26 de março de 2025

Unde malum? (ou, De onde vem o mal?)


Segundo Fedeli, para Guénon as expressões “metafísica”, “conhecimento”, “tradição” e “grandes mistérios” significam “gnose”. O esquema de gnose (repetuindo com outras palavras o que já havíamos exposto aqui, é o seguinte:

1) O impulso fundamental do gnóstico é sua limitação como ser criado, ou seja, o sofrimento por não ser ele Deus. É desta repulsa nuclear que surge sua revolta contra Deus e contra a ideia de que os seres sejam análogos ao Ser.

2) Há, portanto, uma Divindade acima de Deus, e ambos se opõem como o Não-Ser ao Ser. Deus é revelado e conhecido enquanto a Divindade é absolutamente incognoscível.

3) Tal contradição metafísica destrói os princípios do ser pois nega o princípio de identidade e o princípio da não-contradição. O ser possui, do ponto de vista gnóstico, dois princípios iguais e contraditórios, e as coisas, os “entes”, são apenas fluxo, apenas um devir contínuo.

4) O mal não é moral para o gnóstico, mas é ontológico. Ele está enraizado na própria existência de Deus, do “Demiurgo criador”. Para a gnose sufi, por exemplo, há oposição entre Allah e o mundo criado, pois se considera Allah como Ser, os seres criados são puro nada, somente existindo a Divindade, o que Ibn Arabi chama de proprium (o atma da gnose hindu) em seu Tratado da Unidade. Também para Guénon o mundo é ilusório, ou seja, metafisicamente irreal.

5) Em cada coisa há uma partícula ou centelha divina. Trata-se dos atmas, éons, a Fünkenlein (“chamazinha”) de Mestre Eckhardt, o primum de Ibn Arabi, o Si (Soi ou Self) de Guénon etc. A matéria é pura ilusão e, note-se, nos homens não só o corpo, mas a própria alma racional estão encarcerados na matéria. Por isso a razão é má: ela torna o mundo inteligível e bom, enganando o homem e aprisionando-o nele. Eis por que alguns gnósticos dizerem que a abstração é o pecado da inteligência.

6) Quem liberta o homem deste cárcere é o conhecimento, ou seja, a gnose. Mas não se trata aqui de um mero conhecimento intelectual, mas um conhecimento intuitivo (“metafísico”, na linguagem guénoniana).

7) A moral não faz sentido no esquema gnóstico porque ela implica no desenvolvimento do ser enquanto análogo ao Ser. A gnose é antinomista por natureza. A vontade engana o homem porque, ao querer, aceita o bonum dos seres criados, o que seria falso, ilusório.

8) Para o gnóstico não existe metafísica. Isso se explica pelo fato da metafísica, conforme a entendemos filosoficamente, tomar como ponto de partida os entes que se apresentam acidentalmente ao homem e daí deduzir a estrutura da realidade. O gnóstico, convicto de que os entes são ilusórios, não pode partir intelectualmente deles para construir a estrutura da realidade, mas vê-se obrigado a partir intuitivamente do conhecimento da centelha divina oculta nos entes. A isso o gnóstico chama de “metafísica”.  Por isso os gnósticos menosprezam Aristóteles e seus seguidores (como Tomás de Aquino) por supostamente tomarem a parte pelo todo. A abstração empreendida pelo intelecto seria um “pecado” porque divide o Ser. Daí, para o gnóstico, a filosofia só faz sentido sempre e quando houver a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa (precisamente a definição de filosofia de Olavo de Carvalho). Tal unidade explica-se pelo fato do intelecto humano ser incriado, ou seja, ser o próprio Intelecto.

Fonte: Orlando Fedeli, Sob a máscara, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil, 2019.