tomás de Aquino. Trata-se da teoria do conhecimento de Santo Agostinho, a saber, sua doutrina da iluminação divina.

 Ocorre que o intuito de Tomás, ao impugnar a influência das doutrinas árabes, o que incluía evidentemente Avicena, impugnou também a concepção agostiniana do conhecimento. Mas do que se trata essa doutrina? Já nos habituamos em inúmeras postagens deste blog à teoria do conhecimento de Aristóteles, qual seja, a divisão do intelecto em intelecto agente (aquele que “abstrai” os conceitos dos fantasmas advindos da parte sensível da alma) e intelecto possível (aquele que, por meio de juízos e inferências, raciocina para alcançar novos conteúdos mentais e os pronuncia com verbos mentais). De qualquer forma, o que se depreende aqui é que o intelecto humano é uma atividade que lhe é própria, que lhe é natural. Reforcemos: o intelecto é algo humano. Santo Agostinho não pensava assim. Sua doutrina da iluminação não outorgava um intelecto agente ao homem, mas é algo que competia exclusivamente a Deus. Reforcemos: o intelecto é algo divino.

Étienne Gilson não deixa de notar que ambas as escolas dão na mesma porque, afinal, ou o intelecto humano tem de ser auxiliado por Deus, ou Deus é nosso intelecto agente que “complementa” a alma humana. A despeito disso, Tomás acaba com a doutrina de Deus como intelecto agente. Ademais, note que na ideia de Deus como intelecto agente está implícito o entendimento de que a alma é feita de substância divina, só existindo uma única alma para toda a humanidade, pois, obviamente, Deus é indivisível e único. Tal concepção na minha opinião porta evidentes traços gnósticos.

Fonte: Adriano Martins Soler, Agostinho e Aristóteles na teoria do conhecimento de Tomás de Aquino, Fonte Editorial, São Paulo, Brasil, 2015.


31 de março de 2025

As bem-aventuranças e o aperfeiçoamento da alma humana


“Deus se fez homem para que o homem se faça Deus”. Esta famosíssima injunção de Santo Atanásio nos lembra qual é o ponto de partida para a perfeição cristã. Diz-se também na Escritura: “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5:48). A união do homem com Cristo é não apenas conveniente, mas necessária para a consecução do aperfeiçoamento humano. Isso significa que a graça é fundamental para a superação dos pecados e vícios que maculam o pleno desenvolvimento do homem em sua natureza. E para a obtenção da graça é fundamental a (“O justo viverá pela fé” (Hebreus 10:38)), ou seja, a adesão à revelação que nos vem por Jesus Cristo.

E o Cristo começa seus ensinamentos públicos precisamente pelo fim, ou seja, a quê somos chamados. Em outras palavras, como alcançar a perfeição, ou seja, as felicidades, isto é, as bem-aventuranças. Eis o fim, a causa das causas, da vida humana: a felicidade (“bem-aventurança”).

Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.

A riqueza, não apenas material, mas espiritual, impede que os possui a se aproximar de Deus. Tais riquezas têm de ser abandonadas para que tomemos uma riqueza infinitamente superior, que é a riqueza divina. Isso não significa que as riquezas do mundo sejam más, mas simplesmente que não são apreciáveis.

Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

Os que choram são os que encontram a vanglória e presunção do mundo comparado com a realidade divina, e também aqueles que choram por ação do Espírito Santo.

Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.

A verdade encontra-se obstruída pela injustiça porque o que reina no mundo é a injustiça. A injustiça impede a visão da verdadeira natureza do homem e de Deus. Se a verdade não nascer em nós seremos incapazes de vencer a injustiça e alcançar a união com Cristo.

Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.

A purificação do coração aqui se refere como coração enquanto afeto e coração enquanto olhar. Limpar o coração enquanto afeto significa tornar a vontade reta (justa) pela graça, ou seja, tornar a vontade misericordiosa, ou seja, capaz de ver a miséria do próximo. A graça aqui é necessária porque só o Cristo é capaz de tirar nossa miséria. Os misericordiosos, portanto, são aqueles unidos ao Cristo, unidos à paixão do Cristo. Limpar o coração enquanto olhar é precisamente a capacidade de ver o próprio Deus, o qual, como dissemos ao início, exige pobreza sensitiva e pobreza intelectual. “A fé tem seus olhos”, dizia Santo Agostinho.

Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.

Os pacificadores são os que trabalham pela paz, ou seja, pelo Cristo. O trabalho é, evidentemente, o trabalho sobrenatural.

Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós.

Os que vivem na injustiça naturalmente perseguirão os que trabalham pela justiça.

Fonte: Ignacio Andereggen, Camino de perfeción cristiana, YouTube, 2025.

26 de março de 2025

Unde malum? (ou, De onde vem o mal?)


Segundo Fedeli, para Guénon as expressões “metafísica”, “conhecimento”, “tradição” e “grandes mistérios” significam “gnose”. O esquema de gnose (repetuindo com outras palavras o que já havíamos exposto aqui, é o seguinte:

1) O impulso fundamental do gnóstico é sua limitação como ser criado, ou seja, o sofrimento por não ser ele Deus. É desta repulsa nuclear que surge sua revolta contra Deus e contra a ideia de que os seres sejam análogos ao Ser.

2) Há, portanto, uma Divindade acima de Deus, e ambos se opõem como o Não-Ser ao Ser. Deus é revelado e conhecido enquanto a Divindade é absolutamente incognoscível.

3) Tal contradição metafísica destrói os princípios do ser pois nega o princípio de identidade e o princípio da não-contradição. O ser possui, do ponto de vista gnóstico, dois princípios iguais e contraditórios, e as coisas, os “entes”, são apenas fluxo, apenas um devir contínuo.

4) O mal não é moral para o gnóstico, mas é ontológico. Ele está enraizado na própria existência de Deus, do “Demiurgo criador”. Para a gnose sufi, por exemplo, há oposição entre Allah e o mundo criado, pois se considera Allah como Ser, os seres criados são puro nada, somente existindo a Divindade, o que Ibn Arabi chama de proprium (o atma da gnose hindu) em seu Tratado da Unidade. Também para Guénon o mundo é ilusório, ou seja, metafisicamente irreal.

5) Em cada coisa há uma partícula ou centelha divina. Trata-se dos atmas, éons, a Fünkenlein (“chamazinha”) de Mestre Eckhardt, o primum de Ibn Arabi, o Si (Soi ou Self) de Guénon etc. A matéria é pura ilusão e, note-se, nos homens não só o corpo, mas a própria alma racional estão encarcerados na matéria. Por isso a razão é má: ela torna o mundo inteligível e bom, enganando o homem e aprisionando-o nele. Eis por que alguns gnósticos dizerem que a abstração é o pecado da inteligência.

6) Quem liberta o homem deste cárcere é o conhecimento, ou seja, a gnose. Mas não se trata aqui de um mero conhecimento intelectual, mas um conhecimento intuitivo (“metafísico”, na linguagem guénoniana).

7) A moral não faz sentido no esquema gnóstico porque ela implica no desenvolvimento do ser enquanto análogo ao Ser. A gnose é antinomista por natureza. A vontade engana o homem porque, ao querer, aceita o bonum dos seres criados, o que seria falso, ilusório.

8) Para o gnóstico não existe metafísica. Isso se explica pelo fato da metafísica, conforme a entendemos filosoficamente, tomar como ponto de partida os entes que se apresentam acidentalmente ao homem e daí deduzir a estrutura da realidade. O gnóstico, convicto de que os entes são ilusórios, não pode partir intelectualmente deles para construir a estrutura da realidade, mas vê-se obrigado a partir intuitivamente do conhecimento da centelha divina oculta nos entes. A isso o gnóstico chama de “metafísica”.  Por isso os gnósticos menosprezam Aristóteles e seus seguidores (como Tomás de Aquino) por supostamente tomarem a parte pelo todo. A abstração empreendida pelo intelecto seria um “pecado” porque divide o Ser. Daí, para o gnóstico, a filosofia só faz sentido sempre e quando houver a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa (precisamente a definição de filosofia de Olavo de Carvalho). Tal unidade explica-se pelo fato do intelecto humano ser incriado, ou seja, ser o próprio Intelecto.

Fonte: Orlando Fedeli, Sob a máscara, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil, 2019.

6 de março de 2025

O valor do pobre está na necessidade


Já vimos a parábola de Lázaro e o homem rico no contexto da vida após a morte. Desta vez, vejamos quais os nove castigos da pobreza de acordo com São João Cristóstomo, que se apoia na mesma parábola:

(1) Pobreza. É algo verdadeiramente terrível pois nenhuma palavra consegue descrever a grande angústia que e suportada por aqueles que vivem como mendigos sem conhecer a sabedoria. [Aqui o santo provavelmente se refere ao desconhecimento da causa final da pobreza e do sofrimento, ou seja, a falta de sabedoria implica numa visão horizontal da pobreza].

(2) Doença. Muitos adoecem com frequência sem que lhes falte o necessário para a subsistência. Outros vivem em extrema pobreza, mas desfrutam de boa saúde. Um bem se torna um consolo para o outro infortúnio. Mas em Lázaro os dois infortúnios se apresentaram juntos.

(3) Solidão. Mesmo se não está na própria casa, pelo menos em público Lázaro poderia receber a piedade daqueles que o veem. Para Lázaro, porém, a ausência de protetores tornou seus dois infortúnios ainda mais dolorosos.

(4) Desencorajamento. A ausência de protetores tornava-se ainda mais dolorosa ao se encontrar diante da porta da casa do rico. Ele passou a sentir uma aflição mais aguda.

(5) Percepção mais aguçada dos infortúnios. Além de tudo isso, Lázaro tinha diante de seus olhos o espetáculo de um homem rico e bem afortunado. É da nossa natureza compararmos nossa situação com a prosperidade alheia. O rico se saía bem em todos os aspectos, apesar de viver com crueldade e desumanidade, enquanto Lázaro, vivendo com virtude e bondade, sofria terríveis infortúnios. Era como se tivesse vindo ao mundo com esse exato propósito, para ser testemunha da boa fortuna alheia.

(6) Isolamento espiritual. Lázaro não podia observar outro Lázaro. Mesmo se sofremos de uma infinidade de problemas, ao contemplar Lázaro podemos pelo menos obter algum consolo e encorajamento. Encontrar quem partilha das mesmas misérias, em histórias ou em fatos, traz um grande consolo aos que vivem em aflição. Mas ele não encontrava ninguém com sofrimentos semelhantes aos seus.

(7) Achatamento existencial. Lázaro não podia encontrar consolo na ideia da ressurreição. Acreditava que tudo se resumia à vida presente, pois encontrava-se entre aqueles que precederam o tempo da graça. Não podia praticar tal sabedoria.

(8) Calúnia. A maioria das pessoas julga a vida do outro por suas dificuldades e acha que foi a iniquidade, sem dúvida, a causa de tanta miséria. Dizem entre si muitas tolices. Por exemplo, se Lázaro fosse amado por Deus, Deus não teria permitido que sofresse na pobreza nem se submetesse a tantos infortúnios.

(9) Extensão temporal. Lázaro suportou sua pobreza uma vida inteira, não apenas um ou dois dias.

* * *

Mesmo quando não buscamos a virtude talvez sejamos capazes de obtê-la se pelo menos a louvarmos. E mesmo quando não evitamos o mal, talvez sejamos capazes de escapar dele se pelo menos o censurarmos.

* * *

Verdade seja dita, o rico não é aquele que reuniu muitos bens materiais, mas aquele que precisa de pouco. E o pobre não é aquele desprovido de bens, mas aquele que a tudo cobiça.

* * *

O rico costuma ser o mais pobre de todos. Se retirardes a máscara, abrirdes a consciência e entrardes na mente, encontrareis uma grande pobreza de virtude: descobrireis que ele pertence à classe mais baixa de todas.

* * *

Realmente também é roubo não compartilhar as posses. [...] Os ricos guardam os bens dos pobres mesmo se foram herdados dos pais ou adquiridos de qualquer outra forma. [...] É por isso que Deus permitiu aos ricos ter mais: para ser distribuído a quem necessita. O homem rico é uma espécie de intendente do dinheiro que deve ser distribuído aos pobres.

* * *

Um juiz é uma coisa, um benfeitor é outra. A caridade recebe este nome porque é praticada mesmo com os indignos. Façamos o mesmo, eu vos imploro, sem mais questionamentos do que o necessário. O valor do homem pobre está apenas na sua necessidade. [São João Maximovitch, por exemplo, foi visto vários vezes dando esmola a um notório bêbado. Questionado por que o fazia, dado que o dinheiro certamente seria gasto para sustentar seu vício, o santo respondia que ele não era melhor que o homem bêbado. Em outras palavras, o valor de ambos, santo e bêbado, reside na natureza humana, que lhes é idêntica. A transmissão da bondade pelo benfeitor, mesmo diante de uma "má necessidade", está acima da indignidade do vício. Eis a autêntica filantropia: amor e compaixão pelo próximo, a despeito de quem seja. Uma magnanimidade incomum, sem dúvida]. 

* * *

É um grande bem ter vossas esperanças de salvação depositadas em vossos próprios atos virtuosos.

* * *

Quando somos testados em circunstâncias difíceis, lembramo-nos dos antigos pecados.

Fonte: São João Crisóstomo, A riqueza e a pobreza, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2022.

14 de fevereiro de 2025

Breve história da aurora da filosofia: Sócrates e Platão


1. História da filosofia

É fundamental estudar a história da filosofia porque ninguém pode se dizer “culto” sem sabê-la. Trata-se de estudar as grandes criações mentais do espírito humano e formar um juízo correto a respeito delas, seja evitando condenar o que não se disse, seja repetindo erros já cometidos no passado.

A história da filosofia é a história da luta do intelecto humano para atingir a verdade por meio da razão discursiva. Como tomista, Copleston acredita que há uma philosophia perennis atemporal que permiea a história e que tal filosofia é uma espécie de “tomismo amplo”.

2. Pré-socráticos (um vs. múltiplo)

A Jônia logrou preservar o espírito das civilizações mais antigas, enquanto no restante da Grécia reinava a barbárie e o caos político. Foi ali, em Mileto, na atual Didim (costa turca do Mar Egeu), que surgiu a filosofia, o exercício da reflexão racional. Egípcios e babilônios empreenderam cálculos práticos e astrológicos, mas a ciência e o pensamento enquanto tal foram criação do gênio grego.

Copleston acredita que a percepção da mudança, aliada à intuição de que “algo” permanece, levou os jônios aos primeiros passos da filosofia cosmológica. Esse “elemento primitivo”, essa “unidade”, foi sua busca principal: os jônicos estavam convencidos de que há um império da lei no universo. Suas soluções ainda eram muito simplistas pois não eram capazes de distinguir matéria de espírito, ou seja, ora o “elemento primitivo” era material, ora ideal.

Para Tales, considerado o “pai da filosofia”, o “elemento primitivo” era a água, enquanto para Anaxímenes, o ar (mediante condensações tende a solidificar-se e mediante rarefações tende ao fogo, o que de qualquer forma reduz a qualidade à quantidade). Para Anaximandro, trata-se da uma “substância sem limites”, do apeiron. De qualquer forma, todas as doutrinas são “materialistas” no sentido de que apontam algum elemento material como primitivo, mas não são materialistas stricto sensu porque não eram capazes de distinguir matéria e espírito. Estavam, segundo Copleston, “cheios da naiveté do espanto e da alegria da descoberta”.

Quanto a Pitágoras e a escola pitagórica, houve uma combinação de espírito científico com espírito ascético-religioso. Sua devoção à matemática, em especial em encontrar, como nas escalas musicais, uma proporção em números à totalidade da natureza, é marcante. E não só isso: para os pitagóricos, as coisas são números. É claro que disso surgiu uma miríade de caprichos e devaneios. No entanto, seu cuidado para com a alma foi a maior influência que Platão colheu dos pitagóricos.

Ainda no contexto do movimento e do problema do um e do múltiplo, Heráclito proclamava a irrealidade da realidade, ou seja, nada permanece, nada é estável. Em outras palavras, a unidade está na diversidade, ou seja, o um só existe na tensão dos opostos. Então, que não se diga que Heráclito ensinava que não há um “algo” que mude. Esse um, para ele, é o fogo, que se alimenta de matéria heterogênea e é feito da tensão, da luta, da dissipação, da ardência e do desaparecimento das coisas. O mundo é um fogo eterno, e as diferenças do mundo são o próprio um. Estamos diante, claro, de um panteísmo filosófico, e os estoicos herdariam de Heráclito esta cosmologia panteísta (uma razão universal que tudo ordena). O um-fogo é chamado de Deus, e cabe ao homem manter sua alma o mais “seca” possível, ou seja, esforçar-se para que sua razão e consciência, que lhe são “ígneos”, vençam o prazer e ascendam à vigília, sob pena de o mundo do “sono” lhe tornar úmido e apagar sua “igniedade”.

Algo em contraste a Heráclito, Parmênides ensinava que o um é, ou seja, que o devir, a mudança, é ilusão. Ora, se algo vem a ser, então vem do ser ou do não-ser. Se veio do ser, então já era. Se veio do não-ser, então não é, já que do nada nada vem. Note que a rejeição do movimento implica em “ver” o que não é sensível, ou seja, é introduzir uma distinção entre razão e sensação. Essa distinção será fundamental para Platão. Mas mesmo aqui, Parmênides ainda é materialista porque a realidade que a razão apreende é material, inclusive atribuindo-lhe finitude espacial esférica. Portanto, não estamos no campo do idealismo dentro do qual Platão se inserirá, mas podemos dizer que foi Parmênides uma espécie de “pai do idealismo”.

Um de seus discípulos, Zenão defendeu Parmênides dos ataques pitagóricos mediante engenhosas reductiones ad absurdum. Por exemplo, imagine uma linha. Ou ela tem magnitude, ou não tem. Se tem magnitude, será infinitamente divisível. Se não tem magnitude, não existe. Zenão mostra, assim, que os que zombam de Parmênides são também dignos de serem zombados. O mesmo tipo de raciocínio absurdo pode ser feito quanto ao som, ao espaço, ao movimento etc. No final das contas, o que indicou Zenão é que as quantidades precisam ser contínuas para dar cabo dos absurdos que ele apresentou.

Empédocles pode, portanto, ser visto como um intermediador entre Heráclito e Parmênides. Os objetos são uma mistura dos quatro elementos (terra, água, ar, fogo), os quais não vêm a ser nem desaparecem. Antes há forças físicas e materiais ativas (amor/harmonia, ódio/discórdia) que os unem. Leucipo e Demócrito, notórios atomistas, levaram o pensamento de Empédocles adiante concebendo infinitos e indivisíveis átomos, que se movem no vácuo. Os atomistas nunca explicaram o que moviam os átomos e que força os unia. Tal explicação puramente mecânica da realidade ressurgiu na era moderna no âmbito da física-matemática. Em particular, Demócrito ensinava que as sensações têm natureza mecânica, isto é, os objetos emitem “eflúvios” ou “imagens” compostas de átomos que se imprimem na alma, ela também composta de átomos. As diferenças qualitativas não estariam nas coisas, mas nas imagens (não há qualidades secundárias, portanto). Por conseguinte, todas as sensações são falsas, já que nada nelas corresponde à realidade. Curiosamente, Demócrito advogava a felicidade como o acúmulo de gozo e a minimização de problemas, alcançando-se assim uma “alegria” da alma que corresponde à saúde do corpo. Ora, mas se os objetos e almas são um conjunto de átomos, como é possível postular a liberdade ética com tal determinismo atomista? Anaxágoras, por sua vez, não concorda com Empédocles e diz que os elementos últimos não são os famosos quatro supracitados, mas são os materiais cujas partes são qualitativamente iguais ao todo (p.ex. ouro). Os objetos do cotidiano são compostos de “uma porção de tudo”, ou seja, todos os elementos primordiais estão nos objetos, apenas que um deles predomina em relação aos demais nos diversos objetos. A grama se transforma em carne porque as partículas de carne passaram a predominar sobre as partículas de grama. E a força que mantêm os elementos unidos é o nous ou mente, um princípio infinito e autogovernado, que não se mistura com nada, embora ocupe espaço. Eis o princípio espiritual e intelectual, embora ainda tímido e confuso.

3. Sócrates e o período socrático

Do foco no objeto, cujos frutos foram incertos – além de prolongado convívio com outros povos –, os filósofos gregos voltaram-se ao sujeito. Por isso o sofismo é caracterizado pela civilização e costumes humanos, ou seja, pelo microcosmo, por temas menos especulativos e mais práticos, em especial a retórica, ou, jocosamente falando, “a arte de ensinar os homens a fazer o injusto parecer justo”. Protágoras ficou conhecido pelo dito “o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são o que são, daquelas que não são o que não são”; em outras palavras, todos os homens têm a mesma tendência ética, mas os Estados comportam variedades específicas da lei de acordo com as circunstâncias vigentes. Não há aqui um clamor ao relativismo, mas, pelo contrário, à tradição e à autoridade. Pródico ensinava que na origem da religião os homens adoravam o sol, a lua, os rios, lagos etc. como deuses. Hípias, um polímata, ensinava que a lei frequentemente forçava o homem a agir contra a natureza. Ao contrário de Protágoras, Górgias sustentava que tudo é falso porque ou é eterno (o que é impossível) ou teria vindo-a-ser (o que também é impossível, acreditava ele). Ademais, o conhecimento também é uma ilusão porque se o ser está em duas pessoas ao mesmo tempo, como é possível se elas são diferentes uma da outra? Admitindo a absurdidade da filosofia, dedicou-se à retórica.

Quanto a Sócrates, Copleston admite como mais verossímil a versão de que Platão pôs em sua boa a teoria das ideias. De qualquer forma, Sócrates foi inegavelmente o pai do uso dos argumentos indutivos e das definições universais, ou seja, da busca dos conceitos fixos. Não que ela tenha teorizado a própria indução lógica, mas fez uso da dialética (ou simplesmente “conversa”, ou, tecnicamente falando, “maiêutica”, ou seja, como uma “mãe” que gera ideias verdadeiras na mente alheia), que partia de definições menos adequados às mais adequadas e universais (é a indução). Mas não nos enganemos: Sócrates não buscava apenas a verdade em si, o que certamente já é algo louvável, mas também a “vida reta”.

A sua “ironia”, pois, a sua profissão de ignorância, era sincera; ele não sabia, mas queria descobrir, e queria induzir os outros a refletir por si próprios e dedicar verdadeira meditação à obra supremamente importante de cuidar de suas almas. Sócrates estava profundamente convencido do valor da alma, no sentido do sujeito pensante e volitivo, e viu claramente a importância do conhecimento, da verdadeira sabedoria, caso se quisesse dar a atenção devida à alma.

Copleston aponta em Sócrates uma tendência à superintelectualidade, isto é, uma tendência a acreditar que o homem, quando sabe o que é certo, certamente irá fazer o que é certo, como se conhecimento e virtude fossem uma e a mesma coisa. Bem, isso é falso, como bem apontou Aristóteles em sua crítica a Sócrates. O médico aprendeu medicina, mas não necessariamente o justo aprendeu o que é justiça. [Martín Echavarría acusa os adeptosda REBT/CBT de assumirem tal postura socrática robótica]. A alma obviamente conta com partes irracionais, e o consentimento da vontade sofre influência não somente do intelecto, mas dos apetites sensíveis da alma. De qualquer forma, Copleston não deixa de notar que a ética de Sócrates permanece uma das glórias perenes da filosofia grega.

Por fim, cabe comentar acerca de alguns filósofos que, influenciados pessoalmente por Sócrates, continuaram seu pensamento em uma direção muito particular. São, por isso, chamados de socráticos menores. Euclides de Mégara (não confundir com o famoso matemático) concebia o um com o bem, identificando-o com Deus e a razão. Diodoro Crono identificava o atual e o possível, e disso extraía uma curiosa conclusão: só o atual é possível; então, por exemplo, se dissemos que é impossível que o mundo não exista, então jamais foi possível que o mundo não existisse. Antístenes, um dos filósofos cínicos (Copleston os inclui entre os socráticos menores), foi discípulo de Górgias antes de voltar-se a Sócrates. O traço que herdou de Sócrates foi sua independência da opinião pública vigente, seu desprendimento do aplauso alheio. Isso estaria muito bem não fosse por um detalhe: a ânsia de Antístenes por independência o fez desprezar a ciência e a arte, dedicando-se exclusivamente ao desprendimento dos desejos e à libertação das carências. Sócrates também zombava da opinião popular, mas não o fazia por ostentação, mas por fidelidade à verdade. Diógenes de Sinope, famoso cínico, chamava-se de “cachorro” (daí o nome “cínico”) e defendia a vida dos animais como um modelo a ser seguido, inclusive partilhando esposas e filhos e pregando o amor livre, zombando das convenções. Aristipo de Cirene defendia a ideia de que somente as sensações dão conhecimento certo e, portanto, o objetivo da vida é obter sensações prazerosas. Sócrates de fato ensinava que a felicidade é o motivo da virtude, mas não que o prazer seja o caminho exclusivo à felicidade.

4. Platão

a. Epistemologia. Conhecimento não é simplesmente percepção pelo simples motivo que o conhecimento usa termos e expressões que não são de maneira alguma perceptíveis (por exemplo, uma miragem, objetos matemáticos, o caráter de uma pessoa etc.). Ademais, a percepção sensível necessita da reflexão e do juízo para que faça sentido (por exemplo, os trilhos de uma via ferroviária perceptualmente convergem, mas mediante a reflexão sabemos que não). A percepção sensível capta somente aquilo que vem a ser, não aquilo que é. É por isso que um juízo pode ser verdadeiro sem que tal verdade dependa de alguém que forme o juízo. Por outro lado, analisar as partes de uma crença não a transforma em conhecimento (p.ex. enumerar exaustivamente as partes de uma carroça não significa conhecê-la). O conhecimento verdadeiro tem de ser estável, permanente, fixo, capaz de ser apreendido por uma definição clara e científica, por uma definição universal.

Os famosos níveis de conhecimento de Platão, elencados na República, são esquematicamente os seguintes:


No lado esquerda da linha central estão os estados da mente, enquanto no lado direito estão os objetos que lhes correspondentem. Ao mesmo tempo, na parte superior temos o estado de episteme (conhecimento), que se preocupa com arquétipos, enquanto na parte inferior temos a doxa (opinião), que se preocupa com imagens. Por exemplo, se alguém diz o que é a justiça com base em casos particulares então estará em estado de doxa, ao passo que se explica com base na apreensão da justiça em si mesma, se erguendo à forma, à ideia, ao universal, então estará em estado de episteme (ou gnosis). Mas há duas subdivisões em cada estado: a eikasia se refere à imagem do que é, enquanto a pistis se refere aos objetos reais, aos “animais ao nosso redor, e todo o mundo da natureza e da arte”. A dianoia é o pensamento empreendido com a ajuda da imitação dos segmentos inferiores e que começa por hipóteses e termina numa conclusão (é claro que aqui Platão se refere à matemática e à geometria quando, por exemplo, fala de dois círculos que se interseccionam, que evidentemente são círculos inteligíveis, não sensíveis). Por fim, a noesis usa as hipóteses da dianoia para dialeticamente (ou seja, sem imagens) ascender aos primeiros princípios e, por conseguinte, “destruir as hipóteses”. Toda esta ascensão, desde as imagens até os primeiros princípios, Platão a ilustra no famosíssimo mito da caverna (leia-o aqui)

b. As formas platônicas

Platão explica na República que toda pluralidade de coisas individuais implica em uma ideia ou forma correspondente, que é a natureza captada pelo conceito. A realidade, portanto, não é captada propriamente pelos sentidos, mas pelo pensamento. As formas são descobertas, não inventadas, e mais: todas as formas, ideias, essências, têm de ter uma essência genérica suprema. De qualquer forma, Copleston entende que Platão, embora tenha usado uma linguagem espacial para referir-se às formas, não queria dizer que elas existissem num espaço separado das coisas. Platão, aliás, frequentemente faz isso: usa uma linguagem “mítica” por meio da qual não pretende que seja tomada com absoluta exatidão.

Como bem observou Constantine Cavarnos em seu Orthodoxy and Philosophy, Platão não indicava que as formas existam na mente divina, mas no Timeu lemos que tampouco existem no Demiurgo. Eis porque apontar em Platão algum teísmo seria temerário.

Na República o bem é comparado ao sol, cuja luz torna os objetos visíveis, lhes conferindo excelência, valor e beleza. Assim também é o bem, que não é apenas um princípio epistemológico, mas ontológico, um princípio do ser. O bem na República é idêntico à beleza do Banquete. Portanto, o absoluto é ao mesmo tempo imanente (pois as coisas o materializam, o “copiam”, o manifestam) e transcendente até o próprio ser. As metáforas de participação (methesis) e imitação (mimesis) precisamente indicam essa distinção entre absoluto e relativo, mas ao mesmo lhes conferem certa comunicação. Mas como explicar que algo transcenda absolutamente os objetos de conhecimento e ao mesmo tempo “esteja” neles? Platão não escreveu nada sobre a doutrina integral do Um. Os neoplatônicos mais tarde introduzirão a emanação como explicação (a “centelha divina”), mas é inaceitável deduzir que tal doutrina encontrava-se originalmente em Platão. O mais provável, raciocina Copleston, é que Platão tinha em mente que os ideais de justiça, temperança etc. estejam fundados no princípio absoluto do bem, mas não parece possível afirmar que a razão divina é o “lugar” das ideias.

Resta tratar de um assunto espinhoso: a relação das formas com os números. Copleston – e estou plenamente de acordo com ele nisso – não esconde seu aborrecimento em lidar com isso porque se trata do “tema mais infeliz” da filosofia de Platão. Em suma, o motivo de Platão para identificar as formas com números parecer ser o de encontrar o princípio de ordem do misterioso e transcendental mundo das formas. É como se houvesse um esquema por trás da inteligência dos corpos naturais. Os corpos não “são” números, mas “participam” dos números porque, claro, comportam um elemento contingente que não tem nada de “matematizável”. Platão explica, de maneira um tanto críptica, que há uma tríade de números que provê a proporção dos triângulos que compõem o mundo corporal: no caso do triângulo isósceles é  1, 1 e √2, e no caso do triângulo escaleno é 1, √3 e 2. Observe que há em ambos um elemento irracional que precisamente expressa a contingência nos objetos naturais. A “ilimitação” da irracionalidade parece se identificar com o elemento material, o elemento de não-ser, presente em tudo o que vem a ser. Copleston identifica certo casamento entre o idealismo e a pan-matematização platônicos: ambos se apoiam no sentido de que a matemática ajuda a “elevar” o pensador para encontrar a verdadeira realidade e ser da natureza no mundo ideal.

c. A psicologia platônica

Platão é claramente um dualista: a alma é distinta do corpo, embora ambos se comuniquem. Em seus diálogos, por exemplo, encontramos a admoestação a rejeitar certos tipos de música para que não prejudiquem a alma, a afastar-se de hábitos corporais viciosos para que não escravizem a alma.

A alma seria tripartite: partes racional, irascível e apetitiva, essas duas perecíveis. Embora no Fedro e na República se diga que a alma como um todo sobrevive, parece provável que só a

racional sobreviva efetivamente (as demais partes permanecem como potencialidades).

Por que Platão afirma a natureza tripartite da alma? Principalmente em razão do fato evidente do conflito interno da alma. No Fedro ocorre a célebre comparação na qual o elemento racional é relacionado a um cocheiro, e os elementos irascível e apetitivo a dois cavalos. Um cavalo é bom (o elemento irascível, que é o aliado natural da razão e “ama a honra com temperança e modéstia”), o outro é mau (o elemento apetitivo, que é “amigo de toda revolta e insolência”); e, enquanto o cavalo bom é facilmente dirigido de acordo com os comando do cocheiro, o cavalo mau é indisciplinado e tende a obedecer à voz da paixão sensual, de maneira que precisa ser detido com o chicote.

d. Ética

Platão é eudemonista, ou seja, sua ética é voltada à busca do mais alto bem, isto é, da felicidade. E em que consiste a felicidade para Platão? Consiste no desenvolvimento da personalidade enquanto ser racional, no correto cultivo da alma, no bem-estar geral e harmonioso da vida. Platão admite, claro, que a satisfação do desejo, desde que sejam desejos inocentes e usufruídos com moderação, é parte da felicidade. No entanto, os mais elevados prazeres são aqueles que não são antecedidos de dor, ou seja, dos prazeres intelectuais.

O summum bonum ou felicidade do homem inclui, claro, o conhecimento de Deus – o que é óbvio, já que as formas são as ideias de Deus; contudo, se o Timeu for tomado de maneira literal e se supor que Deus está separado das formas e as contempla, a contemplação das formas pelo próprio homem, que é um componente integral de sua felicidade, o tornará similar a Deus. Mais ainda, homem algum poderá ser feliz a menos que reconheça a ação divina no mundo. Platão pode dizer, por conseguinte, que a felicidade divina é o padrão da felicidade do homem.

Diz Platão, portanto, que “os deuses devotam cuidado àquele cujo desejo é se tornar justo e ser como Deus, tanto quanto pode o homem alcançar a semelhança divina através da busca da virtude”. No entanto, somente o filósofo pode ser virtuoso porque somente ele detém o conhecimento necessário do que é o bem para o homem. É ele, o filósofo, que possui o conhecimento exato para nos guiar à virtude. Por isso o homem vulgar escolhe o mau: ele não sabe que o mau lhe prejudica e, assim, eleva determinado aspecto do mau, mesmo sabendo que em si é mau, à condição de bem e a ela se apega.

e. Política

Platão ensina que não há uma “moral estatal” acima da moral individual. O homem, por ser um animal social, se organiza socialmente e tal sociedade, portanto, é uma instituição “natural”. Ora, se é assim, as “morais” estatal e individual são uma e mesma moral: a moral humana. Eis por que Platão entendia que era coisa imperativa determinar a verdadeira natureza e função do Estado.

Na República, em suma, Platão estabelece três classes no Estado ideal: artesãos na base, a classe auxiliar ou militar logo acima e os guardiões (ou guardião) no topo. A família e a propriedade privada devem ser abolidas nas duas classes mais altas para o bem do Estado. Dada a evidente dificuldade em organizar tal Estado, “Sócrates” propõe como medida mínima investir o rei-filósofo de poder: é ele, que conhece o mundo das formas, que poderá tomá-las como modelo para a formação do Estado. A educação daqueles escolhidos como governantes terá por base a harmonia musical, a ginástica, a matemática e a astronomia. A matemática em especial, como já dissemos acima, terá a função de atrair o educando à verdade para aque adquira o espírito da filosofia. Contudo, a matemática é um mero prelúdio à dialética, cujo fim será alcançar a visão intelectual com o auxílio exclusivo da razão. O Estado, vê-se, não serve a uma classe, mas para o guiamento da vida reta: diz Platão que “todo o ouro que está sob e sobre a terra não é bastante para trocar pela virtude”. Até mesmo a classe escrava, inferior às três classes que mencionamos, deve ser tratada com ainda mais justiça e, explica Platão mui inteligentemente, pois quem reverencia a justiça e odeia a injustiça descobre que a essa classe se pode ser facilmente injusto.

Fonte: Frederick Copleston, Uma história da filosofia, Editora Ecclesiae, Campinas, SP, Brasil, 2021.

18 de janeiro de 2025

Breves notas sobre o ser


Assim como numa luta os movimentos só são possíveis graças à estabilidade do chão, que lhes dá sustentação, assim também o movimento (passagem da potência ao ato) só é possível graças a algo imutável, isto é, ao ser. A liberdade experimentada por um lutador só é possível graças ao chão: é ele que permite ao lutador explorar suas potencialidades. O ser humano, para florescer suas potencialidades e ganhar liberdade, também precisa desse “chão”: o ser, a ordem ontológica estabelecida por Deus.

As potencialidades do ser humano são como as cores, enquanto o ser é a própria luz. Quando as criaturas realizam seu ser elas estão realizando uma perfeição divina por participação. Negar o ser é como um peixe negar a existência da água. Deus não apenas doa o ser do nada às criaturas, mas ele as sustenta e conserva. Essa sustentação é uma continuação do ato da criação. Entre o nada e o ser há um abismo infinito, e transpor este abismo é necessária uma força infinita.

A criatura tem vários níveis de atualidade. O mais superficial é, por exemplo, no caso de um gato, sua cor, pelo, tamanho etc. Há um nível mais profundo, que é sua "gatidade" (a forma substancial, assim como no homem é sua "humanidade"), que é a raiz do nível mais superficial. No entanto, há ainda um nível mais profundo, que é aquilo no qual enraíza-se todas as criaturas: é o actus essendi, o ato de ser, o ser. O ser é o mediador (ponto de contato) transcendental da causalidade divina, ele é o primeiro princípio imanente de todos os entes. É ele que concentra toda a energia ontológica a partir da qual a criação se sustenta; é como se Deus estivesse “empurrando” a criação pelo ato de ser.

A diferença entre a criatura e Deus é que Deus é o Ser Subsistente, ele é Ser por essência, enquanto a criatura tem ser limitado por uma essência. No homem, o ser se distingue de sua essência, enquanto em Deus a essência é o Ser coincidem. O ser é dado ao homem, e ele não pode fazer nada em relação a ele. No entanto, embora o vínculo ontológico não possa ser rompido, o homem é capaz de moralmente romper tal vínculo, atrofiando as potencialidades que naturalmente tem para a realização de seu ser. Todo ser quer comunicar-se, todo ser quer florescer. Isso se observa nas plantas e animais, por exemplo. No homem, a inteligência e a vontade são as potências de sua alma que devem prioritariamente ser realizadas. Urge ao homem passar da potência ao ato, irradiar seu ato de ser, propender à sua plenitude. Trata-se de uma tendência estrutural e ontológica. O homem precisa aceitar a realidade, dizer sim a ela, para que possa estabelecer sua orientação diante do ser a partir da aceitação da verdade e do bem.

Mas como exercer o ser no mundo? Como organizar a vida humana para realizar-se, isto é, para a felicidade? Toda vida humana dá testemunho do anseio de alcançar a felicidade. Isso já vimos extensamente nas inúmeras postagens sobre amor, felicidade, aperfeiçoamento da alma, psicoterapia etc. O desejo humano de conhecer, a “perplexidade” ou “espanto” anunciado por Aristóteles, é precisamente o que lhe empurrará a conhecer seu fundamento, seu propósito, aquilo que lhe orientará diante da realidade. As questões fundamentais que a inteligência encontra lhe darão uma bússola que orientará o homem para o exercício de suas potencialidades, para sua afirmação no mundo. A metafísica - não a matemática, não a física, não a biologia - é a ciência que apresentará à inteligência o ser e por conseguinte apetecerá a vontade a buscá-lo em amor.

Ora, para o leitor deste blog não restará dúvida do que estamos falando: o homem tem um fim último, uma orientação verdadeira. Como só há uma verdade (o Cristo, evidentemente, o “chão”), então há só uma orientação verdadeira. Como só há um Deus (novamente, o Cristo, o “chão”), então há só um fim digno ao homem, um único “sumo bem”. Uma falsa orientação tolherá o livre desenvolvimento das potencialidades humanas. É como uma camisa de força.

Cumpramos, pois, nosso dever: desenvolver as virtudes intelectuais e morais que nos permitirão, por analogia, participar da vida do Ser nesta vida e nos séculos dos séculos.

14 de janeiro de 2025

Psicologia em 3 atos


Eu elogio a vida. Não a que levo, mas aquela que sei dever ser vivida. (Sêneca)

1. A pergunta fundamental

A filosofia é a base para o estudo da mente. É ela que fará – e tentará responder – a pergunta fundamental: o que sou eu?  Esse “eu” age de acordo com aquilo que o sustenta, de acordo com aquilo que lhe dá um sentido, um fim. O mito de Ésquilo de Prometeu (aquele que tem “antevisão”) e de seu irmão Epimeteu (aquele que tem “pós-visão”) conta a criação do mundo. Epimeteu criou os animais, mas não tinha mais nada para atribuir ao homem. Prometeu vai ao Monte Olimpo e rouba o fogo dos deuses, dando aos seres humanos a capacidade de cognição e entendimento da realidade.

A partir desse mito se pode compreender que a existência humana não é exatamente uma tragédia, como a expressão “tragédia grega” poderia sugerir, mas um “drama”, ou seja, um ambiente ou espaço dentro do qual devemos exercer o “fogo dos deuses” e cumprir a obrigação de nos aperfeiçoar, de nos desenvolver, e alcançar o mais que possível o estado para o qual fomos criados.

No diálogo A Apologia de Sócrates, Platão mostra ao leitor a imortalidade da alma e, mais do que isso, que o processo que o levou a descobri-la é a busca pela verdade. Essa mesma verdade é aquela buscada pelo “fogo dos deuses” roubado por Prometeu.

2. O apogeu

Na história humana, o apogeu foi a encarnação de Jesus Cristo, o Verbo. Em nossas vidas também há de haver um apogeu, mas isso depende da resposta a esta pergunta fundamental: qual a vida que você deseja viver?

Em seu Da Tranquilidade da Alma, Sêneca, motivado pela ética estoica, procura ensinar o viver bem, o viver uma vida bem vivida, uma vida que se aproxime da perfeição humana. Segundo Sêneca, essa vida bem vivida, essa “vida tranquila”, só é possível alcançá-la mediante a integração de todas as faculdades da alma, numa unidade em equilíbrio.

Tomás de Aquino, por seu lado, desenvolve com base na metafísica aristotélica o conhecimento acerca das paixões da alma. “Paixão”, como se sabe, é aquilo que a alma recebe do exterior, ou seja, aquilo que lhe sobrevém (sentir) e a modifica (compreender). A paixão, portanto, está no plano da afetividade, da “receptividade” do que vem de fora, e repercute na alma em forma de carência e desejo. A paixão é mais própria da potência sensitiva do que intelectiva, pois é a parte sensitiva que provoca mudanças corporais.

Os sofrimentos estão relacionados com o modo como nós nos afetamos (eis a paixão) pelas nossas vivências. A psicologia, portanto, lida com os movimentos da pessoa humana. As paixões, portanto, podem ser as centelhas que vão mover a pessoa a buscar bens – não bens materiais, mas bens imateriais.

3. O declínio

Em sua Sabedoria dos Antigos, Francis Bacon recorda personagens dos mitos da antiguidade clássica e os usa como fonte de inspiração para tratar 4 temas que lhe são caros: a distinção entre filosofia e teologia, o lugar do materialismo naturalista, o lugar do método científico e o realismo político. Embora seus temas tenham sido uma tentativa genuína de recobrar as verdades descobertas pelos antigos e medievais, fato é que, com ele e Descartes, inicia-se o período moderno, e as sucessivos erros causados pelas sucessivas revoluções. 

Por outro lado, Romano Guardini foi capaz, em meio às turbulências do mundo contemporâneo, de refletir e conceber o conceito de encontro. O encontro é aquilo que marca o homem, ao passo que o mundo é o lugar no qual se dão os encontros. São eles, os encontros, que permitem a relação do homem com a bondade e a verdade. O declínio do mundo contemporâneo é marcado pela destruição, ou pelo menos obstaculização, dos encontros que permitem tal engajamento espiritual.

Fonte: Paulo Pacheco, Psicologia em 3 atos, YouTube, 2024.