31 de março de 2025

As bem-aventuranças e o aperfeiçoamento da alma humana


“Deus se fez homem para que o homem se faça Deus”. Esta famosíssima injunção de Santo Atanásio nos lembra qual é o ponto de partida para a perfeição cristã. Diz-se também na Escritura: “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5:48). A união do homem com Cristo é não apenas conveniente, mas necessária para a consecução do aperfeiçoamento humano. Isso significa que a graça é fundamental para a superação dos pecados e vícios que maculam o pleno desenvolvimento do homem em sua natureza. E para a obtenção da graça é fundamental a (“O justo viverá pela fé” (Hebreus 10:38)), ou seja, a adesão à revelação que nos vem por Jesus Cristo.

E o Cristo começa seus ensinamentos públicos precisamente pelo fim, ou seja, a quê somos chamados. Em outras palavras, como alcançar a perfeição, ou seja, as felicidades, isto é, as bem-aventuranças. Eis o fim, a causa das causas, da vida humana: a felicidade (“bem-aventurança”).

Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.

A riqueza, não apenas material, mas espiritual, impede que os possui a se aproximar de Deus. Tais riquezas têm de ser abandonadas para que tomemos uma riqueza infinitamente superior, que é a riqueza divina. Isso não significa que as riquezas do mundo sejam más, mas simplesmente que não são apreciáveis.

Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

Os que choram são os que encontram a vanglória e presunção do mundo comparado com a realidade divina, e também aqueles que choram por ação do Espírito Santo.

Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.

A verdade encontra-se obstruída pela injustiça porque o que reina no mundo é a injustiça. A injustiça impede a visão da verdadeira natureza do homem e de Deus. Se a verdade não nascer em nós seremos incapazes de vencer a injustiça e alcançar a união com Cristo.

Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.

A purificação do coração aqui se refere como coração enquanto afeto e coração enquanto olhar. Limpar o coração enquanto afeto significa tornar a vontade reta (justa) pela graça, ou seja, tornar a vontade misericordiosa, ou seja, capaz de ver a miséria do próximo. A graça aqui é necessária porque só o Cristo é capaz de tirar nossa miséria. Os misericordiosos, portanto, são aqueles unidos ao Cristo, unidos à paixão do Cristo. Limpar o coração enquanto olhar é precisamente a capacidade de ver o próprio Deus, o qual, como dissemos ao início, exige pobreza sensitiva e pobreza intelectual. “A fé tem seus olhos”, dizia Santo Agostinho.

Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.

Os pacificadores são os que trabalham pela paz, ou seja, pelo Cristo. O trabalho é, evidentemente, o trabalho sobrenatural.

Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós.

Os que vivem na injustiça naturalmente perseguirão os que trabalham pela justiça.

Fonte: Ignacio Andereggen, Camino de perfeciõn cristiana, YouTube, 2025.

26 de março de 2025

Unde malum? (ou, De onde vem o mal?)


Segundo Fedeli, para Guénon as expressões “metafísica”, “conhecimento”, “tradição” e “grandes mistérios” significam “gnose”. O esquema de gnose (repetuindo com outras palavras o que já havíamos exposto aqui, é o seguinte:

1) O impulso fundamental do gnóstico é sua limitação como ser criado, ou seja, o sofrimento por não ser ele Deus. É desta repulsa nuclear que surge sua revolta contra Deus e contra a ideia de que os seres sejam análogos ao Ser.

2) Há, portanto, uma Divindade acima de Deus, e ambos se opõem como o Não-Ser ao Ser. Deus é revelado e conhecido enquanto a Divindade é absolutamente incognoscível.

3) Tal contradição metafísica destrói os princípios do ser pois nega o princípio de identidade e o princípio da não-contradição. O ser possui, do ponto de vista gnóstico, dois princípios iguais e contraditórios, e as coisas, os “entes”, são apenas fluxo, apenas um devir contínuo.

4) O mal não é moral para o gnóstico, mas é ontológico. Ele está enraizado na própria existência de Deus, do “Demiurgo criador”. Para a gnose sufi, por exemplo, há oposição entre Allah e o mundo criado, pois se considera Allah como Ser, os seres criados são puro nada, somente existindo a Divindade, o que Ibn Arabi chama de proprium (o atma da gnose hindu) em seu Tratado da Unidade. Também para Guénon o mundo é ilusório, ou seja, metafisicamente irreal.

5) Em cada coisa há uma partícula ou centelha divina. Trata-se dos atmas, éons, a Fünkenlein (“chamazinha”) de Mestre Eckhardt, o primum de Ibn Arabi, o Si (Soi ou Self) de Guénon etc. A matéria é pura ilusão e, note-se, nos homens não só o corpo, mas a própria alma racional estão encarcerados na matéria. Por isso a razão é má: ela torna o mundo inteligível e bom, enganando o homem e aprisionando-o nele. Eis por que alguns gnósticos dizerem que a abstração é o pecado da inteligência.

6) Quem liberta o homem deste cárcere é o conhecimento, ou seja, a gnose. Mas não se trata aqui de um mero conhecimento intelectual, mas um conhecimento intuitivo (“metafísico”, na linguagem guénoniana).

7) A moral não faz sentido no esquema gnóstico porque ela implica no desenvolvimento do ser enquanto análogo ao Ser. A gnose é antinomista por natureza. A vontade engana o homem porque, ao querer, aceita o bonum dos seres criados, o que seria falso, ilusório.

8) Para o gnóstico não existe metafísica. Isso se explica pelo fato da metafísica, conforme a entendemos filosoficamente, tomar como ponto de partida os entes que se apresentam acidentalmente ao homem e daí deduzir a estrutura da realidade. O gnóstico, convicto de que os entes são ilusórios, não pode partir intelectualmente deles para construir a estrutura da realidade, mas vê-se obrigado a partir intuitivamente do conhecimento da centelha divina oculta nos entes. A isso o gnóstico chama de “metafísica”.  Por isso os gnósticos menosprezam Aristóteles e seus seguidores (como Tomás de Aquino) por supostamente tomarem a parte pelo todo. A abstração empreendida pelo intelecto seria um “pecado” porque divide o Ser. Daí, para o gnóstico, a filosofia só faz sentido sempre e quando houver a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa (precisamente a definição de filosofia de Olavo de Carvalho). Tal unidade explica-se pelo fato do intelecto humano ser incriado, ou seja, ser o próprio Intelecto.

Fonte: Orlando Fedeli, Sob a máscara, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil, 2019.

6 de março de 2025

O valor do pobre está na necessidade


Já vimos a parábola de Lázaro e o homem rico no contexto da vida após a morte. Desta vez, vejamos quais os nove castigos da pobreza de acordo com São João Cristóstomo, que se apoia na mesma parábola:

(1) Pobreza. É algo verdadeiramente terrível pois nenhuma palavra consegue descrever a grande angústia que e suportada por aqueles que vivem como mendigos sem conhecer a sabedoria. [Aqui o santo provavelmente se refere ao desconhecimento da causa final da pobreza e do sofrimento, ou seja, a falta de sabedoria implica numa visão horizontal da pobreza].

(2) Doença. Muitos adoecem com frequência sem que lhes falte o necessário para a subsistência. Outros vivem em extrema pobreza, mas desfrutam de boa saúde. Um bem se torna um consolo para o outro infortúnio. Mas em Lázaro os dois infortúnios se apresentaram juntos.

(3) Solidão. Mesmo se não está na própria casa, pelo menos em público Lázaro poderia receber a piedade daqueles que o veem. Para Lázaro, porém, a ausência de protetores tornou seus dois infortúnios ainda mais dolorosos.

(4) Desencorajamento. A ausência de protetores tornava-se ainda mais dolorosa ao se encontrar diante da porta da casa do rico. Ele passou a sentir uma aflição mais aguda.

(5) Percepção mais aguçada dos infortúnios. Além de tudo isso, Lázaro tinha diante de seus olhos o espetáculo de um homem rico e bem afortunado. É da nossa natureza compararmos nossa situação com a prosperidade alheia. O rico se saía bem em todos os aspectos, apesar de viver com crueldade e desumanidade, enquanto Lázaro, vivendo com virtude e bondade, sofria terríveis infortúnios. Era como se tivesse vindo ao mundo com esse exato propósito, para ser testemunha da boa fortuna alheia.

(6) Isolamento espiritual. Lázaro não podia observar outro Lázaro. Mesmo se sofremos de uma infinidade de problemas, ao contemplar Lázaro podemos pelo menos obter algum consolo e encorajamento. Encontrar quem partilha das mesmas misérias, em histórias ou em fatos, traz um grande consolo aos que vivem em aflição. Mas ele não encontrava ninguém com sofrimentos semelhantes aos seus.

(7) Achatamento existencial. Lázaro não podia encontrar consolo na ideia da ressurreição. Acreditava que tudo se resumia à vida presente, pois encontrava-se entre aqueles que precederam o tempo da graça. Não podia praticar tal sabedoria.

(8) Calúnia. A maioria das pessoas julga a vida do outro por suas dificuldades e acha que foi a iniquidade, sem dúvida, a causa de tanta miséria. Dizem entre si muitas tolices. Por exemplo, se Lázaro fosse amado por Deus, Deus não teria permitido que sofresse na pobreza nem se submetesse a tantos infortúnios.

(9) Extensão temporal. Lázaro suportou sua pobreza uma vida inteira, não apenas um ou dois dias.

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Mesmo quando não buscamos a virtude talvez sejamos capazes de obtê-la se pelo menos a louvarmos. E mesmo quando não evitamos o mal, talvez sejamos capazes de escapar dele se pelo menos o censurarmos.

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Verdade seja dita, o rico não é aquele que reuniu muitos bens materiais, mas aquele que precisa de pouco. E o pobre não é aquele desprovido de bens, mas aquele que a tudo cobiça.

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O rico costuma ser o mais pobre de todos. Se retirardes a máscara, abrirdes a consciência e entrardes na mente, encontrareis uma grande pobreza de virtude: descobrireis que ele pertence à classe mais baixa de todas.

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Realmente também é roubo não compartilhar as posses. [...] Os ricos guardam os bens dos pobres mesmo se foram herdados dos pais ou adquiridos de qualquer outra forma. [...] É por isso que Deus permitiu aos ricos ter mais: para ser distribuído a quem necessita. O homem rico é uma espécie de intendente do dinheiro que deve ser distribuído aos pobres.

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Um juiz é uma coisa, um benfeitor é outra. A caridade recebe este nome porque é praticada mesmo com os indignos. Façamos o mesmo, eu vos imploro, sem mais questionamentos do que o necessário. O valor do homem pobre está apenas na sua necessidade. [São João Maximovitch, por exemplo, foi visto vários vezes dando esmola a um notório bêbado. Questionado por que o fazia, dado que o dinheiro certamente seria gasto para sustentar seu vício, o santo respondia que ele não era melhor que o homem bêbado. Em outras palavras, o valor de ambos, santo e bêbado, reside na natureza humana, que lhes é idêntica. A transmissão da bondade pelo benfeitor, mesmo diante de uma "má necessidade", está acima da indignidade do vício. Eis a autêntica filantropia: amor e compaixão pelo próximo, a despeito de quem seja. Uma magnanimidade incomum, sem dúvida]. 

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É um grande bem ter vossas esperanças de salvação depositadas em vossos próprios atos virtuosos.

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Quando somos testados em circunstâncias difíceis, lembramo-nos dos antigos pecados.

Fonte: São João Crisóstomo, A riqueza e a pobreza, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2022.