15 de janeiro de 2024

Uma crítica à psicanálise freudiana


A crítica do psiquiatra austríaco Rudolf Allers à psicanálise é importante não somente por sua contundência e amplitude, mas também pelo fato de ter sido o próprio Allers um dos fundadores da psicanálise. Allers trabalhou lado a lado com Sigmund Freud por alguns anos, mas suas diferenças em princípios e valores (Allers era católico romano) o motivou a afastar-se de Freud e, mais tarde, de Adler também. Outro dado curioso é o fato de Allers ter sido um dos mestres de Viktor Frankl.

Noções básicas

Talvez o princípio mais importante da psicanálise seja a ideia de que tudo o que existiu no espírito humano dura perpetuamente. Tudo, absolutamente tudo, fica registrado na memória, nada é esquecido. Aqui já há um problema porque evidentemente é impossível provar uma afirmação dessas. Essa noção, no entanto, é muito cara à psicanálise porque ela sustenta o conceito de inconsciente. A partir daí surge as noções de repressão e censura. Repressão é o nome da força ou poder que desloca certos fatos da consciência para o inconsciente. Censura, por sua vez, é o poder que torna impossível um regresso espontâneo desse fato à consciência. Alguns fatos são reprimidos porque se opõem a certas tendências imperativas da consciência. Alguns fatos, por outro lado, podem ser esquecidos por um conflito entre a memória e o orgulho, de maneira que se forme uma resistência.

O método psicanalítico, já famoso hoje em dia, consiste em obrigar a pessoa que a ser analisada para que produza associações livres. Aqui não cabe detalhar como funciona o processo, mas o objetivo é descobrir não os instintos em si, já que não fazem parte da vida mental, mas quais são as ideias e imagens que “representam” os instintos que, por sua vez, são os responsáveis por direcionar o indivíduo a satisfazê-los. Note-se, portanto, a importância capital que Freud deposita nos instintos. São eles os responsáveis pelo desenvolvimento da vida e da personalidade do indivíduo.

Freud distingue duas grandes categorias de instintos: os instintos da libido e os instintos do ego. As emoções, por sua vez, são secundárias aos instintos, ou seja, são como que manifestações dos instintos. Uma emoção não tem de ser “descarregada”, mas é o instinto que tem de sê-lo. A neurose surge quando um instinto não é satisfeito, mas é “desviado” de seu fim original pelas leis do meio ambiente. A ideia da sublimação é substituir o alvo primitivo por um alvo novo, normal e saudável. Os instintos servem-se dos fins não instintivos oferecidos pela realidade para conseguirem a sua própria satisfação.

Os sonhos consistem em símbolos que representam, por uma forma velada, fins instintivos. Mas, além dos sonhos, há outros exemplos do afrouxamento da censura: os “atos falhos”, ou seja, todo tipo de inépcia ou erro causados por fatores inconscientes que se intrometem na sequência de alguma função consciente.

A psicanálise distingue alguns estratos na natureza humana. Há o id, essencialmente inconsciente e contendo os instintos, o ego, que constitui a camada antagonista ao id, e o superego, que é o receptáculo dos ideais, dos fins conscientes, das noções morais etc.

Sofismas

(1) Quem disse que a interrupção das associações livres é uma resistência?

(2) Quem disse que a vida consciente tem relação com o “material inconsciente” trazido à tona pela psicanálise? Quem disse que há uma relação de causalidade entre uma coisa e outra?

(3) Quem disse que a relação de signo e coisa significada reduz-se apenas à causa eficiente? A bandeira simboliza a nação, mas a nação não é causa eficiente da bandeira.

(4) Quem disse que os processos mentais são de natureza energética (cathexis)? Quem disse que há uma transformação de energia mental potencial em energia corpórea cinética? (Noções vulgares do tipo “descarregar as emoções”, “força de vontade” etc.; é algo semelhante ao que Dalrymple chamava de “teoria hidráulica”).

(5) Quem disse que há uma identidade entre o cérebro, por um lado, e o espírito, por outro? (“Psicologia fisiológica”).

(6) Quem disse que a vida mental é uma coexistência de “átomos mentais” independentes?

(7) Quem disse que tudo, absolutamente tudo, que ocorre na vida do indivíduo é causado ou por sua constituição física (instinto) ou pelo seu passado (inconsciente)?

(8) Quem disse que a vida humana é puramente material e, portanto, moralmente determinista e hedonista?

(9) Quem disse que identidade de expressão significa identidade de sensação? Uma criança chupando os dedos não significa satisfação sexual assim como um homem que adormece profundamente não significa que tenha tomado remédio para dormir. A psicanálise está recheada de erros lógicos pueris desse tipo.

Fonte: Rudolf Allers, Freud, Livraria Tavares Martins, Porto, Portugal, 1946.