Maldito o homem que confia no homem. (Jeremias 17:5)
Positivistas vs. herméticos (ou
racionalistas panteístas vs. místicos gnósticos, ou ockhamistas vs.
echartianos)
A Idade Média assistiu, em sua agonia, a um
grande debate filosófico religioso. Perdido o equilíbrio do tomismo, o homem
medieval caiu em dois extremos opostos. De um lado, estavam os humanistas
racionalistas de tendência panteísta cuja figura símbolo foi Frei Guilherme de
Ockham, um Édipo moderno. Tais humanistas cultuavam o Homem como supremo valor
e medida de um universo divino. Queriam destruir a sociedade medieval teocêntrica
e estabelecer uma nova cosmovisão antropocêntrica. Julgavam que, graças à
ciência e à técnica, o homem seria capaz de vencer todas as misérias do mundo, até criar uma era de grande prosperidade material e de completa felicidade
natural. Eles punham essa esperança no Homem, redentor de si mesmo, construtor
da Utopia. Do lado oposto, situavam-se os místicos de tendências gnósticas,
cuja figura mais característica foi, nessa época, Mestre Eckhart. Esses
místicos tinham uma visão extremamente pessimista da realidade. Para eles, o
mundo era intrinsecamente mau e irredimível por ser obra de um deus perverso,
distinto da Divindade. Entre a Divindade boa e o mundo, haveria um abismo
absoluto. Se a Divindade era o Ser, o mundo criado seria o Nada. Se o mundo das
criaturas era formado por seres, então a Divindade era o Nada absoluto.
Para estes místicos, a razão humana era má
e só seria desejável perder-se no Nada divino. O demiurgo, criador mau, dotara
o homem de razão para que esta o enganasse, apresentando-lhe o mundo como inteligível
e, portanto, como bom. A ciência e a técnica eram ilusórias. A redenção seria
obtida por uma fuga mágica do mundo real. A saída não estava numa Utopia
futura, e sim na volta ao Paraíso original. O homem não deveria pretender
construir um Reino neste mundo; pelo contrário, o Reino deveria ser o fruto do retorno
ao passado primevo. ao Éden original adâmico, o que só se poderia obter por uma
irrupção divina na História, nunca por força do intelecto.
* * *
Ser unívoco, equívoco e análogo
Com efeito, diante do ser, o espírito
humano pode adotar três posturas:
1 - Considerar que o ser é unívoco.
Quando tal ocorre, o homem caí no panteísmo, visto que, então, tanto uma pedra
quanto deus são igualmente seres. É a posição de Parmênides, na filosofia
antiga. Desta postura decorria a adoração do universo e o desprezo do
indivíduo. Tudo seria Deus. No mundo moderno, essa tendência panteísta, fruto
de uma visão unívoca e igualitária do ser, conduziu à adoração do Homem e da
Razão, último estágio da evolução. O cientificismo materialista e racionalista
do mundo atual tem aí suas raízes que historicamente principiaram com o
nominalismo de Ockham.
2 - Considerar o ser como equívoco.
Em consequência. afirma-se que o universo não tem nenhuma relação com o Ser de
Deus. Ora, como ensina São Paulo na Epístola aos Romanos (1,20), “as perfeições
invisíveis de Deus tornaram-se visíveis, depois da criação do mundo, e podem
ser compreendidas por meio das coisas criadas”. Afirmar que o ser é equivoco é
negar qualquer possibilidade de compreender algo de Deus através das criaturas.
Desemboca-se então no deísmo e. depois, no ateísmo.
Aprofundando-se essa segunda tendência,
pode-se chegar a afirmar que os seres criados são tão dissemelhantes da
Divindade que se poderia dizer que são contrários a Ela. Quando tal ocorre. o
homem cai na Gnose. Esta considera que o universo é essencialmente mau por
aprisionar as partículas da Divindade na matéria. nas malhas da Lógica e nas
cadeias da Moral. Tais partículas eram chamadas de Fünkenlein por Mestre
Eckhart, de Atmans pelos Brâmanes, de Éons pelos gnósticos dos
primeiros séculos do cristianismo.
O Deus criador do universo seria o demiurgo
mau. Ele teria dado a razão ao homem para que esta o enganasse. Compreendendo o
mundo, o homem julgá-lo-ia bom, porque inteligível. O homem quereria, por isso,
permanecer neste mundo, e não desejaria retomar à Divindade da qual procedera.
A libertação das partículas divinas aprisionadas na matéria exigiria a renúncia
à razão, além da destruição da materialidade e da violação de todas as leis
morais estabelecidas pelo Deus criador do universo. No extremo, desejar-se-ia a
destruição de todo ser, de toda existência. A Gnose é antimetafísica. Dessa
posição antirracional participam muitos e importantes movimentos do mundo
atual. Delas o nazismo irracional e antimetafísico é o exemplo mais trágico e
mais criminoso. Na chamada "Civilização Moderna", as nascentes deste
rio gnóstico se encontram em Mestre Eckhart.
3 - Considerar o ser como análogo.
Isto significa que as criaturas do universo são seres, mas não do mesmo modo
como Deus é Ser. Nas criaturas, pode haver vestígio, imagem ou semelhança de
Deus. Nas coisas materiais e irracionais, há apenas vestígio de Deus pela ordem
e bondade de seu ser; nos seres racionais e espirituais, há imagem de Deus,
porque, como o Criador, esses seres têm inteligência e vontade; neles, ainda,
pode haver semelhança, caso sejam obedientes à lei divina que os faz santos
como Deus. Tal é a explanação de São Boaventura.
* * *
O mundo para os gnósticos
Hugo de S. Victor e São Boaventura falam do
mundo como poema. São Boaventura ensina que Deus escreveu dois livros: o
primeiro foi o mundo; o segundo, a Bíblia. O mundo seria um livro porque Deus,
ao criar cada coisa, dizia uma palavra. "Faça-se a luz", disse Deus,
e a luz passou a existir. Assim, cada ser criado corresponde a uma palavra de
Deus, e o mundo é, então, um conjunto de palavras divinas encarnadas na
matéria. Ora, um conjunto tão grande de palavras forma um livro, e o Universo
é, portanto, um belíssimo poema.
A diferença entre os pensadores católicos e
os gnósticos a respeito do mundo está em que, para os gnósticos, o mundo oculta
labirinticamente a verdade e oferece mentiras enganadoras, enquanto para os
católicos, o mundo é um livro legível e facilmente inteligível. Para a Gnose, o
mundo é um livro labirinto enganador, concebido pela mente malvada e mentirosa
do demiurgo. Para o católico, o mundo não só fala, mas proclama e canta um hino
à glória de Deus. E só não ouve esse cântico, só não compreende esse poema,
quem não tem l'occhio chiaro e l'afetto puro, como diz Dante.
A questão dos universais
Desde a Grécia antiga até o fim da Idade
Média, o problema dos universais suscitou veementes polêmicas. Como se sabe, universais
são conceitos que podem ser aplicados a todos os indivíduos de uma mesma
espécie. Por exemplo, o conceito de rosa engloba todas as rosas existentes. ou
que possam existir, em qualquer tempo.
O que se tem discutido é em que sentido, ou
como existem os universais. Com relação a isso. formaram-se três correntes mais
importantes:
a) o realismo;
b) o realismo moderado;
c) o nominalismo.
Em O Nome do Rosa quase não se fala
da posição do realismo moderado. que é a posição tomista assumida pela Igreja,
face à questão dos universais. No tempo em que ocorreram os fatos na abadia do
romance de Eco, as posições filosóficas mais em voga, e que se digladiavam em
todas as universidades e mosteiros, eram a posição platonizante, do realismo, e
a do nominalismo. O realismo de tom platônico era defendido pelos místicos
gnosticizantes seguidores de Mestre Eckhart. O nominalismo era partilhado pelos
franciscanos seguidores de Guilherme de Ockham e por todos aqueles que tendiam
para posições empiristas, racionalistas e panteístas.
Eco apresenta o debate dos universais como
se houvesse apenas essas duas correntes (a mística e a racionalista) debatendo
a questão dos universais. Os tomistas nem aparecem. Eco leva o leitor comum a
julgar que a posição mística e gnóstica é a da Igreja Católica, o que é uma falsificação histórica.
Para que o leitor tenha ideia do que se
debatia e do que se trata em O nome da Rosa, a respeito dos universais,
faremos uma breve exposição dessa questão filosófica, procurando salientar a que consequências levava cada uma das soluções aventadas.
a) A doutrina do realismo filosófico
sobre os universais
Para Platão e para seus seguidores, os
universais teriam existência real fora da mente, no mundo superior das ideias.
Esse mundo das ideias seria perfeito, divino e inteiramente desprovido de
matéria. Em nosso mundo, a forma ou ideia de um ente - comum a todos os
exemplares individuais de sua espécie - estaria atualmente aprisionada nos
seres materiais individuais.
Explicavam os platonizantes que a ideia de
rosa - o universal rosa - é uma só para todas as rosas individuais. Essa ideia
não é só única e universal, como também é absolutamente perfeita, visto que os
defeitos possíveis de uma rosa existem somente na matéria. É apenas a rosa
concreta que murcha, é danificada ou morre. O conceito universal jamais se
deteriora, envelhece. murcha ou morre. O universal é perfeito e imutável. A
ideia universal goza então de uma perfeição tal que os platónicos a
consideravam divina. Enquanto a rosa individual. concreta, material fenece e
perece, o universal rosa permanece para sempre o mesmo, perfeito e imutável.
Concluíam disto os filósofos de tendência
platônica, que a matéria era a fonte de todas as imperfeições e de todo o mal.
Era na matéria, causa da individuação, que estava a origem do mal. Estar neste
mundo material era ter as ideias divinas aprisionadas no cárcere da matéria. Só
com a libertação da matéria é que seria possível fazer as ideias universais
divinas retornarem ao pleroma divino de onde tinham caído.
Essa visão platônica era gnosticizante,
como bem o demonstrou Simone de Pètrement.
Para os gnósticos, há uma oposição radical
entre espírito e matéria. O espírito é divino. A matéria, produzida pelo
demiurgo, é sempre má. Na constituição dos seres a forma ideal é, pois, divina,
enquanto a matéria é seu cárcere maléfico. Como a matéria é a causa da
individuação, para o gnóstico ser indivíduo ou pessoa é um mal. O bem está na
absorção ou perda de todo eu no Todo divino, que coincide dialeticamente com o
Nada absoluto.
Essa posição de divinização do universal e
condenação de todo ser individual foi defendida por Mestre Eckhart e por todos
os sectários gnósticos do fim da Idade Média, entre os quais os Irmãos do Livre
Espírito. Não queremos dizer que todos os filósofos que defenderam o realismo,
em qualquer tempo, tenham sido, de fato, gnósticos. Queremos dizer, isto sim,
que o realismo, levado às suas últimas consequências, chega à Gnose.
A escolástica admitia a parcela de verdade
em que Platão se fundara para cair nesse erro. Com efeito, as essências criadas
por Deus existiram primeiramente na Inteligência ou Verbo de Deus como ideias
exemplares. Assim como um artista primeiro tem ideia do que vai esculpir, e,
depois, esculpe o que ideou, assim também a Sabedoria de Deus concebeu o que ia
criar. Por isso, Deus, ao criar, dizia antes uma palavra. Por isso também se lê
em São João que “tudo foi feito pelo Verbo e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3).
b) O nominalismo
No final da Idade Média, surgiu uma
corrente de pensamento diametralmente oposta ao realismo platônico. Roscelin e,
um tanto, Abelardo tinham-na preparado, mas ela só tomou todo o seu maior
desenvolvimento com a filosofia de Guilherme de Ockham, retratado por Eco na
figura de Frei Guilherme de Baskerville.
Para o nominalismo, os universais são meros
nomes. Nenhuma realidade corresponderia a um conceito universal, que só
existiria na mente. Os universais não se realizariam de modo algum nas coisas.
São apenas obras do espírito que as palavras exprimem. Assim, “rosa” é apenas
um nome. O nome “rosa” é um mero flatus vocis. A única realidade é a
rosa individual, diferente de todas as demais rosas existentes.
Ockham baseou-se nas ideias de Petrus
Hispanus, expostas no livro De supositionibus. Suposição é a posição que
um termo ocupa numa frase, no lugar de outras coisas, diz Ockham. Podemos distinguir
três tipos de suposição:
1 - Suposição material existe quando
o termo empregado numa frase designa apenas a própria palavra usada. Na frase: “a
rosa é uma palavra de quatro letras”, a palavra rosa é tomada em si
mesma, como termo escrito ou falado.
2 - Suposição pessoal existe quando
o termo usado numa frase designa um ente individual concreto e determinado. Por
exemplo, na sentença: “a rosa está se abrindo”, o termo rosa está no
lugar de uma determinada rosa individual concreta, à qual se faz referência.
3 - Suposição simples ocorre quando
o termo utilizado designa, não um ser individual concreto, mas o conceito
universal de um ser. É o que acontece com o termo rosa, na frase: “a rosa é uma
flor”.
Conforme essa teoria, a palavra rosa,
como universal, indica apenas um conceito mental, que não existe, de fato, na
realidade. Não existindo os universais, o homem só poderia conhecer as rosas
individuais, e, o que se conhece de uma rosa não pode ser aplicado a nenhuma
outra rosa.
Como já ensinara Abelardo, no século XII,
Ockham dizia que só o conhecimento do singular é verdadeiro, pois o homem tem
dele um conhecimento intuitivo, direto. Assim, só o particular seria real. A
essência equivaleria à existência.
Daí se concluía que o verdadeiro
conhecimento não pode ser teórico, e sim prático e experimental. É desses
pensamentos que vai nascer o experimentalismo, e o cientificismo do mundo
moderno.
Isto, a longo termo, acaba por negar não só
a existência das essências e dos universais, como também o valor de qualquer
conhecimento teórico racional, pois “é extremamente difícil para uma tal
doutrina explicar, a partir desses blocos individuais, sem nada em comum, como
o pensamento pode formar as noções de gêneros e espécies”, como diz Etienne
Gilson.
[...]
Assim, a negação das essências e dos
universais reduzia o ockhamismo a um empirismo e a um experimentalismo radicais
que comprometiam toda noção de relação.
Isto conduz ao problema da causalidade, pois
entre uma causa e um efeito o que existe é uma relação. A relação é um acidente
que não está num ser concreto, não é propriamente um ens in allio [ente
em outro]. Ela está “entre” os seres que se relacionam. Para Ockham, que só
aceitava o individual concreto, a relação não tinha nenhuma realidade, a não
ser a dos termos. Por isso ele negava a relação de causa e efeito. Argumentava dizendo
que a relação de causa e efeito não pode ser anterior ao efeito, já que a
relação supõe a existência dos dois termos; nem podia ser simultânea, porque o
efeito é consequência dela; nem podia ser posterior, pois que seria preciso
dizer então que ela se produz a si mesma. O único meio de provar que uma coisa
é causa de outra seria, portanto, a experiência, raciocinando com a presença ou
com a ausência da causa e do efeito.
[...]
Ockham em sua obra Centiloquium,
declara que a própria existência de Deus não pode ser provada. A existência de
Deus, assim como sua unicidade, sua infinitude, sua onisciência, seriam
questões às quais se deveria dar apenas uma adesão de fé. Desse modo, Ockham
cai no fideísmo, retirando à sua teologia qualquer apoio racional.
[...]
Também a existência da alma racional no
homem só poderia ser aceita pela fé, pois a razão não conseguiria prová-la. Por
onde, o ceticismo de Ockham raia pelo materialismo.
A ordem do mundo, como toda ordem, consiste
em uma relação entre seus elementos componentes. Ora, negando a existência real
das relações, Ockham não poderia aceitar a existência de ordem no mundo e muito
menos que esta ordem tivesse fundamento na própria natureza de Deus que fez o
universo à sua imagem e semelhança. Para Ockham, a suposta ordem posta por Deus
no mundo - se existe - é completamente arbitrária. Deus poderia ter feito o
universo em qualquer outra disposição. Noutras palavras, não haveria fundamento
racional objetivo para a ordem do universo.
Em consequência, a ordem moral também não
era considerada objetiva. Uma ação seria pecaminosa apenas porque Deus a
proibira, nada havendo nela de objetivamente mau. Se Deus tivesse ordenado o
pecado, ele seria bom. A ordem moral, portanto, poderia ser totalmente
invertida pelo arbítrio divino. Mais ainda. Até mesmo sob a ordem moral atual,
Deus poderia ordenar a alguém que a violasse, sendo então tal ato virtuoso. O
livre querer de Deus seria tão absoluto que poderia inverter a ordem moral.
Esse livre querer de Deus não se fundamentaria na essência divina e, por isso,
não teria nenhuma objetividade.
Desse relativismo moral os ockhamistas logo
deduziram a negação de toda ordem moral, tendo alguns chegados a dizer que a
lei de Deus era a única causa do pecado. [Aí admitiam então haver causa...]
Outros defenderam o mais radical antinomismo, muito semelhante ao da Cabala e
ao das seitas gnósticas.
c) O realismo moderado
A terceira posição da filosofia medieval
face à questão dos universais é a do realismo moderado, defendida por Santo
Tomás e adotada pela Igreja.
O universal nem é um mero nome, como
afirmavam os nominalistas, nem tem existência num mundo imaterial de puras
ideias, como diziam os platônicos e como queriam os gnósticos.
Para os defensores do realismo moderado -
em particular para Santo Tomás – é preciso distinguir, no espírito humano dois
universais, conforme o aspecto sob o qual se considera o universal:
1 - Universal direto, ou seja, um tipo de
ser atribuído de modo unívoco a muitos seres individuais. Este universal direto
é obtido pela abstração das notas individuais de cada ser concreto. O universal
então acrescenta, à ideia do tipo de ser que ele expressa, um estado de
abstração e de não individuação, de universalidade. É o universale post rem [universal
após a coisa], existente em nossa mente por abstração.
2 - Universal reflexo que tem esse nome
porque só é percebido por nossa inteligência após a comparação entre o
universal direto, que havíamos concebido, com as coisas em que o aplicamos e
nas quais ele se realiza de modo mais ou menos perfeito. A esse universal
reflexo se dá também o nome de universal formal.
O universal direto se acha nas coisas
quanto ao que ele expressa, não quanto ao modo com que o expressa.
Em cada ser concreto, há o indivíduo único,
identificado por suas notas particulares individualizantes, numa essência que
permite que se manifestem nele todas as atividades existentes em todos os seres
de sua espécie. É esta essência que é objeto de nosso espírito sob a forma de
uma mesma ideia, aplicável a todos os indivíduos da mesma espécie, e que
exprime o que eles são, independentemente de suas notas individualizantes.
Desse modo, podemos considerar uma essência
de três modos diversos: (a) em si mesma, com suas notas constitutivas, tal como
ela existe na mente divina, corno ideia exemplar, eterna em Deus. É o universale
ante rem [universal antes da coisa], isto é, o universal que Deus concebeu
antes de criar uma coisa. É a este universale ante rem que Platão deu
existência no mundo das ideias, como seres divinos, fora da Sabedoria de Deus. (b)
a essência enquanto existente em um indivíduo qualquer em estado concreto é o universale
in re [universal na coisa]. (c) a essência enquanto concebida em nosso
espírito, abstrata e universa. É o universale post rem.
O universal direto (universale post rem)
tem existência real em nossas mentes, enquanto conceito abstrato, e existe nas
coisas concretas, enquanto forma substancial (universale in re). Por
essa razão, nos é possível conhecer o que as coisas são. Tendo o homem a ideia
universal “rosa” em sua mente, ao ver uma rosa real, ele pode conhecer que o
conceito de rosa, existente em sua mente, existe também, formalmente na rosa
concreta, individual.
O universal reflexo não se encontra
realizado nem sequer nas coisas enquanto o que ele expressa, pois ele é um
simples ser de razão, que tem, entretanto, fundamento nos seres individuais
reais, isto é, a sua semelhança, que permite a nosso espírito agrupar seres
individuais em uma mesma espécie.
Esta, em termos breves, a teoria do
realismo moderado, que evita quer o materialismo, a que conduz o nominalismo,
quer a Gnose, termo final do erro do realismo.
* * *
O impulso psicológico básico da gnose e
do panteísmo
Qual é essa raiz comum da qual brotam os
sonhos racionalistas de construir a Utopia e os delírios irracionais da magia
alquímica para vencer a morte e todos os males que afligem o homem? Essa raiz é
a inconformidade com as limitações do ser humano, e particularmente com
as penas que o punem. O panteísta racionalista e o gnóstico
irracionalista desejam desesperadamente redimir o homem por seu próprio
esforço, usando de meios naturais. Esse desejo impotente e desesperado os faz
odiar a realidade tal qual ela é. Os faz odiar também o Criador e a criação
feita à sua imagem e semelhança. É no ódio a Deus criador e ordenador que a
Gnose alógica e o panteísmo racionalista comungam e dialeticamente se
identificam. O panteísmo racionalista quer construir a Utopia. A Gnose quer a
realização mágica do Milênio.
Fonte: Orlando Fedeli, Nos labirintos de Eco, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil, 2023, trechos selecionados.