Segundo Fedeli, para Guénon as expressões “metafísica”,
“conhecimento”, “tradição” e “grandes mistérios” significam “gnose”. O esquema
de gnose (repetuindo com outras palavras o que já havíamos exposto aqui, é o seguinte:
1) O impulso fundamental do gnóstico é sua limitação
como ser criado, ou seja, o sofrimento por não ser ele Deus. É desta repulsa
nuclear que surge sua revolta contra Deus e contra a ideia de que os seres
sejam análogos ao Ser.
2) Há, portanto, uma Divindade acima de
Deus, e ambos se opõem como o Não-Ser ao Ser. Deus é revelado e conhecido
enquanto a Divindade é absolutamente incognoscível.
3) Tal contradição metafísica destrói os princípios
do ser pois nega o princípio de identidade e o princípio da não-contradição. O
ser possui, do ponto de vista gnóstico, dois princípios iguais e
contraditórios, e as coisas, os “entes”, são apenas fluxo, apenas um devir
contínuo.
4) O mal não é moral para o
gnóstico, mas é ontológico. Ele está enraizado na própria existência de
Deus, do “Demiurgo criador”. Para a gnose sufi, por exemplo, há oposição entre
Allah e o mundo criado, pois se considera Allah como Ser, os seres criados são puro
nada, somente existindo a Divindade, o que Ibn Arabi chama de proprium (o
atma da gnose hindu) em seu Tratado da Unidade. Também para Guénon o
mundo é ilusório, ou seja, metafisicamente irreal.
5) Em cada coisa há uma partícula ou centelha
divina. Trata-se dos atmas, éons, a Fünkenlein (“chamazinha”) de
Mestre Eckhardt, o primum de Ibn Arabi, o Si (Soi ou Self)
de Guénon etc. A matéria é pura ilusão e, note-se, nos homens não só o corpo,
mas a própria alma racional estão encarcerados na matéria. Por isso a razão é
má: ela torna o mundo inteligível e bom, enganando o homem e aprisionando-o
nele. Eis por que alguns gnósticos dizerem que a abstração é o pecado da
inteligência.
6) Quem liberta o homem deste cárcere é o
conhecimento, ou seja, a gnose. Mas não se trata aqui de um mero
conhecimento intelectual, mas um conhecimento intuitivo (“metafísico”, na
linguagem guénoniana).
7) A moral não faz sentido no esquema gnóstico
porque ela implica no desenvolvimento do ser enquanto análogo ao Ser. A gnose é
antinomista por natureza. A vontade engana o homem porque, ao querer,
aceita o bonum dos seres criados, o que seria falso, ilusório.
8) Para o gnóstico não existe metafísica.
Isso se explica pelo fato da metafísica, conforme a entendemos filosoficamente,
tomar como ponto de partida os entes que se apresentam acidentalmente ao homem
e daí deduzir a estrutura da realidade. O gnóstico, convicto de que os entes
são ilusórios, não pode partir intelectualmente deles para construir a
estrutura da realidade, mas vê-se obrigado a partir intuitivamente do
conhecimento da centelha divina oculta nos entes. A isso o gnóstico chama de “metafísica”.
Por isso os gnósticos menosprezam
Aristóteles e seus seguidores (como Tomás de Aquino) por supostamente tomarem a
parte pelo todo. A abstração empreendida pelo intelecto seria um “pecado”
porque divide o Ser. Daí, para o gnóstico, a filosofia só faz sentido sempre e quando
houver a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa (precisamente a definição de filosofia de Olavo de Carvalho). Tal unidade
explica-se pelo fato do intelecto humano ser incriado, ou seja, ser o próprio
Intelecto.
Fonte: Orlando Fedeli, Sob a máscara, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil, 2019.