Com efeito, ao assistir à morte de tal
amigo, não era a piedade que me dominava. Pois era um homem feliz que eu tinha
sob os olhos, Equécrates: feliz tanto no modo de comportar-se como na sua
linguagem; e chegou ao fim com nobreza e tranquilidade. Dava-me a impressão de
alguém que, tendo de seguir para o Hades, para ali não se dirigisse sem um
concurso divino, e que, uma vez chegado a tal lugar, lá encontrasse uma
felicidade por ninguém jamais encontrada!
* * *
-- Há, a este respeito [continuou Sócrates],
uma fórmula que se pronuncia nos Mistérios: “Uma espécie de cárcere, eis onde
vivemos nós, os homens, e nosso dever não é nos libertarmos a nós mesmos nem
nos evadirmos”. Fórmula, sem nenhuma dúvida, de alguma profundidade, de sentido
difícil de se penetrar completamente. Não é menos verdadeiro, Cebes, que isto
pelo menos parece bem expressado: são os deuses que nos têm sob sua guarda, e nós,
os homens, somos parte da propriedade dos deuses. Não te parece que seja assim?
-- Sim, parece-me, respondeu Cebes.
-- E, então, continuou Sócrates, se um dos
seres que são tua propriedade pessoal se desse a si mesmo a morte sem que para
tal lhe tivesses dito alguma coisa, não te irritarias com ele? E se houvesse
modo de puni-lo, não o punirias?
-- Sem dúvida, disse Cebes.
-- Admitido isto, parece provável não haver
nada de irracional neste dever de não se matar a si mesmo, de esperar que a
divindade nos envie uma determinação qualquer, semelhante a esta que agora se
apresenta a mim.
* * *
-- Não é no ato de raciocinar, [diz
Sócrates], que a alma vê manifestar-se plenamente a realidade de um ser?
-- Sim, [disse Símias].
-- E, sem dúvida, ela raciocina melhor
precisamente quando livre de qualquer perturbação, parta esta do ouvido, da
vista, de uma dor, ou, pior ainda, de um prazer; quando está isolada o mais
possível em si mesma, afastando o corpo; e quanto, interrompendo, na medida do
possível, todo o contato com ele, aspira ao real.
-- É assim.
-- Além disso, não é nesse estado que a
alma do filósofo maior desprezo tem pelo corpo e dele foge, ao mesmo tempo em
que ela procura isolar-se em si mesma?
-- Evidentemente.
-- Mas o que dizer, agora, Símias, disto:
nós afirmamos a existência de alguma coisa que seja “justa” por si mesma, ou
não?
-- Por Zeus! Nós o afirmamos.
-- E também de algo que seja “belo”, que
seja “bom”, não é?
-- Certamente.
-- Pois bem, não é verdade que jamais viste
qualquer coisa deste gênero com os teus próprios olhos?
-- Sem dúvida.
-- Então, tu as apreendeste com qualquer outo
sentido que não aqueles de que o corpo é o instrumento? Ora, aquilo a que estou
me referindo, assim como todas as coisas, como “grandeza”, “saúde”, “força”, e
tudo o mais, é, numa só palavra e sem exceção, a sua realidade: aquilo que cada
uma dessas coisas precisamente é. Será, pois, por meio do corpo que se pode observar
o que há nelas de mais verdadeiro? Ou, ao contrário, não será aquele dentre nós
que estiver mais exatamente e mais intensamente preparado para penetrar com o
pensamento cada coisa que torne objeto de pesquisa, até a sua íntima realidade,
o mais capaz de aproximar-se do conhecimento dessa coisa?
-- É absolutamente certo.
-- E quem chegaria a esse resultado, na sua
maior pureza, se não aquele que, no mais alto grau possível usasse, para se
aproximar de determinada coisa, somente o pensamento, sem recorrer, no ato de
pensar, nem à vista, nem a qualquer outro sentido, nada acrescentando ao
raciocínio? Aquele que, por meio do pensamento em si mesmo e por ele mesmo, e
livre de qualquer impureza, se pusesse em busca das realidade, cada uma também por
si mesma e livre de impureza: e isso depois de se ter desembaraçado o mais possível
dos olhos, do ouvido, e, para falar acertadamente, do corpo inteiro, pois que é
este que perturba a alma e a impede de adquirir a verdade e o pensamento, todas
as vezes que ela tem comércio com ele; não é essa pessoa, Símias, mais do que
qualquer outra, que poderá atingir o verdadeiro?
-- Não é possível, Sócrates, respondeu Símias,
falar com maior acerto.
-- Assim, necessariamente, prosseguiu Sócrates,
todas estas considerações fazem nascer no espírito dos filósofos autênticos uma
crença capaz de inspirar-lhe nas conversações uma linguagem tal como esta: “Sim,
é possível mesmo que haja um caminho que nos oriente quando o raciocínio nos
acompanha na pesquisa; e é esta ideia: enquanto tivermos o corpo, e nossa alma
estiver confundida com essa coisa má, nós não possuiremos jamais
suficientemente o objeto do nosso desejo. Ora, este objeto, dizemos, é a
verdade. E não são somente as penas infinitas que o corpo suscita por motivo
das necessidades da vida: há também as moléstias e eis aí novos entraves à
procura do verdadeiro. Amores, desejos. temores, imaginações de toda espécie, inumeráveis
frivolidades o corpo nos ocupa de tal modo, que por ele, como se diz. não nos
chega mesmo, realmente, nenhum pensamento sensato, nem um só! Considerai as
guerras, as dissenções, as pelejas: não há para suscitá-las senão o corpo e
suas paixões. A posse de riquezas, eis com efeito a causa original de todas as
guerras, e. se somos levados à procura de bens, é por causa do corpo, escravos
submetidos ao seu serviço! E é ainda por causa de tudo isso que nos ocupamos
pouco de filosofia. Mas o pior de tudo é que quando o corpo nos permite,
afinal, um pouco de tranquilidade, para nos voltarmos para um objeto qualquer
de reflexão, as nossas indagações são novamente postas em desordem por esse
intruso, que nos atordoa, nos perturba e nos desconcerta, a ponto de nos tornar
incapazes de distinguir a verdade. Ao contrário, já tivemos realmente a prova
de que, se quisermos jamais saber alguma coisa em sua pureza, teremos que nos
separar do corpo e olhar com a alma em si mesma as coisas em si mesmas. É,
então, ao que parece, que nos pertencerá aquilo de que nos dizemos amantes: o
pensamento. Sim, quando estivermos mortos, como mostra o argumento, e não
durante nossa vida. Se, com efeito, é impossível, na união com o corpo,
conhecer algo com pureza, das duas uma: ou não nos é possível, de nenhuma maneira,
adquirirmos o saber, ou, então, somente será possível quando estivermos mortos,
pois será somente nesse momento que a alma estará em si mesma e por ela mesma,
separada do corpo, e não antes. Além disso, durante o tempo que a nossa vida
possa durar, estaremos, segundo parece, o mais perto do saber, precisamente
quando tivermos o menos possível comércio ou sociedade com o corpo, menos no
caso de necessidade maior, quando não estivermos contaminados pela sua
natureza, mas que estivermos, pelo contrário, puros de seu contato, até o dia
em que o próprio deus tiver posto fim aos nossos liames. Chegados, afinal,
desse modo, à pureza, por termos sido separados da demência do corpo, estaremos
verossimilmente unidos a seres semelhantes a nós; e por nós, somente por nós,
conheceremos aquilo que é isento de impureza. E é nisso, de outro lado, que
consiste provavelmente a verdade. Não ser puro e apreender, entretanto, aquilo
que é puro, eis, com efeito, como é de temer-se, o que não é permitido”.
Creio que é isto, Símias, que pensam e dizem todos aqueles que são, no sentido
verdadeiro do termo, amigos do saber.
* * *
-- Assim, amigo, continuou Sócrates, se
essa é a verdade, que esperança imensa para quem, como eu, chegou a este ponto
da jornada! No além, se isto deve acontecer em algum lugar, possuiremos
plenamente aquilo que foi para nós o fim de um imenso esforço durante a vida
passada. De modo que esta viagem, que me foi agora prescrita, não é
desacompanhada de uma doce esperança; e o mesmo acontece com todos os que
julguem que seu pensamento está preparado e que possam considerá-lo purificado.
-- É absolutamente certo, disse Símias.
-- Mas purificação não é justamente o que
diz a tradição antiga? Separar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a
recolher-se e a fechar-se em si mesma, alheia a qualquer elemento corpóreo, e a
permanecer, tanto quanto possível, tanto na vida presente corno na futura, só,
inteiramente desligada do corpo como de suas cadeias?
-- É isso, precisamente, disse ele.
-- E não é verdade que o sentido preciso da
palavra “morte”, é o de que uma alma foi separada e posta à parte de um corpo?
-- Exatamente.
-- E dessa separação, como dizíamos, os que
mais cuidam, e os únicos a fazê-lo, são os filósofos, no sentido verdadeiro do
termo: o próprio objeto do exercício dos que filosofam é mesmo destacar a alma
e pô-la à parte do corpo. Não é?
-- É claro.
-- Não seria, então, como eu dizia, uma coisa
ridícula, da parte de um homem que se tivesse preparado, durante toda a sua
vida, a aproximar o mais possível seu modo de viver do estado a que se chega
com a morte, de irritar-se depois com esse fato, quando este se apresenta a
ele?
-- É sem dúvida uma coisa ridícula.
-- Assim, pois, Símias, é bem uma verdade
que aqueles que, no sentido justo do termo, filosofam, se exercitam a morrer,
e que a ideia de morte é para eles coisa muito menos temível do que para
qualquer outra pessoa. Eis o que se deve considerar. Se os filósofos estão
realmente, em todos os pontos, em discordância com o corpo, e se desejam, de outro
lado, que a sua alma exista em si mesma e por si mesma, não seria o cúmulo da
falta de razão se a realização disso os assustasse ou intimidasse? Isto é, se
não fossem com alegria para o lugar onde, uma vez chegados, iriam encontrar
aquilo que amaram durante toda a vida — e amaram o saber —, e, além disso, onde
se sentiriam livres da companhia justamente daquilo com que tinham entrado em discórdia?
Enquanto há muitos que, ao perderem mulheres ou filhos, amores de criaturas
humanas, querem por si mesmos procurá-los no Hades, levados pela esperança de
rever aqueles que amaram e de ficar com eles —, o homem verdadeiramente amigo
do saber, e que alimentou no coração a firme esperança de que em nenhum outro
lugar poderia encontrar esse saber na sua plenitude senão no Hades, iria
lamentar-se ante a morte e não se alegraria de ir para aquele lugar? Eis o que
se deve pensar, amigo, pelo menos se esse homem filosofar realmente; pois ele
terá chegado a uma firme convicção de que em nenhum outro lugar encontrará o
pensamento em sua pureza, senão naquele. Ora, sendo assim, não seria, como eu
dizia há pouco, o cúmulo da falta de razão o medo da morte em tal homem?
-- Seria o cúmulo, por Zeus!
* * *
-- Assim é, excelente Símias. Talvez não
seja um modo correto, em relação à virtude, trocar prazeres por prazeres, dores
por dores, um temor por outro temor, o maior pelo menor, como se tratasse de
uma troca de moedas. Ao contrário, talvez não haja aqui senão uma moeda que
valha, em troca da qual tudo isso deva ser trocado: o pensamento! Sim, talvez
seja bem este o valor que encerram todas essas coisas, aquilo com que se
compram e se vendem todas elas: coragem, temperança, justiça; a verdadeira
justiça, em suma, que é acompanhada de pensamento, haja ou não prazeres,
temores e outras paixões semelhantes. Mas se isso for isolado do pensamento e
objeto de troca mútua, tal virtude não passará talvez de uma encenação
enganadora: virtude realmente servil, onde não haverá nada de são nem de
verdadeiro. Ao contrário, a verdadeira realidade talvez seja uma certa
purificação de todas estas paixões, constituindo a temperança, a justiça, a
coragem; e talvez. afinal, o próprio pensamento seja um meio de purificação. E,
acrescentarei, é possível que aqueles mesmos a quem devemos a instituição dos mistérios
não sejam destituídos de mérito, e que isto seja a realidade oculta há muito
tempo sob essa linguagem enigmática: aquele que chegar ao Hades sem haver
participado dos mistérios e sem ter sido iniciado terá o seu lugar no Lodo, enquanto
que o que tiver sido iniciado e purificado será colocado, ali chegando, na
sociedade dos deuses. É que, como vês, segundo a fórmula dos que tratam das
iniciações, “numerosos são os portadores de tirsos, e raros os Bacantes”.
Ora, estes últimos, na minha opinião, não são outros senão aqueles que se
ocupam da filosofia, no sentido verdadeiro da palavra.
* * *
Já estava frio quase todo o baixo ventre,
quando ele descobriu o rosto – pois o havia coberto –, e disse estas palavras,
as últimas que pronunciou:
-- Críton, nós somos devedores de um galo a
Asclépio. Pois bem: paga a minha dívida, não o esqueças.
-- Isso será feito, respondeu Críton. Mas
vê se não tens mais alguma coisa a dizer.
A pergunta de Críton ficou sem resposta. Um
instante depois o corpo fez um movimento. O homem, então descobriu-o: os olhos
de Sócrates estavam abertos e fixos. Vendo isso, Críton fechou-os assim como
seus lábios.
Tal foi, Equécrates, o fim do nosso amigo,
do homem de quem nós podemos dizer que, entre todos os de seu tempo, era o
melhor que nos foi dado conhecer, e, além disso, o mais sábio e o mais justo.
Fonte:
Platão, Fédon, Athena Editora, São Paulo, Brasil, 1941.
