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A decisão de abandonar aquela vida errante
foi tomada no dia em que [Jacaré] assistiu a um show de uma ex-artista de TV
num garimpo do Pará. Terminado o espetáculo, Jacaré ofereceu um quilo de ouro
pelo direito de desfrutar de companhia tão amável.
A moça agradeceu, disse que tinha namorado.
Ele não se deu por vencido:
-- Mas um quilo de ouro é tudo que eu
tenho, meu amor. Dou pra você e fico sem nada.
-- Se o meu namorado for embora, eu
também fico sem nada.
A frase calou fundo no coração aventureiro.
Naquela noite, pensou:
-- Tá na hora de largar desta vida. Se eu
insistir, acabo velho sem um canto e sem encontrar urna mulher pra falar de mim
com a doçura que aquela moça falou do namorado.
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O homem chegou à Amazônia há pelo menos 12
mil anos. A ocupação humana dessa região é tão antiga quanto a de outros locais
da América do Sul, ocorrida na transição do Pleistoceno para o Holoceno.
Dos primeiros grupos de caçadores-coletores
às migrações das populações sedentárias que desenvolveram as plantações de
mandioca, as terras da bacia do rio Negro foram ocupadas por sucessivas
populações que se deslocavam à procura de condições de subsistência mais
favoráveis.
Numa conversa com o indigenista Marcos
Wesley, que dirige o ISA em São Gabriel da Cachoeira, falávamos sobre a
diversidade das plantas do rio Negro, quando ele expôs a fragilidade da visão
científica que eu tinha a respeito da floresta:
-- Você esquece que os indígenas vivem na
região há milhares de anos. Impossível analisar as florestas do rio Negro sem
considerar a intervenção de mãos humanas no plantio e no espalhamento, ao redor
das aldeias e das trilhas na mata, de espécies em que tinham interesse.
Em minha ignorância, jamais havia pensado
nessa possibilidade. Para mim, a floresta era um organismo praticamente intocado
pelos povos originais. Wesley acrescentou:
-- Para entender a biodiversidade da
floresta é preciso analisar as evidências arqueológicas que contam a história
antiga dos povos indígenas e de como eles modificaram o meio, numa época em que
os europeus ainda viviam em cavernas.
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Petróglifos são gravações rupestres
encontradas em diversas partes do mundo. Na bacia do rio Negro, eles estão
situados em rochas nas margens dos rios, especialmente ao longo do trajeto das
cachoeiras.
Algumas dessas inscrições são visíveis
durante o ano todo, enquanto outras afloram na seca e submergem na cheia. Elas
constituem um dos registros mais antigos da presença humana nessas paragens.
Muitas apresentam sinais de erosão que levaram milênios para se formar.
Os petróglifos foram esculpidos no granito
sólido, com sulcos de cerca de dois centímetros a quatro centímetros de
profundidade, num tempo em que não existia ferro, muito menos as ferramentas de
hoje.
A idade dessas inscrições é muito difícil
de estimar, devido à inexistência de pinturas com o material orgânico
necessário para a aplicação das técnicas com carbono 14, a metodologia mais empregada.
Essa falta de precisão explica por que na literatura a estimativa de idade
dessas inscrições vai de mil anos a 7 mil anos antes da época atual.
Os diversos estilos representados sugerem
sua origem em diversas épocas e em diferentes povos indígenas. A variedade dos
desenhos é grande; os mais encontrados são os geométricos, produzidos com
linhas em espirais, círculos, retas paralelas, em zigue-zague ou que se cruzam
em forma de rede. [Aqui cabe consultar o que diz Wilhelm Worringer sobre o impulso de “povos primitivos” em fugir de fenômenos caóticos mediante a
arte abstrata]. Outros mostram figuras humanas estilizadas com corpos
alongados, cabeças redondas, faces, olhos e bocas. Outros, ainda, representam
imagens de animais estilizados: peixes, cobras, onças e aves. Há também
máscaras, motivos abstratos e simbólicos ou figuras múltiplas que agrupam seres
humanos e animais.
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De Pari-Cachoeira, na mandíbula do
Cachorro, às margens do Tiquié, a Maturacá, na nuca do Cachorro, região do
ponto culminante do país, o Yaripo, perguntei a todos com quem conversei qual
era o maior sonho da vida deles. Sem exceção, responderam que era ver
filhos e netos na escola.
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Durante os anos 1970, no entanto, os
missionários salesianos decidiram agrupar os Hupda em aldeamentos com duzentas
pessoas ou mais, para facilitar a escolaridade e o atendimento médico, como
ocorreu nos igarapés Taracuá, Cucura, Castanheira e em outros locais. A consequência,
porém, foi uma fome epidêmica: com o aumento populacional, o caçador que
alimentava a família caminhando quatro ou cinco quilômetros por dia precisou
percorrer o sobro dessa distância, ou mais. Além desse inconveniente, eles
costumam resolver desavenças internas, problemas matrimoniais e conflitos entre
as famílias mudando-se para outras áreas, estratégia que se tornou
inadequada nos povoados mais populosos. A qualidade da convivência piorou.
Além desses desencontros, o esgotamento das
palmeiras-caraná, cuja palha é ideal para a cobertura das casas, criou a
necessidade de cobri-las com folhas de zinco, material caro e inadequado numa região
de sol inclemente.
Diante dessas políticas que os brancos
adotam tantas vezes por conta própria, na esperança de solucionar problemas dos
indígenas sem ouvi-los, lembro sempre da minha avó: “Filho, foi de boas intenções
que o inferno ficou superlotado”.
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Indígenas Manao dominavam as duas margens
do Baixo Rio Negro antes do século XVIII. Nessa época, os Tarumã ocupavam as
margens do rio de mesmo nome, último afluente do lado esquerdo do Negro. Embora
estivessem concentrados no Alto Rio Negro, alguns grupos Baré viviam na parte
baixa.
A expulsão dos jesuítas pelo decreto de
1759 do marquês de Pombal abriu espaço para que as tropas de resgate aprisionassem
e escravizassem com mais liberdade os indígenas dessa área densamente
povoada.
Contra as flechas e zarabatanas dos que
ousavam enfrentá-los, os portugueses traziam indígenas de outras etnias, arregimentados
com o poder de armas que incluíam até canhões, com os quais bombardeavam as
aldeias ribeirinhas que não se subjugassem. Matavam homens, mulheres, velhos
e crianças; os sobreviventes eram caçados a laço, agrilhoados e levados
para os aldeamentos, verdadeiros currais em que permaneciam à espera dos
descimentos para Belém do Pará, cidade em que seriam postos à venda para
o trabalho escravo.
Os poucos que escapavam embrenhavam-se nas
florestas rio acima, até os territórios da Colômbia e da Venezuela. Com a declaração
de guerra que dizimou o povo Manao no século XVIII, a Coroa portuguesa
impôs seu domínio na região.
De acordo com o padre João Daniel, que
passou quinze anos na Amazônia, os indígenas “morriam feito moscas”,
realidade que os demógrafos da Universidade da Califórnia em Berkeley caracterizaram
como “uma das maiores catástrofes da história da humanidade”.
Fonte: Drauzio Varella, O sentido das águas, Companhia das Letras, São Paulo, Brasil, 2025.
