10 de junho de 2025

Gnose, o sobrenome da rosa


Maldito o homem que confia no homem. (Jeremias 17:5)

Positivistas vs. herméticos (ou racionalistas panteístas vs. místicos gnósticos, ou ockhamistas vs. echartianos)

A Idade Média assistiu, em sua agonia, a um grande debate filosófico religioso. Perdido o equilíbrio do tomismo, o homem medieval caiu em dois extremos opostos. De um lado, estavam os humanistas racionalistas de tendência panteísta cuja figura símbolo foi Frei Guilherme de Ockham, um Édipo moderno. Tais humanistas cultuavam o Homem como supremo valor e medida de um universo divino. Queriam destruir a sociedade medieval teocêntrica e estabelecer uma nova cosmovisão antropocêntrica. Julgavam que, graças à ciência e à técnica, o homem seria capaz de vencer todas as misérias do mundo, até criar uma era de grande prosperidade material e de completa felicidade natural. Eles punham essa esperança no Homem, redentor de si mesmo, construtor da Utopia. Do lado oposto, situavam-se os místicos de tendências gnósticas, cuja figura mais característica foi, nessa época, Mestre Eckhart. Esses místicos tinham uma visão extremamente pessimista da realidade. Para eles, o mundo era intrinsecamente mau e irredimível por ser obra de um deus perverso, distinto da Divindade. Entre a Divindade boa e o mundo, haveria um abismo absoluto. Se a Divindade era o Ser, o mundo criado seria o Nada. Se o mundo das criaturas era formado por seres, então a Divindade era o Nada absoluto.

Para estes místicos, a razão humana era má e só seria desejável perder-se no Nada divino. O demiurgo, criador mau, dotara o homem de razão para que esta o enganasse, apresentando-lhe o mundo como inteligível e, portanto, como bom. A ciência e a técnica eram ilusórias. A redenção seria obtida por uma fuga mágica do mundo real. A saída não estava numa Utopia futura, e sim na volta ao Paraíso original. O homem não deveria pretender construir um Reino neste mundo; pelo contrário, o Reino deveria ser o fruto do retorno ao passado primevo. ao Éden original adâmico, o que só se poderia obter por uma irrupção divina na História, nunca por força do intelecto.

* * *

Ser unívoco, equívoco e análogo

Com efeito, diante do ser, o espírito humano pode adotar três posturas:

1 - Considerar que o ser é unívoco. Quando tal ocorre, o homem caí no panteísmo, visto que, então, tanto uma pedra quanto deus são igualmente seres. É a posição de Parmênides, na filosofia antiga. Desta postura decorria a adoração do universo e o desprezo do indivíduo. Tudo seria Deus. No mundo moderno, essa tendência panteísta, fruto de uma visão unívoca e igualitária do ser, conduziu à adoração do Homem e da Razão, último estágio da evolução. O cientificismo materialista e racionalista do mundo atual tem aí suas raízes que historicamente principiaram com o nominalismo de Ockham.

2 - Considerar o ser como equívoco. Em consequência. afirma-se que o universo não tem nenhuma relação com o Ser de Deus. Ora, como ensina São Paulo na Epístola aos Romanos (1,20), “as perfeições invisíveis de Deus tornaram-se visíveis, depois da criação do mundo, e podem ser compreendidas por meio das coisas criadas”. Afirmar que o ser é equivoco é negar qualquer possibilidade de compreender algo de Deus através das criaturas. Desemboca-se então no deísmo e. depois, no ateísmo.

Aprofundando-se essa segunda tendência, pode-se chegar a afirmar que os seres criados são tão dissemelhantes da Divindade que se poderia dizer que são contrários a Ela. Quando tal ocorre. o homem cai na Gnose. Esta considera que o universo é essencialmente mau por aprisionar as partículas da Divindade na matéria. nas malhas da Lógica e nas cadeias da Moral. Tais partículas eram chamadas de Fünkenlein por Mestre Eckhart, de Atmans pelos Brâmanes, de Éons pelos gnósticos dos primeiros séculos do cristianismo.

O Deus criador do universo seria o demiurgo mau. Ele teria dado a razão ao homem para que esta o enganasse. Compreendendo o mundo, o homem julgá-lo-ia bom, porque inteligível. O homem quereria, por isso, permanecer neste mundo, e não desejaria retomar à Divindade da qual procedera. A libertação das partículas divinas aprisionadas na matéria exigiria a renúncia à razão, além da destruição da materialidade e da violação de todas as leis morais estabelecidas pelo Deus criador do universo. No extremo, desejar-se-ia a destruição de todo ser, de toda existência. A Gnose é antimetafísica. Dessa posição antirracional participam muitos e importantes movimentos do mundo atual. Delas o nazismo irracional e antimetafísico é o exemplo mais trágico e mais criminoso. Na chamada "Civilização Moderna", as nascentes deste rio gnóstico se encontram em Mestre Eckhart.

3 - Considerar o ser como análogo. Isto significa que as criaturas do universo são seres, mas não do mesmo modo como Deus é Ser. Nas criaturas, pode haver vestígio, imagem ou semelhança de Deus. Nas coisas materiais e irracionais, há apenas vestígio de Deus pela ordem e bondade de seu ser; nos seres racionais e espirituais, há imagem de Deus, porque, como o Criador, esses seres têm inteligência e vontade; neles, ainda, pode haver semelhança, caso sejam obedientes à lei divina que os faz santos como Deus. Tal é a explanação de São Boaventura.

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O mundo para os gnósticos

Hugo de S. Victor e São Boaventura falam do mundo como poema. São Boaventura ensina que Deus escreveu dois livros: o primeiro foi o mundo; o segundo, a Bíblia. O mundo seria um livro porque Deus, ao criar cada coisa, dizia uma palavra. "Faça-se a luz", disse Deus, e a luz passou a existir. Assim, cada ser criado corresponde a uma palavra de Deus, e o mundo é, então, um conjunto de palavras divinas encarnadas na matéria. Ora, um conjunto tão grande de palavras forma um livro, e o Universo é, portanto, um belíssimo poema.

A diferença entre os pensadores católicos e os gnósticos a respeito do mundo está em que, para os gnósticos, o mundo oculta labirinticamente a verdade e oferece mentiras enganadoras, enquanto para os católicos, o mundo é um livro legível e facilmente inteligível. Para a Gnose, o mundo é um livro labirinto enganador, concebido pela mente malvada e mentirosa do demiurgo. Para o católico, o mundo não só fala, mas proclama e canta um hino à glória de Deus. E só não ouve esse cântico, só não compreende esse poema, quem não tem l'occhio chiaro e l'afetto puro, como diz Dante.

A questão dos universais

Desde a Grécia antiga até o fim da Idade Média, o problema dos universais suscitou veementes polêmicas. Como se sabe, universais são conceitos que podem ser aplicados a todos os indivíduos de uma mesma espécie. Por exemplo, o conceito de rosa engloba todas as rosas existentes. ou que possam existir, em qualquer tempo.

O que se tem discutido é em que sentido, ou como existem os universais. Com relação a isso. formaram-se três correntes mais importantes:

a) o realismo;

b) o realismo moderado;

c) o nominalismo.

Em O Nome do Rosa quase não se fala da posição do realismo moderado. que é a posição tomista assumida pela Igreja, face à questão dos universais. No tempo em que ocorreram os fatos na abadia do romance de Eco, as posições filosóficas mais em voga, e que se digladiavam em todas as universidades e mosteiros, eram a posição platonizante, do realismo, e a do nominalismo. O realismo de tom platônico era defendido pelos místicos gnosticizantes seguidores de Mestre Eckhart. O nominalismo era partilhado pelos franciscanos seguidores de Guilherme de Ockham e por todos aqueles que tendiam para posições empiristas, racionalistas e panteístas.

Eco apresenta o debate dos universais como se houvesse apenas essas duas correntes (a mística e a racionalista) debatendo a questão dos universais. Os tomistas nem aparecem. Eco leva o leitor comum a julgar que a posição mística e gnóstica é a da Igreja Católica, o que é uma falsificação histórica.

Para que o leitor tenha ideia do que se debatia e do que se trata em O nome da Rosa, a respeito dos universais, faremos uma breve exposição dessa questão filosófica, procurando salientar a que consequências levava cada uma das soluções aventadas.

a) A doutrina do realismo filosófico sobre os universais

Para Platão e para seus seguidores, os universais teriam existência real fora da mente, no mundo superior das ideias. Esse mundo das ideias seria perfeito, divino e inteiramente desprovido de matéria. Em nosso mundo, a forma ou ideia de um ente - comum a todos os exemplares individuais de sua espécie - estaria atualmente aprisionada nos seres materiais individuais.

Explicavam os platonizantes que a ideia de rosa - o universal rosa - é uma só para todas as rosas individuais. Essa ideia não é só única e universal, como também é absolutamente perfeita, visto que os defeitos possíveis de uma rosa existem somente na matéria. É apenas a rosa concreta que murcha, é danificada ou morre. O conceito universal jamais se deteriora, envelhece. murcha ou morre. O universal é perfeito e imutável. A ideia universal goza então de uma perfeição tal que os platónicos a consideravam divina. Enquanto a rosa individual. concreta, material fenece e perece, o universal rosa permanece para sempre o mesmo, perfeito e imutável.

Concluíam disto os filósofos de tendência platônica, que a matéria era a fonte de todas as imperfeições e de todo o mal. Era na matéria, causa da individuação, que estava a origem do mal. Estar neste mundo material era ter as ideias divinas aprisionadas no cárcere da matéria. Só com a libertação da matéria é que seria possível fazer as ideias universais divinas retornarem ao pleroma divino de onde tinham caído.

Essa visão platônica era gnosticizante, como bem o demonstrou Simone de Pètrement.

Para os gnósticos, há uma oposição radical entre espírito e matéria. O espírito é divino. A matéria, produzida pelo demiurgo, é sempre má. Na constituição dos seres a forma ideal é, pois, divina, enquanto a matéria é seu cárcere maléfico. Como a matéria é a causa da individuação, para o gnóstico ser indivíduo ou pessoa é um mal. O bem está na absorção ou perda de todo eu no Todo divino, que coincide dialeticamente com o Nada absoluto.

Essa posição de divinização do universal e condenação de todo ser individual foi defendida por Mestre Eckhart e por todos os sectários gnósticos do fim da Idade Média, entre os quais os Irmãos do Livre Espírito. Não queremos dizer que todos os filósofos que defenderam o realismo, em qualquer tempo, tenham sido, de fato, gnósticos. Queremos dizer, isto sim, que o realismo, levado às suas últimas consequências, chega à Gnose.

A escolástica admitia a parcela de verdade em que Platão se fundara para cair nesse erro. Com efeito, as essências criadas por Deus existiram primeiramente na Inteligência ou Verbo de Deus como ideias exemplares. Assim como um artista primeiro tem ideia do que vai esculpir, e, depois, esculpe o que ideou, assim também a Sabedoria de Deus concebeu o que ia criar. Por isso, Deus, ao criar, dizia antes uma palavra. Por isso também se lê em São João que “tudo foi feito pelo Verbo e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3).

b) O nominalismo

No final da Idade Média, surgiu uma corrente de pensamento diametralmente oposta ao realismo platônico. Roscelin e, um tanto, Abelardo tinham-na preparado, mas ela só tomou todo o seu maior desenvolvimento com a filosofia de Guilherme de Ockham, retratado por Eco na figura de Frei Guilherme de Baskerville.

Para o nominalismo, os universais são meros nomes. Nenhuma realidade corresponderia a um conceito universal, que só existiria na mente. Os universais não se realizariam de modo algum nas coisas. São apenas obras do espírito que as palavras exprimem. Assim, “rosa” é apenas um nome. O nome “rosa” é um mero flatus vocis. A única realidade é a rosa individual, diferente de todas as demais rosas existentes.

Ockham baseou-se nas ideias de Petrus Hispanus, expostas no livro De supositionibus. Suposição é a posição que um termo ocupa numa frase, no lugar de outras coisas, diz Ockham. Podemos distinguir três tipos de suposição:

1 - Suposição material existe quando o termo empregado numa frase designa apenas a própria palavra usada. Na frase: “a rosa é uma palavra de quatro letras”, a palavra rosa é tomada em si mesma, como termo escrito ou falado.

2 - Suposição pessoal existe quando o termo usado numa frase designa um ente individual concreto e determinado. Por exemplo, na sentença: “a rosa está se abrindo”, o termo rosa está no lugar de uma determinada rosa individual concreta, à qual se faz referência.

3 - Suposição simples ocorre quando o termo utilizado designa, não um ser individual concreto, mas o conceito universal de um ser. É o que acontece com o termo rosa, na frase: “a rosa é uma flor”.

Conforme essa teoria, a palavra rosa, como universal, indica apenas um conceito mental, que não existe, de fato, na realidade. Não existindo os universais, o homem só poderia conhecer as rosas individuais, e, o que se conhece de uma rosa não pode ser aplicado a nenhuma outra rosa.

Como já ensinara Abelardo, no século XII, Ockham dizia que só o conhecimento do singular é verdadeiro, pois o homem tem dele um conhecimento intuitivo, direto. Assim, só o particular seria real. A essência equivaleria à existência.

Daí se concluía que o verdadeiro conhecimento não pode ser teórico, e sim prático e experimental. É desses pensamentos que vai nascer o experimentalismo, e o cientificismo do mundo moderno.

Isto, a longo termo, acaba por negar não só a existência das essências e dos universais, como também o valor de qualquer conhecimento teórico racional, pois “é extremamente difícil para uma tal doutrina explicar, a partir desses blocos individuais, sem nada em comum, como o pensamento pode formar as noções de gêneros e espécies”, como diz Etienne Gilson.

[...]

Assim, a negação das essências e dos universais reduzia o ockhamismo a um empirismo e a um experimentalismo radicais que comprometiam toda noção de relação.

Isto conduz ao problema da causalidade, pois entre uma causa e um efeito o que existe é uma relação. A relação é um acidente que não está num ser concreto, não é propriamente um ens in allio [ente em outro]. Ela está “entre” os seres que se relacionam. Para Ockham, que só aceitava o individual concreto, a relação não tinha nenhuma realidade, a não ser a dos termos. Por isso ele negava a relação de causa e efeito. Argumentava dizendo que a relação de causa e efeito não pode ser anterior ao efeito, já que a relação supõe a existência dos dois termos; nem podia ser simultânea, porque o efeito é consequência dela; nem podia ser posterior, pois que seria preciso dizer então que ela se produz a si mesma. O único meio de provar que uma coisa é causa de outra seria, portanto, a experiência, raciocinando com a presença ou com a ausência da causa e do efeito.

[...]

Ockham em sua obra Centiloquium, declara que a própria existência de Deus não pode ser provada. A existência de Deus, assim como sua unicidade, sua infinitude, sua onisciência, seriam questões às quais se deveria dar apenas uma adesão de fé. Desse modo, Ockham cai no fideísmo, retirando à sua teologia qualquer apoio racional.

[...]

Também a existência da alma racional no homem só poderia ser aceita pela fé, pois a razão não conseguiria prová-la. Por onde, o ceticismo de Ockham raia pelo materialismo.

A ordem do mundo, como toda ordem, consiste em uma relação entre seus elementos componentes. Ora, negando a existência real das relações, Ockham não poderia aceitar a existência de ordem no mundo e muito menos que esta ordem tivesse fundamento na própria natureza de Deus que fez o universo à sua imagem e semelhança. Para Ockham, a suposta ordem posta por Deus no mundo - se existe - é completamente arbitrária. Deus poderia ter feito o universo em qualquer outra disposição. Noutras palavras, não haveria fundamento racional objetivo para a ordem do universo.

Em consequência, a ordem moral também não era considerada objetiva. Uma ação seria pecaminosa apenas porque Deus a proibira, nada havendo nela de objetivamente mau. Se Deus tivesse ordenado o pecado, ele seria bom. A ordem moral, portanto, poderia ser totalmente invertida pelo arbítrio divino. Mais ainda. Até mesmo sob a ordem moral atual, Deus poderia ordenar a alguém que a violasse, sendo então tal ato virtuoso. O livre querer de Deus seria tão absoluto que poderia inverter a ordem moral. Esse livre querer de Deus não se fundamentaria na essência divina e, por isso, não teria nenhuma objetividade.

Desse relativismo moral os ockhamistas logo deduziram a negação de toda ordem moral, tendo alguns chegados a dizer que a lei de Deus era a única causa do pecado. [Aí admitiam então haver causa...] Outros defenderam o mais radical antinomismo, muito semelhante ao da Cabala e ao das seitas gnósticas.

c) O realismo moderado

A terceira posição da filosofia medieval face à questão dos universais é a do realismo moderado, defendida por Santo Tomás e adotada pela Igreja.

O universal nem é um mero nome, como afirmavam os nominalistas, nem tem existência num mundo imaterial de puras ideias, como diziam os platônicos e como queriam os gnósticos.

Para os defensores do realismo moderado - em particular para Santo Tomás – é preciso distinguir, no espírito humano dois universais, conforme o aspecto sob o qual se considera o universal:

1 - Universal direto, ou seja, um tipo de ser atribuído de modo unívoco a muitos seres individuais. Este universal direto é obtido pela abstração das notas individuais de cada ser concreto. O universal então acrescenta, à ideia do tipo de ser que ele expressa, um estado de abstração e de não individuação, de universalidade. É o universale post rem [universal após a coisa], existente em nossa mente por abstração.

2 - Universal reflexo que tem esse nome porque só é percebido por nossa inteligência após a comparação entre o universal direto, que havíamos concebido, com as coisas em que o aplicamos e nas quais ele se realiza de modo mais ou menos perfeito. A esse universal reflexo se dá também o nome de universal formal.

O universal direto se acha nas coisas quanto ao que ele expressa, não quanto ao modo com que o expressa.

Em cada ser concreto, há o indivíduo único, identificado por suas notas particulares individualizantes, numa essência que permite que se manifestem nele todas as atividades existentes em todos os seres de sua espécie. É esta essência que é objeto de nosso espírito sob a forma de uma mesma ideia, aplicável a todos os indivíduos da mesma espécie, e que exprime o que eles são, independentemente de suas notas individualizantes.

Desse modo, podemos considerar uma essência de três modos diversos: (a) em si mesma, com suas notas constitutivas, tal como ela existe na mente divina, corno ideia exemplar, eterna em Deus. É o universale ante rem [universal antes da coisa], isto é, o universal que Deus concebeu antes de criar uma coisa. É a este universale ante rem que Platão deu existência no mundo das ideias, como seres divinos, fora da Sabedoria de Deus. (b) a essência enquanto existente em um indivíduo qualquer em estado concreto é o universale in re [universal na coisa]. (c) a essência enquanto concebida em nosso espírito, abstrata e universa. É o universale post rem.

O universal direto (universale post rem) tem existência real em nossas mentes, enquanto conceito abstrato, e existe nas coisas concretas, enquanto forma substancial (universale in re). Por essa razão, nos é possível conhecer o que as coisas são. Tendo o homem a ideia universal “rosa” em sua mente, ao ver uma rosa real, ele pode conhecer que o conceito de rosa, existente em sua mente, existe também, formalmente na rosa concreta, individual.

O universal reflexo não se encontra realizado nem sequer nas coisas enquanto o que ele expressa, pois ele é um simples ser de razão, que tem, entretanto, fundamento nos seres individuais reais, isto é, a sua semelhança, que permite a nosso espírito agrupar seres individuais em uma mesma espécie.

Esta, em termos breves, a teoria do realismo moderado, que evita quer o materialismo, a que conduz o nominalismo, quer a Gnose, termo final do erro do realismo.

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O impulso psicológico básico da gnose e do panteísmo

Qual é essa raiz comum da qual brotam os sonhos racionalistas de construir a Utopia e os delírios irracionais da magia alquímica para vencer a morte e todos os males que afligem o homem? Essa raiz é a inconformidade com as limitações do ser humano, e particularmente com as penas que o punem. O panteísta racionalista e o gnóstico irracionalista desejam desesperadamente redimir o homem por seu próprio esforço, usando de meios naturais. Esse desejo impotente e desesperado os faz odiar a realidade tal qual ela é. Os faz odiar também o Criador e a criação feita à sua imagem e semelhança. É no ódio a Deus criador e ordenador que a Gnose alógica e o panteísmo racionalista comungam e dialeticamente se identificam. O panteísmo racionalista quer construir a Utopia. A Gnose quer a realização mágica do Milênio.

Fonte: Orlando Fedeli, Nos labirintos de Eco, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil, 2023, trechos selecionados.

6 de junho de 2025

A psicologia da fé


Quanto mais elevada a virtude tanto mais evanescente torna-se seu entendimento. Com a fé, uma virtude considerada “teologal” ou “sobrenatural” pela ética católica romana, não é diferente. Fé não deixa de ser “crença”, mas não uma crença qualquer. Podemos crer numa verdade natural qualquer, como as leis da física-matemática ou da biologia, e a base de tal crença será a verdade intrínseca nelas contidas. Mas com a fé é diferente: cremos em algo “por fé” por causa da autoridade de Deus, que não pode enganar-se ou enganar-nos.

O primeiro a notar aqui é que a fé é um ato da inteligência. Não, não é um ato do “coração”, do “sentimento”, da “intuição”. A fé admite um ensinamento, um fato, uma verdade com base no testemunho de alguém.

O segundo a notar aqui é que a fé é um ato da vontade, ou seja, é algo sob nossa responsabilidade moral.

Vejamos com alguns detalhes como opera a fé sob ambos os pontos de vista.

Inteligência

Os preliminares lógicos da fé se sustentam (1) na filosofia, que demonstra a existência de Deus e (2) na história, que apresentam os fatos ligados à revelação de Jesus Cristo. São os chamados preâmbulos da fé. A fé é, portanto, é o elemento necessário para atingir certas realidades distantes no tempo ou estritamente sobrenaturais. É a única via que se abre à inteligência humana durante a sua peregrinação terrena.

No entanto,

[i]nerente à nossa natureza e, por isso, sensível em todas as gerações, é esta inércia da matéria que não se eleva espontaneamente à região das realidades espirituais; é esta inclinação para a terra e os seus bens, que se nos impõem pela sua indispensável necessidade e nos atraem pela tangibilidade de suas seduções sensíveis. Toda a atividade intelectual superior encontrará sempre, neste invólucro material que é a metade menos nobre de nós mesmos, uma oposição que é possível vencer, mas não é possível eliminar. Estas dificuldades psicológicas que embaraçam o surto da inteligência para as esferas elevadas do pensamento puro, agravam-se, no caso particular da instrução religiosa, com a perspectiva do descobrimento de novos deveres, — ameaça contínua à livre e ilimitada satisfação das paixões.

Franca explica que é o próprio Deus quem auxilia o homem na ascese intelectual – eis a virtude teologal em ação. Vejamos:

Realizar a nossa unidade interior é realizar a nossa plenitude. Um ser vale o que vale a sua unidade; cindi-lo é destruí-lo: unificá-lo é dar-lhe o máximo de estabilidade e de perfeição. Enquanto não nos elevamos acima da multiplicidade criada, estamos divididos, dissipados, dispersos. Na ordem ontológica. Deus é o princípio de toda a unidade, como de toda a realidade. Ele, Causa Primeira de tudo o que é; Ele, Fim para o qual tudo tende; alfa e ômega do universo. Na ordem psicológica e moral, começamos o nosso trabalho de unificação quando refletimos a ordem da realidade e entramos a ver, julgar e agir através da luz que vem de Deus. Mais bem conhecido e mais amado, Deus vai aos poucos concentrando as nossas ideias e as nossas aspirações na unidade de sua paz infinita. Através das vicissitudes da multiplicidade terrena este recolhimento unificador é a melhor preparação à felicidade definitiva das inteligências fixas na intuição beatífica da Suprema Verdade, Plenitude de todas as perfeições. É o significado mais profundo da palavra divina de Cristo: haec est vita aeterna ui cognoscant te solum Deum verum et quem misisti Jesus Christum [e a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste – João 17:3].

Quais as disposições que podem induzir a um desequilíbrio no uso do intelecto? Em primeiro lugar, a unilateralidade, ou seja, a especialização intensa e prematura a determinado objeto em detrimento de outros. Por exemplo, alguém que se hiperespecializa em matemática perde as delicadezas de uma fina análise psicológica. Como diz Franca, são “olhos que vivem sempre abertos à luz meridiana e que acabam por não discernir os objetos no claro-escuro de uma penumbra”. É por isso que muitos, ao se depararem com os preâmbulos da fé, têm seu espírito recolhido àquilo que transcende o domínio dos sentidos, como é o caso da existência de Deus, a questão do ser, a analogia entis e outros temas metafísicos. A simplicidade das deduções matemáticas e dos métodos científicos não se aplica aqui. Como dizia Aristóteles: “É próprio de uma inteligência disciplinada não exigir uma evidência de outra espécie que a permitida pela natureza do objeto estudado”. A inteligência disciplinada, portanto, apresenta perfeita docilidade ao real em toda a riqueza de sua complexidade.

Em segundo lugar, há o preconceito. Por exemplo, quantos não partem de pressupostos cientificistas quando adentram questões metafísicas? A ciência, em vez de servir de observação serena dos fatos, torna-se uma ferramenta de seleção e interpretação tendenciosa imposta pela tirania do preconceito. A negação do sobrenatural não é resultado de nenhuma investigação científica, mas a orientação preliminar a qualquer investigação.

Vontade

É no domínio da vontade que reside o maior risco de cairmos em enganos. Isso ocorre porque o movimento da vontade pode dar-se não pela evidência objetiva proporcionada, mas pela atração de um interesse. O assentimento da vontade ao interesse figura-lhe um bem: estamos no campo das simpatias e aversões, do orgulho, da vaidade, do respeito social, das complacências ambiciosas, da dificuldade em romper opiniões bem acolhidas no meio, da família, do grupo profissional etc. Como diz Leonel Franca, afirmamos mais do que vemos.

Mas então qual a “função” da vontade no contexto da fé (ou na adesão a qualquer verdade)? A primeira e mais simples é determinar a inteligência ao exercício de sua atividade. Em outras palavras, estamos falando da atenção.

No entanto, sabemos perfeitamente que há verdade que pelo seu objeto complexo ou pelo caráter elevado e abstrato não se apresentam ao espírito com evidência avassaladora. Se estas verdades têm repercussões práticas importantes cumpre ainda ajuntar à boa educação do espírito as retas disposições do coração. A influência das paixões e das más inclinações morais podem obnubilar a luz dos argumentos e impedir a visão serena da realidade. Eis que, além da atenção, é preciso o concurso da retidão moral sob pena de a adesão intelectual ser sobrepujada por dúvidas imprudentes – chamam-se assim por elas darem mostra de pouca sabedoria. A vontade se enfraquece e a inteligência se extravia nos meandros de labirintos.

É por isso que, como diria Platão, é preciso ir à verdade com toda a alma, pois nota-se que o principal obstáculo à fé não está nas dificuldades intelectuais propriamente, mas nos sacrifícios que ela impõe. Quem não ama a verdade não merece conhecê-la.

Quais as disposições que podem induzir a um desequilíbrio no uso da vontade? Em primeiro lugar, o orgulho. Como diz sabiamente Franca: “É através de um programa de viver que optamos por uma fórmula de pensar”. Se Platão está certo no que disse, ou amamos a verdade acima de tudo, inclusive da vida, ou amamos a nós mais que a verdade. Em outras palavras, ou amamos a Deus até ao desprezo de si, ou amamos a nós até ao desprezo de Deus. No homem observamos o orgulho de duas formas: (a) estima excessiva do próprio valor (“dignidade pessoal”) e (b) desejo imoderado da estima dos outros (“sociabilidade”). De qualquer forma, nota-se a intolerância de qualquer superioridade e, por conseguinte, o desprezo de qualquer inferioridade. Como solucionar a sensação de superioridade (ou inferioridade) que sentimos ante o próximo? Franca propõe contemplar o ser humano não acidentalmente, mas substancialmente, e, a partir daí, extrair seu devido “lugar ontológico” ante o Ser. Vejamos:

Há uma ordem essencial que põe os seres em seu lugar e os liga pela necessidade de relações indestrutíveis na harmonia do Universo. Como toda a criatura, o homem é, de sua natureza, dependente. A existência não a tem ele de si mesmo, nem de si mesmo a pode conservar ou prolongar-lhe a duração; recebeu-a de outrem. A essência de ser racional, com as suas exigências e finalidades, não a construiu ele; outro é o seu Autor. O universo que o envolve com a variedade das naturezas, regidas por leis próprias e orientadas para fins determinados, tão pouco dele depende na sua existência e na sua teleologia. O homem não pode crer ou aniquilar um átomo nem alterar a menor das leis naturais; só lhe é dado utilizar as energias cósmicas para os seus fins humanos, mas ainda assim obedecendo-lhes aos princípios que regem o seu jogo natural: naturae non nisi parendo imperatur [só se governa a natureza obedecendo-a], dizia Bacon. [...] Eis o lugar essencial do homem na hierarquia dos seres. Aceitá-lo voluntariamente é ser humilde. Nos seus mais altos fundamentos ontológicos, a humildade é luz na inteligência e justiça no coração. A humildade é, pois, a expressão da verdade e da ordem.

Se Deus é o Primeiro Princípio e o Fim Último, o Alfa e o Ômega, então fica evidente que o orgulhoso, pelo dinamismo interno de seu próprio desregramento e cegueira, tende a subtrair-se à própria lei e a desviar-se do próprio fim. Ele não reconhece nenhuma autoridade que não seja seu próprio coração. Franca não deixa de notar, como o vimos em Orlando Fedeli em algumas ocasiões (aqui  e aqui), a tendência das filosofias e religiões de separarem os seres humanos em grupos ou extratos, dentro dos quais há um escol de iniciados detentores de uma revelação esotérica e uma massa fraca e ignóbil condenada à ilusão e ao erro. É assim em Plotino, Marco Aurélio, Epiteto, nos gnósticos, Voltaire, Nietzsche. Em Cristo, no entanto, as almas se distinguem por sua elevação moral.

Lembre-se: o orgulho surge quando nos esquecemos de que somos dependentes, na existência e na finalidade, de um Primeiro Princípio.

Em segundo lugar, a vontade é desequilibrada pela sensualidade. Enquanto consciência de uma harmonia vital, o prazer em si é um bem. É como se o prazer fosse um atestado da racionalidade que há por trás dele, mais ou menos como o perfume de uma flor que atesta sua beleza e sua vitalidade. Mas assim como o perfume de uma flor pode enganar ocultando uma flor doente, o desfrute dos prazeres da sensualidade pode ocultar uma personalidade doente. A ordem normal dos valores deveria submeter a sensualidade à potência racional do homem, mas quando o egoísmo se expressa brutalmente se vê o contrário: a desordem se manifesta na escravização da razão às potências sensitivas. O homem perde as prerrogativas da humanidade.

O mecanismo básico da sensualidade desordenada é diminuir a capacidade de dedicação e estreitar os horizontes da vida. A busca desordenada de prazeres forçosamente projeta os sentidos para fora e acabam por projetar para dentro da alma a agitação e a instabilidade fugaz das emoções associadas aos sentidos. O ambiente indispensável ao trabalho intelectual fecundo e elevado é destruído pela tal agitação e instabilidade. A inteligência, se entra em atividade, é para atender, como serva humilhada, aos ditames da sensualidade. Hipertrofia-se o animal em detrimento do racional. É claro que indivíduos assim podem alcançar grandes glórias em suas áreas de atuação, mas aqui não cabe vaticinar que todo individuo centrado na sensualidade será um fracassado ou algo assim. Mas, sim, cabe vaticinar que todo indivíduo centrado na sensualidade terá seu potencial diminuído, minado, arruinado.

Por fim, lembremo-nos de que a experiência de uma vida moralmente ordenada uma maior assimilação, ou seja, uma maior semelhança natural e ontológica entre Deus e o homem.

Fonte: Leonel Franca, A psicologia da fé, Calvariae Editorial, Sertanópolis, PR, Brasil, 2019.

2 de junho de 2025

Breves notas do III Congresso de Psicologia Tomista


O desenvolvimento psicológico
(Patricia Schell)

A psicologia do desenvolvimento pode ser chamada também de psicologia do crescimento. O fim último do homem é a contemplação do bem natural e sobrenatural. O princípio vital do homem está fora do corpo e, portanto, a pessoa humana deve ser o elemento alvo do desenvolvimento. A psicologia contemporânea, no entanto, enxerga o recém-nascido como alvo de mera “adaptação” (p.ex., Piaget, Freud).

Para Tomás de Aquino a alma é espiritual e, portanto, seu crescimento não pode ser quantitativo, mas necessariamente tem de ser qualitativo, ou seja, o próprio da alma não é “crescer”, mas melhorar. Corpo e espírito se desenvolvem, tanto nos seus aspectos biológicos quanto sensíveis, perceptíveis, emocionais, e, por fim, racionais e volitivos.

A primeira etapa da formação da pessoa é psicossensitiva, ou seja, quando o homem recebe suas primeiras impressões psíquicas. Aqui urge a formação da temperança/moderação do tato, isto é, a ordenação da parte sensitiva para que, no futuro, haja o devido “acoplamento” à parte racional, para que se desenvolva uma “serenidade básica”. Em outras palavras, engendrar-se-á uma disposição para a aquisição das virtudes.

São os pais os responsáveis por apresentar os bens que na criança, em seu coração, despertarão o apetite do amor. Eis que, sem famílias, não há crianças saudáveis.

A partir desta formação, as virtudes intelectuais poderão se desenvolver (artes, ciências etc.). Por isso que a adolescência não é marcada pelo despertar da sexualidade, embora isso ocorre de fato, mas por algo muito maior: pela consciência de si mesmo. Este despertar é fundamental antes que desperte a sexualidade de modo que esta não paute aquela. Para entrar na vida adulta, portanto, o adolescente deve aprender a dominar a si mesmo. Governar a si mesmo é ser adulto, ou seja, ser prudente é ser adulto. Eis que a maturidade se caracteriza em não perturbar o juízo reto com desvios sensíveis e, com isso, render-se à precipitação, à inconsideração e ao ânimo cambiante. A maturidade é algo que tem de ser conquistado, não é algo que surge espontaneamente.

“A plenitude dos dons de Cristo”, eis a maturidade a que somos destinados.

A vocação do psicólogo (Ignacio Andereggen)

Vocação é algo próprio de Deus, não do homem. É um chamado de Deus, não uma escolha individual, não uma questão de “gosto”. Em suma, vocação é estar na beleza do conjunto ordenado de Deus, ou seja, o chamado de Deus é para que participemos de Sua ordem, de Sua vida. É claro que a resposta humana a esse chamado existe e é livre, mas nenhuma escolha será verdadeiramente livre se não for Deus quem a levá-la a cumprimento.

No caso do psicólogo, a vocação é servir a Deus e aos homens por caridade à terapia. Não é, portanto, uma “vocação individual”, mas algo comunitário, social, e tem caráter santificador (ou seja, purificador) à moda de um diácono. Observe aqui a vocação (chamado) de Deus enquanto o psicólogo se dedica como um instrumento de tal ação divina entre o sacerdote e o povo (por isso “diácono”).

Buscar sua própria perfeição e, ato contínuo, a perfeição do paciente não é neurótico. “Buscar a perfeição não é neurótico”.

O psicólogo como mestre das virtudes (Pablo Lego)

Adquirir uma virtude é adquirir uma plenitude. A virtude dispõe a pessoa a agir com prontidão, facilidade e gozo. O psicólogo funciona como modelo da virtude: se um careca não inspira confiança para nos tratar da calvície, menos ainda nos inspiraria um psicólogo para nos tratar de um vício; afinal, ninguém pode dar o que não tem.

A terapia tem de levar o paciente à contemplação da verdade, a uma jornada filosófica. O paciente deve notar que é a razão que o conduzirá à verdade da vida e de seus problemas.

Prudência: é ela que impera sobre seus atos, é a principal virtude do psicólogo. Com ela o psicólogo delibera quando e quais conselhos dar, mas acima de tudo o que é melhor ao paciente, ou seja, para iluminar o paciente a retificar suas intenções.

Temperança: é fundamental porque é o amor que o terapeuta demonstra ao paciente. É necessário, nesse contexto, desenvolver paciência e mansidão porque o terapeuta busca o bem do paciente. Há que se repetir, sessão após sessão, com firmeza, o que foi explicado anteriormente.

Justiça: quando aponta os efeitos da terapia o psicólogo a demonstra in loco. Por padrão o paciente não percebe seu amor desordenado à sua própria imagem e, portanto, o terapeuta deve levá-lo a enxergar que deve aos outros algo que lhes corresponde.

Fortaleza: em geral é a virtude mais deteriorado nos tempos atuais. Caracteriza-se pelo medo e pela covardia. O terapeuta atento motiva o paciente a persistir e resistir aos medos que o afastam do bem.

Por fim, cabe lembrar que o terapeuta nunca vai ser sempre oportuno, mas tem de supor a vida da graça divina para além das virtudes humanas. Há uma espécie de eixo de virtudes transversais a todo o processo terapêutico: fé, esperança, caridade e prudência infusa.

Se o terapeuta não tem vida interior não tem como atingir (ou “atrair”) o paciente à Fonte da verdade, da beleza e do bem. Não há efeito se as palavras não brotarem da profundidade da experiência da vida interior. Por isso não existe método ou esquema terapêutico rígido.

Transtornos de ansiedade (Zelmira Seligmann)

A magnitude da paixão depende não só do poder do agente, mas também da passibilidade do paciente; pois os que são facilmente passíveis padecem muito do que é pouco ativo. Na ansiedade, a principal paixão é o temor. O temor é o sentimento de que se vai perder aquilo que se deseja ou o que se está apegado. O homem busca a segurança e a estabilidade e teme tudo aquilo que ameaça fragilizá-lo.

Na idade contemporânea, a morte dos débeis não mais nos deixa impávidos, ou seja, a exposição corriqueira a situações de morte e morticínios em geral nos dessensibilizam quanto à perda da integridade do ser. O pecado, enquanto morte da alma, mesmo que não tenhamos ciência dele, gera ansiedade/angústia. Há um mal-estar generalizado cujos efeitos também serão corporais. Há um apego a este mundo. A psicologia moderna quer nos fazer crer que é possível sentir-se bem vivendo mal. A pusilanimidade é uma loucura porque deforma a realidade pela imaginação.

Eis os dois passos terapêuticos para combater a ansiedade:

1) Retificar o amor. O mor ao próximo e a Deus minimiza a ansiedade (temor). A vida da alma é mais importante que a vida biológica. O temor a Deus é o único temor virtuoso.

2) Desapego das coisas terrenas, de maneira que o paciente seja capaz de migrar do medo à esperança e da esperança à caridade.

Por fim, lembremo-nos que a ansiedade deve ser encarada como um remédio para a vontade e para a soberba da autossuficiência.

Os vícios opostos à fortaleza (Martín Echavarría)

De maneira geral podemos agregar as paixões em dois tipos: (a) paixões impulsivas, que são captadas como bem (p.ex. desejo, audácia, esperança) e (b) paixões retrativas, que são captadas como mal ou bem impossível (p.ex. temor, tristeza, desesperança).

A fortaleza e a temperança são as virtudes que regulam as paixões, enquanto a prudência e a justiça não as regulam. A humildade é uma virtude da temperança que modera o desejo de sobressair-se, o apetite da excelência. A mansidão é uma virtude da fortaleza que modera o apetite da ira. A fortaleza e suas virtudes fortificantes moderam as paixões retrativas. A fortaleza é incompreensível se não compreendermos estes dois pontos: (1) existem grandes bens pelos quais vale a pena perder a vida, (2) a existência do mal moral (pecado). A psicologia moderna não admite nenhum desses pontos.

A temperança possui correspondentes modernas que se aproximam dela, mas a fortaleza não. A magnanimidade é uma grandiosidade espiritual que nos tende a coisas grandes. A confiança é fazer com os outros o que sabemos que não fazemos sozinhos. A segurança é a convicção de que o mal não vencerá. A paciência (ou tolerância) é suportar os males diários (pequenos). A perseverança é suportar os males prolongados. A solicitude (ou diligência) é suportar o mal que vem do trabalho; ou “estar disposto” ao trabalho.

Quanto aos vícios contrários à fortaleza, em geral podemos classificá-los de duas formas:

(1) Vícios por excesso. Falta de temor, audácia, presunção (transcender sua capacidade), ambição (conseguir honras), vanglória (vício capital “criador de vícios”), obstinação (teimosia).

(2) Vícios por falta. Temor, pusilanimidade (“alma pequena”, tudo lhe parece grande, pode ser causado externamente por uma educação opressiva e/ou internamente por um temor ao fracasso), moleza, preguiça, inconstância, impaciência, parvoíce (estupidez, insensatez, estupefacção).

Acolhimento do paciente (Rafael de Abreu)

A misericórdia (compaixão com a miséria alheia) tem de ser despertada no psicólogo. É necessário que o psicólogo experimente voluntariamente o sofrimento do paciente. O paciente impacta o psicólogo, embora não o conduza. A misericórdia é doer-se pela miséria alheia, mas não cega.

A empatia é mera sensibilidade (como a vendedora que “gera empatia” concordando com a cliente). A empatia valida indiscriminadamente o que o outro sente. A misericórdia busca a ordem e o bem, a empatia, não. A misericórdia inclui juízo moral, correção com firmeza, não se omite. A empatia tende a perpetuar o sofrimento e inflar o ego ainda mais. A misericórdia, portanto, não é uma opção, mas um elemento obrigatório na psicoterapia.

Fonte: III Congresso Internacional de Psicologia Tomista, São Paulo, SP, Brasil, 24-25 de maio de 2025.

28 de maio de 2025

O homem virtuoso não é bonzinho


Você é uma pessoa boa ou uma pessoa boazinha? Suas virtudes são conquistas pessoais ou são mera expressão de temperamentos inatos? Quando age com valor o faz somente em momentos pontuais ou o faz habitualmente? Você demonstra inteligência prática no trabalho, mas em casa assume outro caráter?

Antes de versarmos sobre as virtudes humanas (dentre as quais se incluem as famosas virtudes cardeais), vejamos algo sobre as virtudes teologais, pouco discutidas no ambiente psicológico porque não são adquiridas pelo homem, mas infundidas por Deus (embora tenham que ser exercitadas mesmo assim, ao contrário dos “dons do Espírito”, que são apenas recebidos com docilidade, tal como a metáfora do remo e da vela):

(a) : ver tudo com os olhos de Jesus Cristo, que tudo encaminha para nosso bem (Romanos 8:28), abraçando renúncias e abnegações em nome da santidade.

(b) esperança: a convicção de que nos espera o abraço eterno de Deus após a morte e, por isso, nos faz crescer a magnanimidade, a audácia e a humildade.

(c) caridade: é a fusão de amor de Deus com o amor ao próximo, fazendo-nos dar a nossa vida pelos nossos irmãos (1 João 3:16).

Quanto às virtudes em geral (aqui inclusas as cardeais), eis as 4 etapas de sua formação:

(1) olhos (sentidos): é quando guardamos a imagem das pessoas virtuosas que, com sua existência concreta, nos servem de exemplos vivos.

(2) coração (apetência sensível): ao ver as virtudes autênticas, o coração arde em desejo e admiração.

(3) cabeça (contemplação intelectual): a beleza do bem contemplado nos impele a refletir sobre as virtudes, a conhecê-las e aprofundá-las.

(4) vontade (apetência inteligível): é a decisão de viver, na prática, no dia a dia, as virtudes.

Observe a passagem dos sentidos para as paixões, destas para a inteligência, que capta o bem que há na ação virtuosa e, por fim, a vontade, que se apetece por este bem e o persegue. Eis, portanto, a diferença entre o bom e o bonzinho: no bom há uma deliberação, uma decisão consciente e voluntária de perseguir a virtude; no bonzinho há meros atos mecânicos, rotineiros, costumes, habituações, reações ao instinto de “ficar bem” perante os outros.

E como cumprir esse passo (4)? Eis as posturas necessárias:

(a) ter mente que a mortificação (esforço, sacrifício, “matar um mal”) é fundamental para combater a moleza, a gula, a sensualidade descontrolada, o mau-humor etc.

(b) fazer esforços cotidianos em pontos concretos.

(c) o que quer que seja feito tem de ser feito por amor, não por costume ou “voluntarismo”, ou seja, não por um desejo de provar a mim mesmo que sou capaz de fazer o que me proponho.

(d) acompanhar o processo, ou seja, não deixar o desenvolvimento das virtudes ao sabor da improvisação, mas fazer um exame constante para que a espontaneidade não desperte e, “de repente”, voltemos ao padrão anterior de pensamento e comportamento.

As virtudes cardeais

Prudência

Ser prudente significa apenas e tão-somente agir de modo pensado, racional. Como dizia o imperador bizantino Miguel II Paleólogo: “Não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus”. Ou como dizia Tomás de Aquino: “O homem prudente é lento na reflexão e rápido na execução”. É típico do prudente vencer o comodismo e o medo de que não dê certo e, por isso mesmo, não cair na “cautela medrosa”.

Justiça

Inicialmente, a virtude da justiça exige que tenhamos imenso respeito por todo e qualquer ser humano por ser ele imagem de Deus e, ademais, porque foi por ele que Jesus Cristo morreu e que está destinado à bem-aventurança eterna. Mas o fato é que desprezamos e zombamos das deficiências alheias e, pior ainda, de sua falta de categoria intelectual, profissional e social. Mas Deus não despreza ninguém.

Urge que vejamos os nossos defeitos, que não sem frequência são do mesmo tipo que nos incomodam ver nos outros. Condenar alguém com ódio e agressividade é anticristão. O justo é, quando possível ajudar e, se for o caso, corrigir. Lembre-se: há ladrões de carros, casas etc., mas o pior ladrão é aquele que rouba a reputação, a fama, a honra, o bom nome. As motivações vão desde o orgulho (“sou superior ao outro”) até a inveja (refúgio dos infecundos). As únicas razões objetivas para falar sobre o próximo são o bem público, o bem de uma pessoa inocente ou o bem próprio (como legítima defesa).

Observe aqui que a base da justiça é a veracidade, isto é, a virtude de ser verdadeiro no agir e no falar. Trata-se de um dever porque o homem deve a outro a manifestação da verdade. No entanto, isso não significa que devemos sempre dizer a verdade. Por quê? Porque ninguém é obrigado a revelar a verdade a quem não tem o direito de conhecê-la, ou seja, a quem faria um uso injusto e daninho da verdade e em quem provocaria uma dor ou um dano desnecessário.

Ademais, não há mentira quando não existe intenção de enganar, como as mentiras jocosas (brincadeiras, piadas) e as mentiras sociais (expressões inexatas que já não enganam ninguém). Note que dizer a verdade pode ferir gravemente a caridade, dependendo da intenção e do modo como é dita. Isso é comum entre aqueles que se consideram “muito sinceros”, que apenas o são para usar a verdade como arma para ferir.

Por fim, cabe mencionar que a verdade deve ser omitida para respeitar o direito à intimidade porque a intimidade, com deixa claro a palavra, é algo que não nos pertence.

Fortaleza

Entre as inúmeras fraquezas que podemos enfrentar, incluem-se: (1) fugir de ideais, tarefas e deveres porque são difíceis, (2) encolher-nos ante obstáculos, (3) medo do sacrifício, (4) medo do sofrimento, (5) acomodar-nos para não complicar a vida, (6) ser do tipo mole e frívolo, (7) achar que fez muito e cansar.

Combater essas fraquezas exige a conquista de três forças: (a) a força do ideal (motivo poderoso pelo qual valha a pena viver e morrer; o Amor, eis o grande ideal), (b) a segurança da fé (Mas Cristo disse-me: Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que a minha força se revela totalmente (2 Cor 12:8-9), (c) a têmpera do sacrifício (é a mortificação da moleza sobre a qual versamos acima).

Não desprezes as pequenas coisas, porque, através do contínuo exercício de negar e negares-te a ti próprio, nessas coisas, fortalecerás, virilizarás, com a graça de Deus, a tua vontade, para seres, em primeiro lugar, inteiro senhor de ti mesmo.

[...]

Quer dizer que toda impaciência tem como causa a falta de amor, de amor a Deus ou de amor ao próximo, ou de ambos. É lógico, portanto, que a causa das nossas impaciências seja o contrário do amor, isto é, o amor-próprio egoísta.

Temperança

A temperança mantém a harmonia entre a dimensão espiritual e a dimensão corporal do homem. Há três modos de intemperança: (a) usar o bem como instrumento para o mal (transformar comida e bebida para perder a saúde física e psíquica), (b) tiranizar-se a ponto de se escravizar (crack, álcool, cocaína, sexo obsessivo-compulsivo), (c) os meios se tornam fins (o sentido da vida é sentir prazer).

O Abade Cassiano, no século V, escrevia no seu manual de espiritualidade intitulado Collationes: “O primeiro combate que devemos empreender é contra o espírito de gula, contra a concupiscência da excessiva comida e bebida. É preciso frisar que a abstinência corporal não tem outra razão de ser senão conduzir-nos à pureza do coração”. Os excessos na comida, e sobretudo na bebida, insensibilizam a alma, fazem com que a dimensão corporal abafe a espiritual. A idolatria do prazer material do homem, através dos excessos no comer e no beber puxa para a tirania do sexo.

Além do aspecto concupiscível, há evidentemente a temperança do aspecto irascível, ou seja, moderar a paixão da ira (ou “indignação”). Diz São Gregório Magno: “A razão enfrenta o mal com grande combatividade, e a ira contribui para isso”. Diz São João Crisóstomo: “Quem não se indigna, quando há motivo, peca. [...] A falta de indignação ante o mal semeia vícios, alimenta a negligência e facilita que não só os maus, como também os bons, pratiquem o mal”. No entanto, quando a ira não é contra o mal, mas contra a pessoa que fez ou propagou o mal, torna-se ódio. Como dizia Santo Agostinho: “Detestar o erro, mas amar o que erra”. A mansidão, vejam só, não é a virtude dos fracos, mas dos fortes.

Fonte: Franscisco Faus, A conquista das virtudes, Cultor de Livros, São Paulo, SP, Brasil, 2021.

25 de abril de 2025

Vinte anos de blog e algumas breves reflexões


Quer comais quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus. (1 Coríntios 10:31)

Porque vale mais um dia nos teus átrios do que mil. (Salmos 84:10)

Hoje este blog completa 20 anos e pensei que seria um bom momento para refletir a respeito da noção de progresso intelectual e, de quebra, cumprir, com imenso atraso, a promessa do post inaugural e tecer alguns comentários sobre o livro que inspirou seu nome.

Em uma recente entrevista, o médico e escritor Drauzio Varella see fez uma pergunta retórica: o que seria dele se não tivesse aprendido o que aprendeu nos livros e estudos ao longo de seus 81 anos? O quanto sua consciência estaria limitada a uma visão adolescente do mundo? De quais experiências e vivências estaria ele privado não fosse a abertura e a riqueza que a vida intelectual lhe proporcionou? Que aventura mesquinha e medíocre teria sido sua vida se seu espírito não tivesse sido tocado pelo conhecimento?

Progredir intelectualmente não é acumular ideias e fatos filosóficos e científicos. Isso não é intelectualidade, mas erudição. É verdade que a erudição é em grande medida necessária para o desenvolvimento da vida intelectual, mas não deve ser confundida com ela. O intelecto se desenvolve quando ele se adequa às verdades que descobre. É como se o intelecto se moldasse às, ou mesmo se tornasse as, verdades que vai descobrindo ao longo do tempo e, assim, adquirindo a “forma” da própria verdade. Intelecto não é “cognição”, mas a parte mais elevada do composto humano, ou seja, aquilo que temos de mais propriamente humano. Por exemplo, posso saber tudo sobre as formas a priori de Kant, ou seja, posso saber explicá-las de memória com grande destreza e precisão, mas se elas não correspondem ao real então não se trata de uma expressão de minha vida contemplativa, mas mera expressão de meu nível cultural.

E que importância tem isso? Toda. Se levarmos a sério as palavras de Cristo de que ele é a Verdade, e que naturalmente toda verdade criada participa da Verdade incriada, ou seja, do próprio Cristo, então não é difícil concluir que vida intelectual também é vida espiritual. Ao contrário do que se poderia imaginar, o aperfeiçoamento do intelecto (noûs) é o aperfeiçoamento do espírito humano por definição. E o aperfeiçoamento do espírito humano implica por conseguinte no aperfeiçoamento do caráter.

Acho cabível aqui mencionar precisamente um dos erros crassos deste grande expoente da teologia da Igreja Ortodoxa, o Pe. John Romanides. Pessoalmente o tenho com grande admiração e carinho porque foi com ele, além do Pe. Seraphim Rose, que aprendi grande parte do que sei sobre Jesus Cristo, os santos e a Igreja. No entanto, embora tenha acertado na mosca ao denunciar a religião como uma doença espiritual – o que, aliás, se aplica à própria religião cristã ortodoxa e sua mecânica litúrgico-sacramental –, o Pe. Romanides procurou alçar a Ortodoxia à pura espiritualidade do tipo monástica, isto é, à tríade purificação/iluminação/glorificação. Este expediente, claro, encontra enorme respaldo na experiência acumulada por séculos de prática hesicasta, deividamente compilada na Filocalia, mas não deixa de portar um traço ideológico inaceitável: a ideia, repetida ad nauseam pelo Pe. Romandies e seus discípulos, de que não há absolutamente nenhuma relação entre criado e Incriado. Tal postura, claramente nominalista como o próprio Pe. Romanides cogita, não tem nada de tradicional ou “ortodoxa”, mas denota uma tentativa de blindar a Ortodoxia de qualquer mácula escolástica e estabelecer um limite claro, embora falso, entre ambos. É compreensível que a partir do século XX os ortodoxos tenham se visto obrigados a elaborar uma divisão transcultural entre teologia “ocidental” e “oriental” (a exemplo de Georges Florovsky e Vladimir Lossky), mas o resultado não foi apenas inconveniente no sentido de criar um pretenso elitismo espiritual entre a Igreja oriental e as igrejas ocidentais, mas é algo simplesmente falso. A filosofia antiga, em especial Platão e Aristóteles, sempre foram para os Padres não apenas recursos indispensáveis para transmitir a Verdade revelada, mas elas mesmas, em si, são parte, embora inferior, claro, da própria Verdade. Neste sentido, os ortodoxos fariam bem em não temer, mas, pelo contrário, acolher seletivamente Tomás de Aquino e seus seguidores em geral. É o que temos procurado fazer aqui ultimamente, entre muitos outros objetivos. O Espírito, assim como o vento, sopra onde quer. Se Ele até aqui não quis soprar em mim isso não significa que eu deva fingir que estou investindo-me das energias divinas pela prática religiosa, mas devo, isso sim, como mendigo, buscá-Lo humildemente absorvendo o ser dos entes dados através de suas essências criadas. Se Deus não fez o cosmo com base em Si mesmo então o fez com base em quê? Sim, eu sei, a vida intelectual não leva à theoria, mas, como diz o povo,  é o que temos para hoje.

Esta breve digressão reforça o objetivo deste blog: servir de instrumento para a conservação e progressão da alma após a morte. Sem este objetivo em mente é impossível ordenar o restante de nossas vidas, por mais “sentido” que tentemos dar-lhe. Se aqui estudamos filosofia, psicologia, religião, esoterismo, história, cultura, o que quer que seja, a meta é uma só: enriquecer o noûs comungando-o com a Verdade. Se mulher, família, trabalho e estudos não estiverem orientados a este fim supremo então nada fará real sentido. O amor é o princípio de tudo, então todas as ações humanas têm de estar ordenadas ao Amor. Tente algo diferente e o resultado será depressão, melancolia, tristeza. Se a passagem para o mundo inteligível não lhe apetece, ouça ao menos os sinais que lhe dão seu próprio mundo sensível e, a partir daí, reflita e reaja.

E eis por que a obra do Pe. Sertillanges tem tanta importância. Não tanto pelos seus conselhos práticos, que podem ou não lhe ser úteis, mas pela ideia-força, verdadeiramente genial, de que longe dos homens somos mais homens. É na vida interior que tomamos contato com o ser das coisas, com o ser do mundo e, claro, com o ser humano, com a humanidade. É longe dos homens, ou seja, ali no interior de nosso ser, que estaremos mais com os homens. É ali, na vida noética, que encontraremos os bens a serem compartilhados em amor fraterno com os homens. Não se trata aqui de solidão propriamente, mas de recolhimento. Ao intelectual só a verdade interessa, e todo o resto deve a ela submeter-se.

Não é difícil deduzir, portanto, o que deve ser estudado primordialmente pelo intelectual. Se a ordem do espírito deve corresponder à ordem das coisas, e se há um Ser primeiro, é aí que o saber deve findar-se e é daí que deve extrair sua luz: metafísica, psicologia, cosmologia e moral, eis os assuntos sobre os quais o espírito deve aplicar-se porque a estrutura desses saberes corresponde à constituição do real e da inteligência. Todas as demais ciências dependerão das verdades colhidas nessas.

E eis aqui que entram em cena as virtudes necessárias para a vida intelectual. Trata-se, acima de tudo, da humildade. A inteligência tem por base a exclusão do orgulho porque o orgulho sente repulsa por uma ordem fora e acima dele. Ser intelectualmente forte implica, portanto, em ser receptivo, e ser receptivo implica em ser humilde. Uma das leis do nôus é a passividade porque, como se sabe, o intelecto compreende tornando-se outro, e se nossa postura diante do real for de intencionalidade, de “ansiedade”, o entendimento não ocorrerá, a verdade não penetrará.

Talvez a virtude mais prática seja a conciliação (ou acomodação). A ideia de Sertillanges, que considero fundamental, é que o estudioso não contraponha autores, mas os concilie. E, novamente, a ideia é simples: o que é interessante não são os pensamentos, mas as verdades e, portanto, não são os combates dos homens, mas sua obra e o que dela permanece. O que deve despertar o interesse do intelectual são os pontos de contato entre os autores, e é aí que deve empreender sua investigação.

Por fim, não nos esqueçamos que é a vida intelectual que confere unidade interior à alma. Sem ela, alguma mania ou paixão se apresentará sub-repticiamente como substituta da unidade, e nossas fraquezas voltarão a dominar.

* * *

As pessoas geralmente não sabem a que ponto a inteligência é plástica e receptiva a estímulos.

[...]

Pelo pensamento nós encontramos algo, não o fazemos.

[...]

A humildade é o olho que lê no livro da vida e no livro do universo.

[...]

Aquele que aprende sempre pode chegar a nunca instruir-se se não modificar em sua própria substância o que aprendeu em dóceis intercâmbios. [...] O que eu absorvo deve tornar-se eu.

[...]

A contemplação parte do amor e termina na alegria: amor do objeto e amor do conhecimento enquanto ato de vida; alegria da possessão ideal e do êxtase que ela provoca.

[...]

A recompensa de uma obra é tê-la feito; a recompensa do esforço é ter crescido. Coisa espantosa, o verdadeiro intelectual parece escapar dessas tristezas causadas pela idade que infligem a tantos homens uma morte antecipada. Ele mantém-se jovem até o fim. Dá a impressão de tomar parte da juventude eterna do verdadeiro. Tendo em geral amadurecido muito cedo, continua maduro, em nada azedo nem decaído, quando a eternidade vem recolhê-lo.

[...]

Essa confiança que está fundada sobre uma lei das coisas pertence ao trabalho mais que ao trabalhador; no entanto, o trabalhador, também ele, deve ter fé em si mesmo. Não tem ele consigo o Deus que disse: O que busca encontra, e a quem bate, abrir-se-lhe-á? Todos nós temos a Verdade por trás de nós, e ela nos impele pela inteligência; nós a temos diante de nós e ela nos chama, acima de nós, e nos inspira. [...] A luz pode filtrar através das brechas que nosso esforço alarga; quando ela se faz presente, por si mesma expande e firma seu reinado.

Fonte: A.-D. Sertillanges, A vida intelectual, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2020.

24 de abril de 2025

Traços do pensamento medieval


O sincretismo neoplatônico gnóstico foi o legado recebido pela Idade Média:

O neoplatonismo é a última escola filosófica do mundo antigo. Surgiu no século II d. C. e reuniu em seu sistema elementos derivados não só do platonismo mas também do neo-pitagorismo, do aristotelismo, dos estoicos, dos judaico-alexandrinos e até dos eleatas. Foi assim a expressão máxima do sincretismo da idade alexandrina, agregando quase toda a metafísica religiosa que continha a especulação anterior.

Esse sistema conheceu três fases: a alexandrino-romano (séculos II/III), cujo principal representante foi Plotino; a síria (séculos IV/V), iniciada por Jâmblico; e a ateniense, representada por Proclo (séculos V/VI).

Os neoplatônicos representavam o mundo como emanação da força divina, proveniente de um absoluto inalcançável (Uno). O primeiro passo dessa emanação era o mundo da razão, o mundo espiritual das ideias; o segundo, era o mundo psíquico, da alma; e o último era o mundo material. Cada passo representava uma queda sucessiva da força proveniente do Uno e por esse motivo ao mundo material só chegava um pálido reflexo de sua luz. A matéria seria, portanto, fonte de todo o mal, absoluto não ser, e o descenso dos seres encontra aí seu último limite, cessando a decadência. Por outro lado porém, o mundo corpóreo é vivente e seu verdadeiro ser é a alma que, por sua natureza, tende a retornar à fonte original (Uno). Reinicia-se desse modo o ascenso até que se atinja o ponto de partida e o círculo se feche.

Os neoplatônicos colocavam em cada fase da emanação os deuses e os demônios das religiões orientais e greco-romanas, dando vida a um sincretismo complexo e fantástico, última etapa do desenvolvimento da religião e da filosofia antigas. A mística, a adivinhação, os jejuns e as preces, levados até o êxtase com o fim de "fundir-se" com o Uno, tinham também muita importância, e algumas dessas práticas seriam adotadas pelos cristãos, particularmente pelos eremitas.

Embora vencido, o neoplatonismo sobreviveu, de certa forma, ao seu próprio tempo. Vários de seus temas foram fonte de inspiração para os primeiros pensadores cristãos. A caracterização do Uno enquanto simplicidade, autossuficiência, infinitude e absoluta liberdade; sua identificação como causa primeira e bem supremo de onde tudo provém e do qual depende, aproximava-se surpreendentemente da ideia cristã de Deus.

Outros temas ainda reforçavam essa proximidade: a Natureza entendida como vestígio do saber divino; a presença do Uno na humanidade e sua visão como luz interior que recomendava o "Conhece-te a ti mesmo"; a alma como possuidora de dupla natureza — intelectiva e sensitiva — etc. Por tais semelhanças, era comum passar-se dos filósofos neoplatônicos às Escrituras, a tal ponto que certos autores chegaram a considerar o neoplatonismo uma antecipação pagã do cristianismo.

Esse portanto o verdadeiro legado que o mundo medieval recebeu diretamente dos Antigos. Uma síntese refinada sob certos aspectos, mas também empobrecida. No vasto trabalho de amalgamar tantas correntes de pensamento, de tingi-las com um misticismo e uma religiosidade que lhe eram estranhos, de adaptá-las a circunstâncias completamente diversas daquelas em que foram originalmente criadas, o neoplatonismo despojou o pensamento clássico de algumas características preciosas. A reflexão já não era em si filosófica mas metafísica; o homem e a natureza já não eram o centro das especulações, mas apenas intermediários em um processo de conhecimento que tinha no Uno sua origem e seu objetivo último; a matéria, o mundo natural, não eram senão fonte de todo erro, de todo mal, de todo pecado... Antes mesmo que o cristianismo triunfasse e que o grande Império ruísse, tudo levava a crer que Pã, o antigo deus da Natureza, morrera.

No neoplatonismo o mal é ontológico, que é precisamente o que se esperaria de uma doutrina gnóstica:

Nessa medida, afirmava-se a superioridade do cristianismo, ao postular a existência de um Deus que tornara-se Criador por um ato de vontade e bondade. A matéria, enquanto uma de suas criações, não poderia ser princípio do mal e isto significava atribuir à personalidade individual do homem (e à sua livre vontade) a responsabilidade pelo mal e pelo bem, pelo pecado e pela redenção. Assegurava-se assim a possibilidade de salvação e refúgio eterno da alma, oferecida por um Deus preocupado com as debilidades, sofrimentos e aspirações de suas criaturas.

Similarmente, no neoplatonismo a matéria é pré-existente:

Abraçando a tradição judaico-cristã, Agostinho afirmava que o mundo fora criado por Deus a partir do nada. Nesse sentido, afastava-se ao mesmo tempo do emanacionismo neoplatônico e da tradição clássica onde a criação ou ordenação divina operou-se sobre uma matéria informe preexistente em estado caótico.

Uma bela explicação da doutrina da iluminação de Santo Agostinho:

A hierarquia agostiniana do conhecimento obedece à regra segundo a qual tudo que deve sua existência a outra coisa é inferior à coisa pela qual existe, não podendo o inferior agir sobre o superior. O homem, enquanto criatura de Deus, marcado por uma existência corpórea, está limitado ao conhecimento que os cinco sentidos lhe fornecem, podendo ver, tocar, ouvir etc. Contudo, o campo onde esses sentidos se exercitam é o mundo aparente que está subordinado ao tempo e à mudança — nasce, cresce, morre, transforma-se como o próprio homem — e tais características impregnam o conhecimento que deles advém, daí sua transitoriedade. Só em Deus e nas coisas que estão em Deus podemos, segundo Agostinho, encontrar o verdadeiro conhecimento, uma vez que Deus é bondade, sabedoria e verdade; esses não são apenas seus atributos.

As ideias, formas originárias, razões estáveis e imutáveis das coisas, estão contidas na mente divina e não nascem nem morrem, mas tudo o que nasce e morre é por elas formado. As ideias não são criaturas; antes participam da Sabedoria eterna, mediante a qual Deus criou o mundo e que é idêntica a ele. Assim, conhecer verdadeiramente seria voltar-se para as ideias, onde se funda a natureza das coisas e os juízos verdadeiros que delas formamos.

O acesso a essas verdades eternas não é totalmente vedado ao homem em função de sua dupla natureza: se ele possui um corpo, este está subordinado a uma alma que, pela sua própria natureza, guarda maior semelhança com Deus. Mesmo assim, a humanidade não pode, por si só, alcançar esse conhecimento perfeito; é necessário a intervenção divina.

Para explicar essa intervenção, Agostinho recorreu à doutrina da iluminação: Deus é a luz que ilumina a inteligência humana, tornando possível a compreensão do inteligível. Existiria portanto uma luz eterna da razão que procede de Deus e atuaria constantemente, possibilitando o conhecimento das verdades imutáveis. Da mesma maneira que os objetos exteriores só são vistos se iluminados pela luz solar, também o verdadeiro saber precisaria ser iluminado pela luz divina para revelar-se aos homens.

Avicena e sua doutrina da unidade do intelecto agente:

Foi por Avicena (980-1037) que a Idade Média conheceu a doutrina da unidade do intelecto agente, várias vezes atribuída erroneamente a Averrois. Aristóteles havia conferido à inteligência a dupla tarefa de abstrair formas inteligíveis contidas no dado sensível (função do intelecto agente) e receber em si as formas assim abstraídas (função do intelecto paciente). Avicena dotou cada indivíduo de um intelecto paciente particular, mas admitiu um único intelecto agente para todo o gênero humano.

Tomás de Aquino como refém dos tomistas puristas:

Transformado em porta-voz da Igreja, Tomás de Aquino foi canonizado em 1323; sua obra obteve a partir daí uma crescente difusão e seu nome passou a desfrutar de toda celebridade que não conhecera em vida. Entretanto o tomismo havia sido, em certa medida, amesquinhado em sua força criadora e libertadora. Concordaria Tomás em pagar tão pesado tributo?

Para Duns Scot a essência não contém apena o universal, mas também o individual, que é apreendido por intuição. Isso significa que há uma espécie de “essência individual” abaixo da essência universal:

À distinção real entre essência e existência [ser] atribuída por Tomás de Aquino, Duns Scot reafirmava o princípio tradicional da unidade do ser, utilizando-o porém para uma conclusão em tudo original: se é certo que a unidade acompanha o ser, então cada grau do ser possui também uma unidade real correspondente, existindo portanto em todo ser concreto e singular uma multiplicidade de “aspectos reais” inseparados e inseparáveis uma vez que compõem um único indivíduo.

Por outro lado, a aplicação de semelhante tese à teoria do conhecimento tinha profundas implicações. O tomismo restringia a possibilidade de conhecimento ao domínio das essências universais que determinam todos os seres individuais, e admitia a abstração como único modo de conhecimento. Duns Scot entretanto, ao afirmar que a essência contém tanto o universal quanto o individual e que portanto o real não poderia ser entendido nem como universalidade pura (pois fragmenta-se em indivíduos), nem como pura individualidade (pois comporta ideias gerais), colocava ao lado do conhecimento abstrativo, o intuitivo. Desta maneira, enquanto a abstração permitiria à inteligência captar as essências universais, a intuição conduziria à apreensão do ser existente enquanto fenômeno singular, concreto e individual.

Fonte: Inês C. Inácio e Tania Regina de Luca, O pensamento medieval, Editora Ática, São Paulo, Brasil, 1988.