5 de fevereiro de 2024

Metafísica escolástica


Ato e potência

Há três tipos de distinções no pensamento escolástico:

  • Distinção real: reflete uma diferença na realidade extramental.
    • Distinção real maior ou absoluta: reflete uma diferença entre entes, como pessoas, cachorros, árvores, pedras, ou entre duas metades de uma pedra, uma maçã e sua macieira, a pata e a perna de um cachorro, ou entre um pedra e sua cor, ou entre a quantidade e a qualidade de um ente).
    • Distinção real menor ou modal: reflete uma diferença entre os modos de um ente, ou seja, aquilo que não existe à parte do próprio ente (p.ex. um objeto material e sua localização, ou um objeto material e seu estado de repouso ou movimento).
  • Distinção lógica: reflete uma diferença na maneira de pensar a realidade extramental.
    • Distinção puramente lógica: reflete uma diferença lógica meramente verbal, sem nenhum fundamento na realidade (p.ex. a distinção entre “ser humano” e “animal racional”.
    • Distinção virtual: reflete uma diferença lógica que possui algum fundamento na realidade (p.ex. a natureza humana no mundo real é apenas uma coisa, embora possa ser abordada sob o aspecto da animalidade e da racionalidade).
      • Distinção virtual maior ou perfeita: reflete uma diferença lógica virtual na qual os conceitos não incluem um ao outro (p.ex. “animalidade” e “racionalidade”).
      • Distinção virtual menor ou imperfeita: reflete uma diferença lógica virtual na qual os conceitos se incluem, ou se implicam, um no outro (p.ex. “ser” e “substância”, pois “ser” abarca tudo o que existe, inclusive as substâncias, enquanto “substância” é um tipo de ser).
  • Distinção formal (Duns Scot): reflete uma diferença intermediária entre distinção real e lógica (p.ex. para Scot a distinção entre ato e potência é formal, para Tomás é real).

Quanto à potência:

  • Potência real ou potência subjetiva: é propriamente uma potência, e está enraizada em um sujeito real (p.ex. o potencial de uma bola derreter a certa temperatura).
    • Potência ativa ou poder: capacidade de suscitar um efeito (p.ex. a capacidade do fogo derreter a borracha). Para os escolásticos, trata-se de um tipo de ato ou atualidade, uma primeira atualidade, ou seja, um tipo de ato em relação à substância que a possui e um tipo de potência em relação à ação que a fundamenta. A potência ativa pura ou poder puro, isto é, aquele que não se encontra mesclado com nenhuma potencialidade, é pura atualidade e é identificada com Deus (potência ativa incriada). As demais potências ativas ou poderes sempre vêm mesclados com alguma potência passiva ou potencialidade (potência ativa criada).
    • Potência passiva ou potencialidade: capacidade de ser afetado (p.ex. a capacidade da borracha ser derretida). É o que popularmente se chama de “potência”.
      • Potência passiva em relação à coisa que a possui.
        • Potência passiva em relação à essência. Quanto às coisas que contêm matéria:
          • Matéria prima: pura potencialidade para receber uma forma.
          • Matéria segunda: aquela que já recebeu alguma forma substancial, mas está em potência relativa à recepção de formas acidentais.
        • Potência passiva em relação à existência.
      • Potência passiva em relação ao agente que suscita o efeito na coisa.
        • Potência passiva natural: indica um resultado obtido pelas capacidades naturais da coisa e que só pode ser atualizado por um agente que em si é uma mistura de potência ativa e passiva (p.ex. a capacidade de andar, falar, pensar, querer, escrever poemas, dormir, conhecer verdades cientificas, teológicas etc.).
        • Potência passiva supernatural ou obediencial: indica um resultado que não pode ser obtido somente pelas capacidades naturais da coisa e que só pode ser atualizado por um agente divino puramente ativo (p.ex. a capacidade para atingir a visão beatífica).
  • Possibilidade lógica ou potência objetiva: é um objeto de pensamento (p.ex. unicórnio)

Observa-se que “sujeito” e “objeto” para os escolásticos têm sentido praticamente inverso ao usado na filosofia contemporânea.

Quanto ao ato:

  • Ato puro
    • Ato absolutamente puro: somente Deus
    • Ato relativamente puro: anjos, pois suas essências estão em potência em relação à existência.
  • Ato misto
    • Ato operativo. É a operação ou atividade de uma coisa.
    • Ato entitativo. É a coisa estaticamente falando.
      • Ato essencial. O que a coisa é, sua essência ou natureza.
        • Forma substancial (ou “ato primeiro”). O que faz a coisa ser o tipo de substância que é.
        • Forma acidental (ou “ato segundo”). O que modifica uma substância já existente.
      • Ato existencial. Aquilo que é, a existência da coisa.

Observa-se que uma causa eficiente (chamada na filosofia escolástica de “agente”) é o que suscita o surgimento do ser, ou modifica o ser, de alguma coisa. A causa eficiente, portanto, atualiza uma potência mediante o exercício das potências ativas (ou “poderes”) contidos na própria causa. Sou o autor deste texto, ou seja, sou sua causa eficiente, mas isso não significa que eu esteja todo o tempo escrevendo este texto. Meu poder de escrever deve ser distinguido da ação de escrever. Note aqui algo discreto, mas crucial: o possuidor do poder é a causa propriamente dita, enquanto o poder é um acidente da substância, não a substância em si. Os eventos não são “causas”, mas são as substâncias que adentram aos eventos que são causas.

Causalidade

Aristóteles faz uma distinção entre causa eficiente e causa final.

  • Causa eficiente. É chamada na filosofia escolástica de “agente”. É o que genericamente chamamos simplesmente de “causa” na filosofia contemporânea. É aquilo que suscita algo à existência, ou que ao menos modifica esse algo de alguma maneira.
  • Causa final. É o que Aristóteles chamava de “aquilo em prol do que” algo existe ou ocorre. É o fim ou objetivo desse algo. Na filosofia contemporânea geralmente é chamada de “causalidade teleológica”. Há algumas distinções que devem ser feitas nas causas finais:
    • Finalidade intrínseca vs. finalidade extrínseca. A finalidade de um relógio, p.ex., é extrínseca às partes do relógio. Quem lhe dá finalidade não é o relógio em si, mas o fabricante do relógio e o usuário do relógio. A finalidade é como que imposta ao relógio desde fora. A finalidade de uma bolota, por outro lado, é desenvolver-se em um carvalho. É algo que de certa forma faz parte da constituição da bolota. É sua finalidade intrínseca. Os metais do relógio continuam sendo o que são a despeito da finalidade do relógio, enquanto uma bolota deixa de ser uma bolota se ela não é capaz de desenvolver-se em um carvalho. É, a propósito, a diferença entre um artefato e uma verdadeira substância.
    • Fim vs. direcionamento. O fim de algo é sempre extrínseco a esse algo. Dar as horas é o fim, ou pelo menos um dos fins, do relógio, enquanto as partes desse relógio têm o direcionamento de dar as horas. No caso da bolota, o fim e o direcionamento estão ambos na própria bolota.
    • Origem próxima vs. origem distante. A origem próxima da teleologia natural está na própria natureza das coisas, enquanto sua origem distante está no intelecto ordenador divino. A propósito, segundo a filosofia escolástica, os seres vivos são distintos dos seres inanimados porque os seres vivos são capazes de causação imanente (como a digestão p.ex.), enquanto os seres inanimados são capazes apenas de causação transeunte ou “transiente” (como uma pedra que movimenta outra mediante um choque p.ex.).

Está claro para a filosofia escolástica que a causa final é absolutamente necessária para explicar as causas eficientes. Se o efeito B é suscitado pela causa eficiente A, então a necessidade está forçosamente em A. No entanto, para tornar a regularidade dessas causas eficientes em algo inteligível é forçoso atribuir finalidade a essas causas eficientes, ou seja, a finalidade está como que nas causas eficientes. Portanto, não cabe concluir, à moda de Ockham e seus seguidores, que as causas finais são extrínsecas às coisas. As ciências podem, e devem, nos dizer se esta ou aquela finalidade é realmente plausível a esta ou aquela coisa, mas não têm condições de dizer se a finalidade enquanto tal é algo plausível ou não.

Hume chega a duvidar da causalidade e afirma que qualquer “efeito” pode, em princípio, surgir sem uma causa correspondente. Feser entende que em toda a sua filosofia Hume confunde imaginação com intelecção. São atividades essencialmente diferentes, embora os empiristas insistam em fundi-los. A intelecção tem a ver com a apreensão de conceitos, enquanto a imaginação tem a ver com a manipulação de imagens mentais (ou “fantasmas”). Os conceitos se referem a entes abstratos e universais, as imagens mentais se referem a entes concretos e particulares. Os conceitos podem alcançar um caráter determinado e inequívoco que nenhuma imagem mental poderia. Ora, é claro que podemos imaginar um efeito sem causa, mas também tem de ser claro que não podemos inteligir um efeito sem causa. E aqui cabe introduzir o princípio da causalidade (PC). Segundo explica Feser, o PC é a ideia de que “a potencialidade não pode atualizar-se sem a intervenção de um ser que já esteja atualizado”.

Para os metafísicos escolásticos, causa e efeito não são dois elementos ou dois eventos, mas dois elementos de um e mesmo evento. Eis o aspecto da simultaneidade da causalidade, embora, atenção, isso não implique em instantaneidade.

Outra distinção importante entre os escolásticos é uma série causal ordenada essencialmente de uma série causal ordenada acidentalmente. Se uma mão move um graveto que por sua vez move uma pedra, há uma conexão causal essencial entre os membros da série. Se o primeiro membro renuncia a seu poder causal, os demais não serão capazes de propagar a cadeia causal. Por outro lado, se um pai gera um filho, o fato de o pai não estar gerando um filho não anula o poder causal que o filho terá para gerar outro filho (neto do pai). Neste sentido, a relação entre os membros dessa série causal é acidental. E observe: numa relação ordenada essencialmente a simultaneidade é obrigatória, enquanto numa relação ordenada acidentalmente a simultaneidade não é obrigatória. E mais: numa relação ordenada essencialmente a série não pode estender-se para trás infinitamente, enquanto numa relação ordenada acidentalmente a série pode em princípio estender-se para trás infinitamente. Isso se explica porque, numa relação ordenada essencialmente, há uma primeira causa, ou seja, não apenas uma causa que venha antes da segunda, da terceira, da quarta causa etc., mas uma primeira causa que não tenha seu poder causal derivado de nenhum outro ente. A primeira causa é por definição incausada, enquanto as demais têm seu poder causal meramente instrumental ou derivativo.

Quanto ao PC, tudo o que estiver no efeito tem de necessariamente estar na causa total, seja formalmente, virtualmente ou eminentemente. Por exemplo, se tenho uma nota de 20 reais e a entrego a você, eu tenho a “forma” de possuir uma nota de 20 reais e causo você a ter a mesma forma. O efeito está na causa formalmente. No entanto, se tenho 20 reais na minha conta bancária e os transfiro por PIX à sua conta, o efeito está na causa total (eu, a conta bancária etc.) virtualmente. No entanto, se tenho em meu poder uma impressora genuína de notas de 20 reais e imprimo uma para você, então o efeito está na causa total (eu, a impressora etc.) eminentemente. As aplicações desse entendimento à existência de Deus são óbvias.

Substância

Ter uma substância (forma substancial) é ser um objeto “natural” no sentido de algo que “contém em si sua fonte de mudança e de estabilidade”. Um cipó tem substância, mas uma rede de dormir feita de cipós não. Enquanto a matéria prima está privada de substância, a matéria segunda (a matéria que já é água, ou pedra, ou homem, ou cão, ou cipó etc.) tem, sim, substância. É como se a matéria segunda estive “à espera” das várias formas acidentais que complementem sua forma substancial. Portanto, no mundo real a matéria prima só pode vir a existir em conjunto com a forma substancial.

Aqui uma nota importante. Dizemos que a água é composta de hidrogênio e oxigênio. É verdade, mas, segundo o entendimento tomista, o hidrogênio e o oxigênio estão apenas virtualmente presentes na água, mas não realmente presentes. Ora, apenas algumas das (mas não todas as) propriedade do hidrogênio e do oxigênio estão presentes na água. Isso significa que somente a forma substancial da água existe na água, enquanto as formas substâncias do hidrogênio, do oxigênio, dos quarks etc. estão apenas virtualmente presentes. Segundo Feser, “a forma substancial permeia a totalidade da substância que a possui, não apenas horizontalmente em suas partes – há tanta ‘cachorricidade’ no focinho e no rabo do Rex quanto no Rex como um todo –, mas também verticalmente na própria corporalidade do Rex; os elementos químicos existem virtualmente no Rex”. Não é o Rex que pode ser reduzido às suas partículas, mas suas partículas que “se reduzem” aos objetos naturais dos quais fazem parte. As partículas são menos reais do que o todo. A questão, observe, é filosófica, não científica.

Veja que a substância é o subjectum, o substrato, no qual os acidentes são inerentes. Por outro lado, a substância é a coisa que existe por si mesma e não precisa ser inerente em outra coisa.

Quanto ao acidente, chamamos de acidente próprio ou “propriedade” aquele que se segue ou “flui” da forma substancial da coisa. Por exemplo, a capacidade para fazer humor ou o livre arbítrio são propriedades que se seguem ou “fluem” da natureza humana enquanto animal racional. Um acidente contingente é aquele que não se segue ou não “flui” da forma substancial da coisa. Por exemplo, ter pele clara ou ter pele escuro são meros acidentes contingentes dos seres humanos. A cor da pele, portanto, não é uma propriedade dos homens enquanto tal.

A despeito se própria ou contingente, a manifestação de um acidente pode ser frustrada: um ser humano pode ser incapaz de exercitar seu livre arbítrio por portar alguma lesão cerebral ou um cão ser incapaz de andar por lhe faltar uma perna devido a um acidente ou defeito genético. Nada disso significa, porém, que essas coisas deixem de ser acidentes. Isso mostra, na verdade, que a essência de algo não é uma mera coleção de seus acidentes próprios (ou propriedades).

Essência e existência

A essência de uma coisa é aquilo que captamos intelectualmente quando identificamos o gênero e a diferença especifica dela. A essência é portanto a natureza da coisa (cf. FrederickWilhelmsen).

Santo Tomás era uma “essencialista”, ou seja, ele acredita que as essências existem realmente. Os convencionalistas, por outro lado, acreditam que as essências são dependentes da mente, ou seja, não têm existência própria. Mas um momento: se as essências dependem da mente, isso significa que elas pressupõem a existência dessa mente. Se a mente é ontologicamente (se não cronologicamente) anterior às essências, mas para que a mente exista é obviamente necessário que sua própria essência exista, então concluímos que a mente é tanto anterior quanto posterior às essências, o que é obviamente impossível. Portanto, triangularidade, humanidade, vermilhidade etc. são universais que existem independentemente da mente, ou seja, não são meras invenções da mente humano ou artefatos linguísticos. No entanto, um escolástico não entende que as essências existam numa espécie de “céu platônico”, mas que existem imanentemente nas coisas em si e são abstraídas pelo intelecto. Então veja: as essências existem realmente, mas não significa que existam independentemente das coisas que compõem o mundo. Elas não são nem individuais, nem universais.

Os empiristas, à moda de Berkeley, acreditam numa espécie de “imagismo”, isto é, como se os conceitos fossem imagens mentais, ou aquilo que os escolásticos chamavam de fantasmas. No entanto, os conceitos são universais e abstratos, enquanto as imagens não podem ser nem universais, nem abstratas. É verdade que os conceitos provêm do mundo sensível, mas não se pode tolerar a ideia de que os conceitos são meramente imagens.

Similarmente, não se pode tolerar a ideia de que a essência é apenas e tão-somente a reunião das propriedades e das leis que regem uma coisa. Tais atributos derivam da essência, mas não são a essência. As propriedade e leis explicam uma essência, mas, novamente, não são a essência.

Por fim, cabe distinguir a essência da existência de algo. De maneira geral, a essência é a potencialidade da coisa, enquanto a existência é a atualidade da coisa. Observe, por exemplo, que não há nada na essência de uma arvore que implique que ela exista. Para os tomistas, a distinção essência-existência é real. Ora, se você nunca tivesse visto nem ouvido falar de leões, dinossauros e unicórnios, como poderia saber que leões existem, dinossauros existiram e unicórnios não existem nem existiram? Eis uma maneira prática de entender que existência e essência são distintas.

O ser-em-potência, para os escolásticos, é diferente do ser-em-ato. Ambos, ato e potência, tem ser, mas “ser”, neste caso, é um termo análogo, não unívoco nem equívoco. Eis um esquema que ajuda a entender a questão:

1. O ato é real, isto é, tem ser.

2. A potência é real, isto é, tem ser.

3. A potência é realmente distinta do ato.

4. Se a potência tivesse ser no mesmo sentido unívoco que o ato tem ser, então a potência não seria realmente distinta do ato.

5. Se a potência tivesse ser apenas em sentido equívoco, então a potência não teria ser nenhum.

6. O único sentido cabível aqui é o sentido analógico.

7. Portanto, a potência tem ser em um sentido análogo ao ser que o ato tem.

Fonte: Edward Feser, Scholastic Metaphysics, Editiones Scholasticae, Alemanha, 2014.