23 de fevereiro de 2024

O papel dos logoi nas artes sacras


O principal objetivo da obra de Philip Sherrard foi opor-se ao dualismo metafísico, cosmológico e antropológico. Este tipo de dualismo acabou se automatizando em uma espécie de "estado de espírito geral", e está, segundo Sherrard, na base do fracasso espiritual do mundo moderno. Não sendo uma mera “opção filosófica”, o pensamento dualista funciona como uma patologia da (auto)percepção do mundo. Ele molda a forma como olhamos aos nossos semelhantes, e ao mundo material que nos rodeia, e os tornam recursos a serem explorados a fim de satisfazerem nossas necessidades egoístas. Na raiz da crise do mundo moderno encontra-se um erro no olhar epistêmico do mundo: a ilusão de adquirir conhecimento sem referência ao fundamento metafísico das próprias coisas que contemplamos, que é a única instância que pode realmente investir essas coisas com realidade e, em última instância, com sentido. Assim, um objeto físico não pode por si só legitimar sua existência e seu sentido: não pode haver nenhuma física separada da metafísica, e, sem seu fundamento metafísico (das Ding an Sich), toda a física é uma ilusão epistêmica e ontológica. O homem não pode por si só conferir realidade às coisas exteriores; eis o dilema do evolucionismo.

O conhecimento da natureza é também uma ilusão, que passou a ser dogmatizada pela ciência moderna com o seu imperativo de renunciar a qualquer teoria metafísica; esta renúncia não pode basear-se senão numa mentira, pois a própria existência humana aponta para a esfera metafísica e não pode ser concebida fora dela. A “ciência” moderna também está errada porque postula dois aspectos diferentes do objeto sob sua investigação: um físico, que daria fundamento a um conhecimento acessível a todos os homens dotados de sã consciência, e outro metafísico, cujo conhecimento é supostamente subjetivo e, portanto falso para aqueles que não compartilham da mesma visão. O paradigma do conhecimento universalmente aceitável é, portanto, a matemática, que por sua vez não pode dar fundamento metafísico ao mundo físico, mas que acaba por quantificar o cosmos. Até mesmo Deus, privado de sua relevância metafísica, torna-se o “Grande Matemático”. Assim, tudo, mesmo Deus, é reduzido a mera quantidade, como argumentou anteriormente René Guénon. Se o papel de Deus no mundo for reduzido ao mero ofício de um relojoeiro, o próprio cosmos torna-se um mecanismo gigantesco, que não necessita mais da intervenção do seu próprio Criador, podendo funcionar independentemente dele, e de acordo com “suas próprias” leis mecânicas. Esta ideia está, segundo Sherrard, na base da crise ecológica moderna.

De acordo com Sherrard, existem dois modos opostos de consciência humana: a “consciência utilitarista do ego”, um termo que possivelmente sugere a teoria patrística de que todo mal humano tem sua raiz no “amor-próprio” (philautia) e uma “consciência espiritual”, também chamada de “consciência angélica”. Seus correspondentes órgãos de conhecimento seriam, portanto, a razão discursiva e o intelecto. Este duplo conhecimento representa, no entanto, um condicionamento cultural infundido por dinâmicas específicas na história da cultura ocidental. A responsabilidade por esta divisão epistêmica e (portanto) por este fracasso é, segundo Sherrard, da teoria medieval da dupla verdade, que põe em movimento a autonomização da racionalidade contra a fé e contra a metafísica.

Segundo Sherrard não existe natureza (physis) à parte de Deus, ou seja, não é possível conceber um lugar em que a natureza seja autônoma e separada de Deus. Assim, não pode existir sagrado e profano (e, portanto, nenhum sagrado oculto no profano, como pensava Mircea Eliade), mas apenas diferentes níveis ontológicos de ser, natureza e homem, que portam em diferentes graus a sacralidade imutável do divino. Para Sherrard não há lugar filosófico para a teoria da criação a partir do nada (ex nihilo), exceto no caso em que “nada” seja apenas outro nome (apofático) para o próprio Deus.

Sherrard não teme em usar a noção de panenteísmo para expressar a ideia de que toda a criação está acontecendo em Deus, está em Deus. Segundo ele, esta é a intuição fundamental da pregação de São Paulo no Areópago, quando citou as palavras do antigo poeta Arato (Atos 17:28), bem como em sua epístola aos romanos (Romanos 3:36). Esta visão de São Paulo foi assumida pelos primeiros autores cristãos, que tentaram uma síntese de sua fé (São Justino, o Mártir, Santo Irineu de Lyon, Orígenes), e mais tarde por São Máximo, o Confessor, em seu ensinamento sobre os logoi divinos da criação.

O mistério da criação é evidente, segundo Sherrard, na relação entre a doutrina da Trindade, da criação e da Encarnação, formando uma visão teológica "teoantropocósmica". O Logos divino, que é o Filho de Deus e, ao mesmo tempo, o Filho do Homem, é o mesmo no ato da criação e na sua encarnação. Ele é desde a eternidade e na eternidade o mesmo Cristo cósmico (Deus-homem e Deus-criatura), e a natureza é o próprio Corpo de Cristo, antes mesmo do próprio ato de criação, porque a geração eterna do Logos e a criação são o mesmo ato divino, único e eterno, sem que isso implique que o mundo existiria desde a eternidade, mas levando-se em conta o eterno Plano/Pensamento divino do Deus Tri-Uno. Além disso, o ato da criação não deve ser atribuído à vontade de Deus, como se Deus pudesse ter decidido não criar o mundo, mas deve ser entendido como uma expressão da natureza amorosa de Deus: assim como Deus não pode deixar de amar (!), da mesma forma Ele não pode não ter criado o mundo. Como expressão da sua própria natureza divina, a criação é um nível eterno da autoconsciência do próprio Deus, da sua própria revelação para si mesmo, manifestada em diferentes níveis de autorrevelação. Há neste ponto alguns acentos que aproximam as especulações metafísicas de Sherrard das de René Guénon, especialmente na equivalência entre ser e conhecer, bem como na conceptualização dos diferentes níveis do ser.

De volta ao processo intradivino de desvelamento do ser, Sherrard propõe distinguir entre várias “fases”, correspondendo a diferentes níveis de diferenciações internas do divino. A primeira corresponde à atualização das potências divinas de Deus Pai em seu Logos, no sentido de este se tornar imagem (ícone) do Pai. Essas potências são identificadas com os nomes de Deus, que por sua vez são individualizados em diferentes formas, como logoi divinos ou “imagens-arquétipos” do mundo criado. Esses logoi também representam a realidade divina de cada coisa criada. Estas considerações levarão Sherrard a argumentar em termos sofiológicos a favor da sacralidade da natureza.

A doutrina dos logoi é fundamentada patristicamente nos escritos de São Máximo, o Confessor, mas Sherrard modifica e expande sua visão para muito além do domínio estritamente cosmológico, privilegiado por Máximo, para o domínio dos processos intradivinos. Sherrard minimiza ainda mais o acento cristocêntrico de São Máximo, embora declare a definição cristológica do Concílio de Calcedônia (451 d.C.) como o único modelo real que conceitualiza as várias encarnações dos logoi divinos no cosmos e no homem.

Além disso, as glosas trinitárias de Sherrard relativas aos processos intradivinos de individuação e diferenciação também não são muito consistentes com a noção cristã da Trindade. Por exemplo, mesmo que o Logos desempenhe um papel central na sua exposição, há pouca menção ao papel do Espírito Santo, apesar da relevância teológica da pneumatologia para uma doutrina da criação. Surpreendentemente, outro ponto vital da doutrina ortodoxa, que não é levado em consideração, além de algumas breves declarações, é a doutrina das energias incriadas de Deus.

Philip Sherrard não almejava, de fato, a uma formulação rigorosa da doutrina patrística dos logoi divinos, mas tentava adaptar alguns impulsos patrísticos às suas opiniões pessoais, a saber, a função semelhante à dos logoi das “imagens-arquétipos” e seu papel no processo estético.

A realidade arquetípica dos logoi divinos, como uma espécie de “ponteiro metafísico” imediato de cada coisa visível, é entendida por Sherrard nos termos daquilo que o francês Henri Corbin referiu como mundus imaginalis. Esta expressão é uma tradução do árabe ˁālam al-mithāl (ءالم المثال) nos escritos do místico sunita Ibn ʿArabī (1165-1240) ou do xiita Suhrawardī (1154-1191), termo este usado para designar a realidade ontológica do coisas reveladas, um mesocosmos de imagens e, fenomenologicamente falando, o próprio “lugar” dos acontecimentos proféticos e angélicos da história da salvação. Para aceder a este nível ontológico, os homens são dotados de um órgão sensorial especial – a imaginação –, mas que não deve ser entendida em termos puramente psicológicos, ou seja, como sendo mera “fantasia” e, portanto, mera “ilusão”. As implicações epistêmicas desta noção já são evidentes no trabalho do próprio Corbin, que via o papel deste termo como um manifesto anticartesiano concreto e parte de uma hermenêutica antimoderna.

As maneiras pelas quais Philip Sherrard concebe a identificação das imagens-arquétipos com este mundus imaginalis nunca são explicitamente detalhadas, exceto por algumas escassas referências, mas fica claro em seus escritos que Sherrard pretendia com isso articular alguns contornos fundamentais de uma teoria estética. Assim, já na sua tese de doutorado sobre a poesia grega moderna, Sherrard refere-se ao mundo dos arquétipos como a fonte de inspiração poética por excelência. Nesses seus primeiros escritos, as referências concretas ainda eram apenas a Platão, mas já então a própria possibilidade da arte era descrita em termos do acesso do artista ao mundo dos arquétipos. Para Sherrard, os arquétipos nada tinham a ver com o domínio psicológico e individual da mente humana, e vem daí sua acirrada polêmica com C. G. Jung. Mesmo seu próprio impacto estético original, que está na base da sua conversão à Ortodoxia, é interpretado retrospectivamente por Sherrard como tendo sido uma intuição da realidade ontológica dos arquétipos, como parte da outra mente (greco-bizantina) da Europa. Para este conteúdo filosófico platônico dos arquétipos, o Cristianismo Oriental contribuiria com seu próprio sentido da intuição do próprio Logos oculto na matéria/criação.

Sherrard raramente menciona de que tipo de arte está falando: para ele só pode haver arte sacra, arte que se abre à infusão do reino transcendente. Não só a arte é sacra por definição, mas também outras instâncias como a natureza, a vida, o homem, na medida em que também se abrem e testemunham o transcendente, através do seu logos divino interior. Consequentemente, se entre o divino e a criação existe uma relação simbiótica, então todo o cosmos é apenas um gigantesco sacramento e, de acordo com o princípio da homogeneidade sacramental da natureza, não existe o profano.

No entanto, uma sensação de desconforto acompanha esta visão luminosa da dignidade da natureza: a consciência de que vivemos num mundo caído e de que a natureza sacramental do mundo criado está apenas potencialmente ativa, mesmo que seja em menor grau. Ainda mais do que uma mera potência, o mundo como sacramento designa a realidade numenal das coisas percebidas (as “coisas em si”), bem como o seu telos divino, temporariamente ofuscado pelo pecado. O papel da arte sacra é dar expressão ao mundo divino e inteligível, que está logo atrás das coisas perceptíveis e que representa a própria razão (logos) de sua existência, bem como seu sentido. Isto é possível porque o mundo perceptível é imagem e ícone do inteligível, cópia dos arquétipos divinos.

Esta qualidade icônica da criação é em si uma legitimação da iconografia enquanto arte sacra cristã, dado que o ícone pintado é capaz de representar o mundo tal como ele é em si, na sua dimensão numenal, ou seja, na forma como o próprio Deus o vê. O aspecto numênico da realidade além das coisas quantificáveis do mundo (caído) torna-se visível através da arte sacra do ícone, num processo de desfenomenização do mundo, no qual ele é percebido não como aparece, mas como realmente é. Sherrard arrisca-se mesmo a dizer que, como representações dos arquétipos divinos da criação, os ícones tornam visíveis vários níveis do próprio ser divino, tal como se manifesta nesses arquétipos, e até tornam possíveis várias "encarnações dos arquétipos".

A forma do ícone não pode assim ser historicizada, como mera expressão de uma moda artística (passageira) num determinado tempo e lugar, mas é imposta pelo próprio arquétipo divino à medida que se revela ao artista, que se torna assim ao mesmo tempo um vidente das coisas divinas (um místico) e um profeta. Assim, a originalidade do ícone nada tem a ver com a descoberta de novos modos de expressão artística, mas é apenas determinada pela sua relação com a sua origem (divina).

A arte sacra pressupõe a contemplação das realidades invisíveis e inteligíveis, das razões divinas (logoi) da criação, o que equivale a uma experiência direta do próprio Deus. Sendo uma expressão da contemplação espiritual, o ícone é também uma ferramenta na contemplação de Deus. A própria contemplação só é perfeita quando o conhecedor ou o pintor se identifica com o conhecido, que é Deus, ou seu aspecto divino (arquétipo) responsável por inspirar o ícone pintado, e para isso o pintor deve renunciar e negar a si mesmo, porque sua individualidade pessoal pode ofuscar a revelação do arquétipo divino. É por isso que o iconógrafo não deve autografar seu ícone, como testemunho do fato de não ter deixado sua própria individualidade tornar-se o espaço no qual o arquétipo divino pode manifestar-se plenamente. A vocação do artista é tornar-se um hierofante, ou mesmo tornar-se ele próprio um sacramento vivo, um testemunho da revelação contínua de Deus no mundo percebido. Na verdade, tal vocação do artista dirige-se a todos os seres humanos: todos somos convocados a tornar-nos ícones vivos do grande mestre da pintura, que é Deus, como Ele mesmo planejou e ordenou que fôssemos.

Fonte: Ionuţ Daniel Băncilă, trechos do capítulo Philip Sherrard's Orthodox Esotericism da obra Meeting God in the Other, LIT Verlag, Münster, Alemanha, 2020.