22 de janeiro de 2024

A vontade na imortalidade


As crianças são famosas por fazerem perguntas inusitadas. Muitas são tolas, mas algumas podem ser constrangedoras pela profundidade e sabedoria necessárias para respondê-las. Uma delas bem poderia ser: “Depois de morrer e ir para o céu a gente pode fazer más escolhas e cair de novo?”

A dúvida não é tola. Se um traço característico e indelével de nossa humanidade é a capacidade de escolher, então depois da morte, mesmo que na presença do Salvador, não poderíamos igualmente decidir, em lugar da Verdade, abraçar o erro e a mentira? Uma vez na imortalidade nossa vontade fica “travada”? Se temos livre arbítrio, o que acontece com ele depois da morte?

A este tema dedica-se São Máximo, o Confessor, em alguns trechos de sua obra. No entanto, para lidar com esta questão do livre arbítrio na imortalidade, São Máximo tem de vencer três posturas:

(a) Ele tem de vencer o origenismo, ou seja, ele tem de expor um livre arbítrio que não implique na possibilidade de novas quedas.

(b) Ele tem de vencer o monotelismo, ou seja, ele tem de expor duas vontades em Cristo que não impliquem em oposição, embora sejam distintas.

(c) Ele tem de vencer o neoplatonismo, ou seja, ele tem de expor um livre arbítrio que não implique em distingui-lo da liberdade, mas que disponha efetivamente de múltiplos objetos.

Para vencê-los, São Máximo esclarece que, para haver real livre arbítrio no escathon, é necessário que haja objetos reais dentre os quais escolher. No entanto – e isto é importante – esses objetos não podem apresentar uma escala de bondade entre si, ou seja, não podem uns serem mais bons que outros. Assim, por “objetos reais” o que São Máximo quer dizer é que não haja objetos aparentes, ou seja, objetos que impliquem incerteza nas escolhas. Em outras palavras, é necessário que haja uma unidade ontológica quanto à bondade dos objetos (o que não significa que esses objetos sejam iguais).

E também para vencê-los, São Máximo esclarece que o processo psicológico da volição se reduz no escathon. Esse processo psicológico, no nosso mundo da incerteza e da hesitação, se compõe das seguintes etapas: conceito, desejo, investigação, exame, deliberação, juízo, decisão (escolha). No escathon no entanto ele se reduz às seguintes etapas: conceito, desejo, decisão (escolha). Observe que a necessidade de escolha permanece, mas o que desaparece no escathon é a necessidade de escolhas dialeticamente condicionadas. Não há oposição de escolhas, mas apenas distinção.

Este arbítrio no escathon, disfrutado pelos santos, é precisamente o mesmo arbítrio de Jesus Cristo na sua vida terrestre. Os santos, por definição, estão unidos (deificados) a Deus, e Cristo, sendo o próprio Deus, não poderia senão apresentar o mesmo tipo de arbítrio.

São Máximo explica essa diferença do exercício da vontade aplicando-a aos conceitos de natureza e hipóstase. Por um lado, temos a vontade natural, a vontade enquanto tal. Por outro, temos a vontade gnômica, a vontade hipostática, individual, pessoal, enquanto tal. A hipóstase (ou “verdadeira realidade”, como diria J. Ferrater Mora) é o princípio da individualidade e que dá forma e peculiaridade à vontade natural (i.e. vontade essencial, não vontade “natural” no sentido de natureza físico-biológica que vulgarmente atribuímos à palavra). Ora, em Jesus Cristo não existe vontade gnômica (hipostática) porque Cristo não tem uma hipóstase humana. Quanto a nós, homens decaídos, apresentamos, sim, uma vontade gnômica, e nosso desafio está precisamente em desenvolver os hábitos que nos afastem da escolha dos bens aparentes e nos aproximem, o mais que possível, da vontade livre que exerceremos na imortalidade. Quanto menos os processos intermediários entre o conceito e a decisão, que são essencialmente incertos, hesitantes e duvidosos, influenciarem a vontade gnômica, mais ela se aproximará do exercício da vontade no escathon dos santos deificados e do próprio Cristo.

Cabe aqui, então, introduzirmos um assunto caro a São Máximo: os logoi das criaturas. Como já vimos inúmeras vezes neste blog, os logoi são os princípios, os “gabaritos”, pelos quais Deus criou e cria o mundo. No entanto, todos os logoi encontram-se reunidos em um e mesmo Logos. Mas a questão não é apenas metafísica (por mais importante que seja), mas é, para muito além disso, cristológica. Eis como Farrell a explica:

Os logoi constituem assim uma pluralidade genuína que é distinta e sem confusão entre os logoi em si, mas também são Um Logos e preexistem nEle. Esta concepção não é uma mera concepção metafísica dos logoi, pois está intimamente ligada à concepção da recapitulação da criação em Jesus Cristo: eles são um com o Único Logos em virtude do fato de que todas as coisas foram oferecidas ao Pai em Cristo. É esta fundamentação cristológica dos logoi no Logos que permite a São Máximo adaptar a fórmula calcedoniana de distinção sem confusão ao contexto dos logoi considerados em si e por si mesmos, uma clara antecipação da linguagem da distinção de São Gregório Palamás entre essência e energias, distinção que “não divide”. Esta é uma negação patente dos modelos de simplicidade plotiniano e origenista. Os logoi ocupam uma posição “intermediária” entre Deus e o mundo criado, uma posição que em si é infinita, pois “em Deus”, segundo São Máximo, há “uma distinção infinita e um ‘meio’ entre as coisas criadas e o Incriado".

Segundo Farrell, portanto, São Máximo não é nada ambíguo quando identifica os logoi com as energias incriadas. E não para por aí: para ele, a simplicidade divina é meramente um símbolo da unidade absoluta e inefável de Deus na qual a essência divina está devidamente hipostatizada em cada Pessoa sem nenhum tipo de partição.

Quando os Padres usam a expressão “em torno de Deus” ou “ao redor de Deus”, o que querem dizer é na verdade os logoi incriados e divinos, nas quais as criaturas se movem. E como elas se movem de maneira a conformarem-se aos logoi? Por meio das virtudes. Mas eis aqui novamente a genialidade de São Máximo: as virtudes, embora naturais, não ocorrem em todos os homens igualmente porque “nós não as praticamos em igual medida” aquilo que em nós nos é natural. A distinção logos/tropos (vimos isso em Jean-Claude Larchet, por exemplo) ou natureza/pessoa é fundamental: todos temos as virtudes naturalmente, mas nem todos as desenvolvem pessoalmente. Quanto ao Cristo, ele possui a vontade naturalmente humana, mas não a vontade gnômica (pessoal, hipostática).

Eis porque na restauração de todas as coisas, nem todas as almas encontrar-se-ão sensíveis à Luz divina. Aquelas almas que em suas vidas terrenas estiveram ligadas aos desejos carnais e cujas vontades foram privadas da apetência dos verdadeiros bens não suportarão contemplá-la.

Fonte: Joseph Farrell, Free Choice in St Maximus the Confessor, St Tikhon’s Seminary Press, South Canaan, EUA, 1989.