25 de novembro de 2025

O sentido das águas


Nas primeiras viagens que fiz ao Médio e ao Alto Rio Negro, eu precisava prestar muita atenção para perceber as diferenças dos sotaques e sons dos fonemas pronunciados por indígenas de etnias diferentes. Tudo me parecia igual e incompreensível, a ignorância tem o dom de simplificar o que parece complexo. No caso das 23 etnias que vivem na região, nada pode ser mais falso do que igualar os idiomas.

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A decisão de abandonar aquela vida errante foi tomada no dia em que [Jacaré] assistiu a um show de uma ex-artista de TV num garimpo do Pará. Terminado o espetáculo, Jacaré ofereceu um quilo de ouro pelo direito de desfrutar de companhia tão amável.

A moça agradeceu, disse que tinha namorado. Ele não se deu por vencido:

-- Mas um quilo de ouro é tudo que eu tenho, meu amor. Dou pra você e fico sem nada.

-- Se o meu namorado for embora, eu também fico sem nada.

A frase calou fundo no coração aventureiro. Naquela noite, pensou:

-- Tá na hora de largar desta vida. Se eu insistir, acabo velho sem um canto e sem encontrar urna mulher pra falar de mim com a doçura que aquela moça falou do namorado.

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O homem chegou à Amazônia há pelo menos 12 mil anos. A ocupação humana dessa região é tão antiga quanto a de outros locais da América do Sul, ocorrida na transição do Pleistoceno para o Holoceno.

Dos primeiros grupos de caçadores-coletores às migrações das populações sedentárias que desenvolveram as plantações de mandioca, as terras da bacia do rio Negro foram ocupadas por sucessivas populações que se deslocavam à procura de condições de subsistência mais favoráveis.

Numa conversa com o indigenista Marcos Wesley, que dirige o ISA em São Gabriel da Cachoeira, falávamos sobre a diversidade das plantas do rio Negro, quando ele expôs a fragilidade da visão científica que eu tinha a respeito da floresta:

-- Você esquece que os indígenas vivem na região há milhares de anos. Impossível analisar as florestas do rio Negro sem considerar a intervenção de mãos humanas no plantio e no espalhamento, ao redor das aldeias e das trilhas na mata, de espécies em que tinham interesse.

Em minha ignorância, jamais havia pensado nessa possibilidade. Para mim, a floresta era um organismo praticamente intocado pelos povos originais. Wesley acrescentou:

-- Para entender a biodiversidade da floresta é preciso analisar as evidências arqueológicas que contam a história antiga dos povos indígenas e de como eles modificaram o meio, numa época em que os europeus ainda viviam em cavernas.

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Petróglifos são gravações rupestres encontradas em diversas partes do mundo. Na bacia do rio Negro, eles estão situados em rochas nas margens dos rios, especialmente ao longo do trajeto das cachoeiras.

Algumas dessas inscrições são visíveis durante o ano todo, enquanto outras afloram na seca e submergem na cheia. Elas constituem um dos registros mais antigos da presença humana nessas paragens. Muitas apresentam sinais de erosão que levaram milênios para se formar.

Os petróglifos foram esculpidos no granito sólido, com sulcos de cerca de dois centímetros a quatro centímetros de profundidade, num tempo em que não existia ferro, muito menos as ferramentas de hoje.

A idade dessas inscrições é muito difícil de estimar, devido à inexistência de pinturas com o material orgânico necessário para a aplicação das técnicas com carbono 14, a metodologia mais empregada. Essa falta de precisão explica por que na literatura a estimativa de idade dessas inscrições vai de mil anos a 7 mil anos antes da época atual.

Os diversos estilos representados sugerem sua origem em diversas épocas e em diferentes povos indígenas. A variedade dos desenhos é grande; os mais encontrados são os geométricos, produzidos com linhas em espirais, círculos, retas paralelas, em zigue-zague ou que se cruzam em forma de rede. [Aqui cabe consultar o que diz Wilhelm Worringer sobre o impulso de “povos primitivos” em fugir de fenômenos caóticos mediante a arte abstrata]. Outros mostram figuras humanas estilizadas com corpos alongados, cabeças redondas, faces, olhos e bocas. Outros, ainda, representam imagens de animais estilizados: peixes, cobras, onças e aves. Há também máscaras, motivos abstratos e simbólicos ou figuras múltiplas que agrupam seres humanos e animais.

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De Pari-Cachoeira, na mandíbula do Cachorro, às margens do Tiquié, a Maturacá, na nuca do Cachorro, região do ponto culminante do país, o Yaripo, perguntei a todos com quem conversei qual era o maior sonho da vida deles. Sem exceção, responderam que era ver filhos e netos na escola.

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Durante os anos 1970, no entanto, os missionários salesianos decidiram agrupar os Hupda em aldeamentos com duzentas pessoas ou mais, para facilitar a escolaridade e o atendimento médico, como ocorreu nos igarapés Taracuá, Cucura, Castanheira e em outros locais. A consequência, porém, foi uma fome epidêmica: com o aumento populacional, o caçador que alimentava a família caminhando quatro ou cinco quilômetros por dia precisou percorrer o sobro dessa distância, ou mais. Além desse inconveniente, eles costumam resolver desavenças internas, problemas matrimoniais e conflitos entre as famílias mudando-se para outras áreas, estratégia que se tornou inadequada nos povoados mais populosos. A qualidade da convivência piorou.

Além desses desencontros, o esgotamento das palmeiras-caraná, cuja palha é ideal para a cobertura das casas, criou a necessidade de cobri-las com folhas de zinco, material caro e inadequado numa região de sol inclemente.

Diante dessas políticas que os brancos adotam tantas vezes por conta própria, na esperança de solucionar problemas dos indígenas sem ouvi-los, lembro sempre da minha avó: “Filho, foi de boas intenções que o inferno ficou superlotado”.

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Indígenas Manao dominavam as duas margens do Baixo Rio Negro antes do século XVIII. Nessa época, os Tarumã ocupavam as margens do rio de mesmo nome, último afluente do lado esquerdo do Negro. Embora estivessem concentrados no Alto Rio Negro, alguns grupos Baré viviam na parte baixa.

A expulsão dos jesuítas pelo decreto de 1759 do marquês de Pombal abriu espaço para que as tropas de resgate aprisionassem e escravizassem com mais liberdade os indígenas dessa área densamente povoada.

Contra as flechas e zarabatanas dos que ousavam enfrentá-los, os portugueses traziam indígenas de outras etnias, arregimentados com o poder de armas que incluíam até canhões, com os quais bombardeavam as aldeias ribeirinhas que não se subjugassem. Matavam homens, mulheres, velhos e crianças; os sobreviventes eram caçados a laço, agrilhoados e levados para os aldeamentos, verdadeiros currais em que permaneciam à espera dos descimentos para Belém do Pará, cidade em que seriam postos à venda para o trabalho escravo.

Os poucos que escapavam embrenhavam-se nas florestas rio acima, até os territórios da Colômbia e da Venezuela. Com a declaração de guerra que dizimou o povo Manao no século XVIII, a Coroa portuguesa impôs seu domínio na região.

De acordo com o padre João Daniel, que passou quinze anos na Amazônia, os indígenas “morriam feito moscas”, realidade que os demógrafos da Universidade da Califórnia em Berkeley caracterizaram como “uma das maiores catástrofes da história da humanidade”.

Fonte: Drauzio Varella, O sentido das águas, Companhia das Letras, São Paulo, Brasil, 2025.