I) Palavras de Cristo aos homens falando-lhes
deles mesmos
Tais palavras são o que comumente chamamos
de “sabedoria”. É quando Cristo diz, por exemplo, que o mal que há no mundo não
provém do mundo, mas do homem mesmo. Mais especificamente, o mal encontra-se no
coração, que é onde o homem prova tudo o que vive e a si mesmo.
E, chamando outra vez a multidão,
disse-lhes: Ouvi-me vós, todos, e compreendei. Nada há, fora do homem, que,
entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele isso é que contamina o
homem. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça. Depois, quando deixou a
multidão, e entrou em casa, os seus discípulos o interrogavam acerca desta
parábola. E ele disse-lhes: Assim também vós estais sem entendimento? Não
compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar, porque
não entra no seu coração, mas no ventre, e é lançado fora, ficando puras todas
as comidas? E dizia: O que sai do homem isso contamina o homem. Porque do
interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as
fornicações, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a
dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males
procedem de dentro e contaminam o homem. (Marcos
7:14-23)
No entanto, o homem, obstinado que é,
insiste em depositar seu interesse no mundo, que é menos do que o homem. Cristo,
porém, ensina precisamente o contrário:
Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos
quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem
quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o
mantimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que
nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as
alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? E qual de vós poderá,
com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? E, quanto ao
vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles
crescem; não trabalham nem fiam; e eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a
sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim veste a erva do
campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais
a vós, homens de pouca fé? Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos,
ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas os
gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas
estas coisas; mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas
estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de
amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. (Mateus 6:25-34)
A propriedade constitutiva da vida humana,
portanto, segundo Cristo, é provar-se. A realidade do homem, provado no
coração, é, portanto, de natureza afetiva. A afetividade é a essência da
vida. No coração reside nossa realidade, nossa vida.
Mas Cristo nos apresenta a vida não somente
como uma oposição entre o homem e o mundo, mas como uma oposição entre o
visível e o invisível. E esta oposição abre a possibilidade do homem viver
em meio à hipocrisia, à falsidade, ao fingimento. É na nossa subjetividade invisível
que reside nossa realidade efetiva, enquanto o visível é tão-só uma aparência.
Portanto, temos de lutar incessantemente contra a hipocrisia.
Cristo ensina que a vida vale mais do que a
Lei. E nesta oposição entre visível e invisível Cristo ensina que a vida humana
não é uma progressão, um aperfeiçoamento, das relações naturais, mas uma ruptura.
Não cuideis que vim trazer a paz à
terra; não vim trazer paz, mas espada; porque eu vim pôr em dissensão o homem
contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os
inimigos do homem serão os seus familiares. (Mateus
10:34-36)
Cuidais vós que vim trazer paz à terra?
Não, vos digo, mas antes dissensão; porque daqui em diante estarão cinco
divididos numa casa: três contra dois, e dois contra três. O pai estará
dividido contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha, e a
filha contra a mãe; a sogra contra sua nora, e a nora contra sua sogra. (Lucas 12:51-53)
Porque o reino dos céus é semelhante a
um homem, pai de família, que saiu de madrugada a assalariar trabalhadores para
a sua vinha. E, ajustando com os trabalhadores a um dinheiro por dia, mandou-os
para a sua vinha. E, saindo perto da hora terceira, viu outros que estavam
ociosos na praça. E disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e dar-vos-ei o que
for justo. E eles foram. Saindo outra vez, perto da hora sexta e nona, fez o
mesmo. E, saindo perto da hora undécima, encontrou outros que estavam ociosos,
e perguntou- lhes: Por que estais ociosos todo o dia? Disseram-lhe eles: Porque
ninguém nos assalariou. Diz-lhes ele: Ide vós também para a vinha, e recebereis
o que for justo. E, aproximando-se a noite, diz o senhor da vinha ao seu
mordomo: Chama os trabalhadores, e paga-lhes o jornal, começando pelos
derradeiros, até aos primeiros. E, chegando os que tinham ido perto da hora
undécima, receberam um dinheiro cada um. Vindo, porém, os primeiros, cuidaram
que haviam de receber mais; mas do mesmo modo receberam um dinheiro cada um. E,
recebendo-o, murmuravam contra o pai de família, dizendo: Estes derradeiros
trabalharam só uma hora, e tu os igualaste conosco, que suportamos a fadiga e a
calma do dia. Mas ele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço
agravo; não ajustaste tu comigo um dinheiro? Toma o que é teu, e retira-te; eu
quero dar a este derradeiro tanto como a ti. Ou não me é lícito fazer o que
quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom? Assim os
derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros; porque muitos são
chamados, mas poucos escolhidos. (Mateus 20:1-16)
Quando meditamos as palavras de Cristo, vemos
que as relações desconcertantes anunciadas por Ele não são vividas dentro das
modalidades da vida, dentro dos sentimentos, dentro do coração. É lá, no
coração, e não no mundo, que serão felizes os que choram, os que são perseguidos,
os que forem odiados, os que forem expulsos, os que forem insultados, os que
forem desprezados. Por outro lado, infelizes são os ricos, os saciados, os que
riem, os que são elogiados. E veja que as relações humanas, com base nessa ruptura
radical das relações naturais, também são rompidas:
Mas a vós, que isto ouvis, digo: Amai a
vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam; bendizei os que vos maldizem, e
orai pelos que vos caluniam. Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a
outra; e ao que te houver tirado a capa, nem a túnica recuses. (Lucas 6:27-29)
Aqui Michel Henry desnuda uma característica
crucial das relações humanas que é absolutamente desqualificada e condenada por
Cristo: a reciprocidade. O que os homens fazem e o que os homens são explica-se
a partir deles mesmos, a partir das relações recíprocas que imperam entre eles.
A raça humana já não recebe seu ser da luz
do mundo, mas sim da relação interior com Deus. Abre-se, assim, um novo
abismo no seio do invisível. Esse novo abismo é caracterizado pela não-reciprocidade.
A era do olho por olho, dente por dente, está morta. Esse novo abismo descortina
uma nova reciprocidade: a relação interior dos seres vivos com a Vida.
Mesmo quando as relações humanas são pautadas
pelo “amor”, esse “amor” vem do coração. Mas do coração provém somente o mal.
Portanto, o “amor” desinteressado que se constata nas relações humanas é um “amor”
perfeitamente interesseiro, cobiçoso, egoísta. Como diz Henry: “Na ausência de
Deus, o amor dissolve-se naturalmente: sou tributário do amor do outro e o amor
do outro é tributário do meu, aleatório, do mesmo modo que a reciprocidade à
qual deve a sua existência fugaz”.
II) Palavras de Cristo aos homens
falando de Si mesmo
A não-reciprocidade significa a imanência da
vida absoluta nos seres vivos. Uma nova genealogia, que é divina e não mais
humana, se configura nesse novo abismo: não somos mais filhos de homens, mas
filhos de Deus. Essa imanência significa que Cristo não apenas conhece e explica
as coisas do Reino de Deus, mas Ele mesmo intervém na relação com os homens. A
relação dos homens com Cristo, ademais, é revelada como sendo idêntica à
relação de Cristo com Deus. Ao relacionar-se com Cristo, os homens cumprem
automaticamente as bem-aventuranças anunciadas por Cristo. Cristo, portanto,
identifica-Se com o próprio Deus.
Mas quem pode dar testemunho dessa condição
de Jesus Cristo? Quem poderia atestar que Cristo é quem diz que é? Esse testemunho
só poderia ter vindo, e veio, de uma única fonte: o próprio Pai.
III) Como a palavra de Cristo difere da
palavra humana
Aqui Henry faz uma análise magistral das
palavras de Cristo. As palavras humanas, dissemos acima, permitem o exercício da
hipocrisia, ou seja, permite que o coração e o mal que carrega impere nas relações
humanas: elas afirmam o que não existe e negam o que existe. A palavra de
Cristo, a palavra da Vida, é incapaz de mentir.
Veja, por exemplo, o sofrimento. O
sofrimento prova-se a si mesmo. O sofrimento só é capaz de falar de si mesmo
sofrendo. Mesmo que eu diga “eu sofro”
sem estar realmente sofrendo, essa palavra “sofro” é apenas uma significação do
sofrimento, e não o próprio sofrimento. A palavra do mundo fala sobre o
sofrimento. Somente a palavra do sofrimento é a palavra da verdade. A autorrevelação
da vida permite provar, sem erros, o sofrimento.
Aqui observamos a relação intima e indestrutível
entre Verdade e Vida. “Enquanto que a palavra do mundo fala do que se tornou
manifesto na indiferença da exterioridade, é no sentimento, neste sentimento em
que ela se prova sempre, de modo patético, que fala a palavra da vida”, diz Henry.
Do mesmo modo as palavras de Cristo falam
de maneira inegável da Verdade.
IV) Como os homens são capazes de ouvir
a palavra de Deus
Os homens são capazes de ouvir Suas
palavras, e nelas detectar a verdade inegável, porque é o próprio Deus quem
confere este poder aos homens. Quando Cristo diz:
Disse-lhe, pois, Pilatos: Não me falas a
mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te
soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima não te
fosse dado. (João 19:10,11)
Porque sem mim nada podeis fazer. (João 15:5)
Ele não se refere apenas ao poder dado a
Pilatos, mas a todo e qualquer poder. Ora, mas essa não é a experiência que
temos. No dia a dia facilmente assumimos que o exercício dos nossos poderes é
algo que brota de nós mesmos, de nosso eu, de nossa vida. Nós imaginamos que
esse poder nós colhemos de nós mesmos. Imaginamos que se somos a fonte e o
fundamento de nosso poder, somos também a fonte e o fundamento de nosso próprio
ser. Eis a ilusão das ilusões: “Este eu inultrapassavelmente passivo em relação
a si mesmo, sempre já dado a si mesmo na vida, posto nela independentemente do
seu querer, ei-lo a seus olhos um Sujeito omnipotente, senhor de si mesmo, princípio
de algum modo absoluto da sua condição de vivo, de seu eu, do conjunto das suas
capacidades e talentos. [...] É deste coração cego à Verdade, surdo à Palavra
da vida, endurecido, preocupado exclusivamente consigo, tomando-se como ponto
de partida e término das suas experiencias e das suas ações, é dele que sai o
mal”.
É na vida que se encontra aquilo que Henry
chama de “autorrevelação patética”. Esta autorrevelação é o que permite, por
exemplo, que sintamos o sofrimento. O sofrimento é algo que não fala ao mundo,
mas somente ao coração humano. O mesmo podemos dizer da alegria, da angústia,
dos desejos, das emoções, dos quereres, dos pensamentos etc. Tudo é sentido
ali.
O poder de Cristo é igualmente exercido no
coração, onde ocorre uma purificação, uma transformação radical. É Cristo quem
dá a vida, é Ele quem a restabelece, é no coração que o faz. Diz Henry: “Escutar
a palavra é então consubstancial à natureza humana. Esta identidade da
revelação do homem a si, no seu coração, e da revelação de Deus no seu Verbo
explica porque é que Deus vê no íntimo dos corações, um dos grandes temas do
ensino de Cristo dirigido aos homens. [...] A possibilidade de o homem escutar,
no seu coração, a palavra de Cristo é também a possibilidade de compreender as
Escrituras”.
Cristo é a Vida. Se a vida é aquilo com que
provamos a alegria, o sofrimento etc. o Cristo é o próprio abraço com o qual
provamos tudo isso. Nossa vida é a Vida. De novo, provar a palavra é
consubstancial a nós.
* * *
Um exemplo característico de como as palavras de Cristo, uma vez que ressoam num coração previamente purificado, são acolhidas como verdade inerrante é o de São Justino Filósofo.
Fonte: Michel Henry, Palavras de Cristo, Colibri Edições, Lisboa, Portugal, 2003.