5 de janeiro de 2024

O homem interessante e a descoberta da intimidade


Se ignoramos tão grandes províncias de nosso próprio corpo, não seria nada estranho que ignorássemos algumas províncias de nosso mundo interior. A situação se mostra ainda mais paradoxal que em nossa própria corporalidade porque, no caso do corpo, o que ignoramos não deixa de ser “nosso”. No caso do mundo interior, no entanto, o que se passa frequentemente duvidamos que seja parte de “nós”. Os sonhos que sonhamos são “nossos”? As imagens, ideias, memórias, sentimentos, tudo isso é “nosso”?

Segundo o psiquiatra espanhol Juan Lopez Ibor, é impossível dissociar a personalidade, que é o desenvolvimento da pessoa no meio social, da própria pessoa. Não há, portanto, um “ato gratuito”, à moda dos existencialistas sartrianos, ou seja, não há um puro existir ao qual se possa atingir mediante a supressão de todo conteúdo da vida. Eis o paradoxo: o homem transcende ao mesmo tempo que existe. E é por isso que Ibor entende que a personalidade, embora seja um mito, é parte intrínseca da realização pessoal do homem. O contato com os outros serve para nossa própria realização, mas também, e ao mesmo tempo, serve para nosso próprio conhecimento. Eis o paradoxo em outras palavras: necessitamos do próximo (exterior) para conhecermos nosso mundo interior. Se não interviessem em nossas vidas a mulher, o inimigo, o filho, o agressor etc jamais experimentaríamos o amor, o ódio, a ternura, a violência etc.

Embora o eu seja inapreensível, há momentos na vida, que chamamos de “crises”, nos quais o homem desnuda todo o conteúdo da sua vida e como que se “vê” frente a frente. Eis o que diz Miguel de Unamuno a esse respeito:

É mau sinal quando pousamos uma mão sobre a perna e esta não sente aquela nem aquela esta; pior ainda é quando prestamos atenção em nós mesmos e não nos sentimos espiritualmente. [...] Pessoas assim carecem da intuição de sua própria substancialidade. Esta é a palavra mais exata, embora um tanto abstrata: a intuição de sua própria substancialidade.

Observe a extraordinária importância das crises existenciais. E quem é este eu? Segundo Ibor, é Deus em nós. Descobrir o vazio do eu é uma experiência que costuma vir acompanhada de uma sensação de angústia. No eu influem todas as linhas de força do ser, embora se mantenham em equilíbrio, não por si mesmas, mas porque algo as mantêm assim. Esse algo é a imago Dei. Se o homem conforme cresce for incapaz de perceber a imagem de Deus em si e notar apenas o vazio em seu centro -- e isso ocorre com enorme frequência no homem moderno --, o que lhe resta será a angústia.

O objetivo, ensina Ibor, é atingir o ponto de sermos homens interessantes. Embora o conceito não seja preciso, a ideia é que o homem interessante tenha uma forma de intimidade que denota uma vida interior desenvolvida e de um id vivo e tumultuoso. Esse homem é interessante não em função do que pensa ou em função de sua conduta, mas que seu pensamento e conduta deixem entrever uma verdadeira originalidade. Por originalidade não devemos entender que o homem interessante pense e aja de maneira chocante ou surpreendente. Isso seria apresentar-se meramente de maneira distinta, inabitual. O homem interessante é original no sentido de que vive algo novo, germinal. Esteticamente, segundo Kierkegaard, o homem interessante vive em um estado de animo tedioso. Isso ocorre porque, para o homem interessante, o mundo tal como se lhe apresenta é velho, estereotipado, banal, vulgar.

Curioso mistério esse. O homem enquanto ser só pode existir transcendendo-se. A vida humana é algo que se escapa a si mesma.

Fonte: Juan Lopez Ibor, El descubrimiento de la intimidad, Aguilar Ediciones, Madrid, Espanha, 1952.