Com efeito, pela grandeza e beleza das
criaturas se pode, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Criador. (Sabedoria 13:5)
As seitas gnósticas têm metafisicamente
falando um único objetivo: combater a ideia de que Deus criou todas as coisas
segundo a lei da analogia (a boa e velha analogia entis, sobre a qual
tanto versamos por aqui). Há nelas um elemento comum, que é a revolta contra a
ordem metafísica real. Em outras palavras, mesmo que velada ou
inconscientemente, a gnose trata o ser como termo equívoco (o ser é
absolutamente dessemelhante ao Ser, que é o caso das seitas gnósticas) ou
unívoco (o ser é absolutamente idêntico ao Ser, que é o caso das seitas
panteístas). Os homens são levados a uma ou outra perspectiva por vários
motivos, entre os quais, em geral, estão ocultas causas pessoais, psicológicas.
Manter a postura saudável e equilibrada de não identificar as criaturas com
Deus, nem negar a excelência da criação, pode ser especialmente árduo para muitas
pessoas. Nas palavras de Étienne Gilson: “A Renascença marca o início da era em
que o homem se declara satisfeito do estado de natureza decaída”. E Orlando Fedeli:
“Há na alma renascentista uma revolta que rejeita a transitoriedade das
coisas, uma revolta contra o tempo, uma oposição à aceitação do mal relativo
das criaturas. [...] Ao mesmo tempo em que no Renascimento e no Humanismo se
divinizavam o homem e a natureza, a razão e o universo, chegava-se também ao
extremo oposto, negando-se qualquer valor à razão [...] Passa-se de uma
supervalorização absoluta da razão à sua negação completa. E não se sabe se o
homem, pela razão, deve dominar o universo, ou se, pelo contrário, o universo
deve absorver o homem pelo amor, negando-se a razão”.
Fedeli apelida de “antropoteísmo” a
religião do homem, a qual divide-se em panteísmo (divinização do corpo, geralmente
monista e racionalista pró-Utopia) e gnose (divinização da alma, geralmente
dualista e místico pró-Milênio). Novamente, Fedeli confere certo caráter
psicológico à causa do antropoteísmo: “[Ele] é fruto de um orgulho egolátrico e
de um sensualismo antinomista, levados ao paroxismo. [...] É a revolta contra a
morte, a dor, o trabalho e as mil outras misérias que fazem da vida humana um
vale de lágrimas. [...] Se nota um desejo de destruir os princípios
metafísicos. Ele [o antropoteísmo] odeia o ser”. O autor centra-se mais na
gnose pois considera o panteísmo uma espécie de “fase infantil” ou antessala da
gnose. A gnose é mais própria de espíritos intelectualizados, enquanto o
panteísmo é mais próprio de pessoas ligadas à matéria (“têm por Deus o próprio
ventre”), ou seja, pessoas de menor valor natural. No panteísmo enquadram-se
tanto os materialistas crassos quanto os tipos mais pretensamente filosóficos (“racionais”,
ateus etc.), bem como aqueles de mentalidade “científica”, como cientistas em
geral, engenheiros, físicos etc.
A gnose necessariamente tem de negar os
princípios metafísicos. Ela nega, por exemplo, o princípio de identidade, pois
as coisas perdem sua individualidade, sua essência, sua personalidade. Nega
também o princípio de contradição, pois os contrários passam a coincidir.
Similarmente, o princípio de causalidade e finalidade se perdem, pois se não há
ordem metafísica, não há causa e efeito, não há relação a um fim, não há
relação entre Criador e criatura. Os transcendentais se dissolvem todos (res,
aliquid, unum, verum, bonum e pulchrum) porque o ser se dissolve no
abismo do nada. Toda ordem analógica é negada pela gnose. Por fim, a gnose
recusa-se a aceitar o espaço (não há materialidade) e o tempo (não há
movimento, pois não há ato e potência e, portanto, não há movimento e sua
medida, que é o tempo).
Um traço curioso da gnose é sua perpétua
inversão de um conceito em seu contrário, uma espécie de ponte metafísica.
Mestre Eckhart, Jacob Boehme, a Cabala de Isaac Luria, Simão Mago, Hegel etc.
são expoentes dessa característica (finito é infinito, nada é tudo, muitos é um,
o nada é o real, o corpo é espírito etc.). Similarmente, há uma ponte moral
na gnose, no sentido que prega uma moral ascética, de tipo budista, mas quando
o asceta alcança sua “união mística”, de repente se vê acima de toda lei moral,
e tudo lhe passa a ser permitido.
Vejamos alguns temas essenciais da gnose:
1. Teogonia. Há a Divindade, o
princípio de que tudo se originou, e há Deus, o cosmocrator, o criador.
Não há qualquer relação analógica entre o ser divino e o ser criado (qualquer
semelhança com o Pe John Romanides não é mera coincidência). Essa distinção
está clara em Mestre Eckhart, por exemplo (divinitas vs. Deus, Gottheit vs. Gott). A vida íntima
da Divindade consiste num eterno processo de divisão dialética interior. Os
sistemas gnósticos narram complicadas genealogias emanadas do fundo abissal da
Divindade. Diz-se, simplificadamente,
que os éons eram partículas resultantes dessa divisão e que se opunham
dialeticamente umas às outras, de maneira que eram absolutamente iguais e, por
isso mesmo, não tinham consciência de sua limitação. Assim como uma gota no
oceano não “sabe” que é limitada, pois se vê no todo e julga-se o todo, assim
também os éons não “sabem” de sua limitação no pleroma. Em cada éon reptia-se a
dialética tudo=nada que há na Divindade.
2. Cosmogonia. Mas eis que houve uma
“queda”, uma ruptura, um “exílio”, o mal metafísico: um éon sem seu “cônjuge” surge
e passa a agir. É o demiurgo. Os demais éons são levados a compreender que não
eram tudo. Está rompida a felicidade absoluta no pleroma. Por que se deu o surgimento
do demiurgo? Os sistemas gnósticos não explicam, apenas narram. Aliás, isso nos
faz lembrar a crítica de Philip Sherrard à “metafísica” de René Guénon em seu Estados Múltiplos do Ser: parece elaborada e precisa, mas, na
verdade, é apenas uma narrativa embalada em conceitos filosóficos.
Ora, isso deixa sem resposta a questão sobre como o próprio Ser é determinado. A ordem não-manifestada, escreve Guénon, é feita de Ser e Não-Ser. O Ser engloba todas as possibilidades de manifestação, formal e informal, na medida em que estas serão manifestadas; o Não-Ser engloba todas as possibilidade de não-manifestação, incluindo o próprio Ser e a manifestação, na medida em que permanecem puras possibilidades. [15] Mas será que isso significa que o Não-Ser é o princípio do Ser no mesmo sentido que o Não-Ser determina o Ser? Não podemos afirmar isso, pois aquilo que é completo e infinito em sua não-determinação não pode determinar-se sem tornar-se menos e outro do que si próprio, contradizendo assim sua própria natureza, o que seria uma impossibilidade. Portanto, o Não-Ser não pode abarcar o princípio ou a possibilidade de autodeterminação: ele não é determinado por nada (pois o Não-Ser é “não-dual” e onde não há dualidade nada pode ser determinado por nada) e ao mesmo tempo é impotente para determinar o que quer que seja (pois no âmbito do Não-Ser Absoluto não há nada a determinar e nada que possa ser determinado).
Isso significa que somos confrontados com um dilema. Tem de haver uma primeira determinação, pois caso não haja uma primeira determinação não é possível que haja determinações subsequentes e, assim, toda a teoria dos estados múltiplos do ser perderia sua fundamentação ontológica. Por outro lado, no Absoluto não há, de acordo com Guénon, um princípio que possa determinar a primeira determinação. É da necessidade de resolver esse dilema que Guénon anuncia o que poderíamos chamar de salto quântico metafísico. Diz ele: “O Ser não é determinado, mas determina-se a si mesmo”.
Vale a pena nos determos um pouco mais nessa afirmação. A primeira parte da frase, em si, equivale a dizer que uma determinação não é determinada, o que sem dúvida é uma contradição em termos; enquanto que a segunda parte da frase assume novamente ares daquilo que Guénon chamava de absurdidade, pois viola a lei da não-contradição, cuja conformidade caracteriza para Guénon aquilo que é possível. Ora, em que sentido uma determinação pode determinar-se a si mesma ou ser seu próprio princípio? Nenhuma determinação pode possuir o princípio de seu próprio ser – ou seja, de sua própria determinação – em si mesma, pois isso seria o mesmo que dizer que há um princípio que existe à parte ou oposto ao Infinito, e isso acarretaria em contradizer toda a ideia de Absoluto conforme ensinada por Guénon. Todavia, conforme vimos acima, o Absoluto não pode, em Si, ser o princípio da determinação sem ao mesmo tempo contradizer Sua própria natureza. Ora, se o Ser realmente determina-se a si mesmo por meio de uma espécie de combustão espontânea, então há aí uma possibilidade de uma impossibilidade: uma possibilidade de que uma determinação que não possui o princípio de sua própria determinação em si mesma e é, portanto, com respeito ao Absoluto, rigorosamente nada e desprovida de qualquer ser ou existência, mas que mesmo assim é o princípio de sua própria determinação e de fato determina-se a si mesma.
Percebemos desde logo por que é necessário postular esta determinação inerentemente contraditória do Ser, pois do contrário seria impossível explicar a passagem do Absoluto indeterminado para a primeira determinação, o puro Ser, e assim construir toda a teoria subsequente da estrutura do universo. Mas isso não deixa de ser um tipo de deus ex machina sem o qual o dilema apresentado permaneceria insolúvel; nem deixa de ser uma violação da lei da não-contradição, ou seja, uma absurdidade, conforme Guénon define esse termo. Assim, a tentativa de apresentar um princípio metafísico supremo em termos que sejam logicamente consistentes introduz necessariamente uma inconsistência lógica na descrição de quaisquer determinações que sejam subsequentes a este princípio, e na descrição de quaisquer manifestações (ou aparências de manifestações) de quaisquer tipos.
O demiurgo teria aprisionado os éons na
matéria: em cada coisa há um componente material que encarcera uma partícula
divina. Eis que tudo, portanto, é divino, e no cosmo há uma luta entre as
partículas divinas e a materialidade.
3. O demiurgo. Ele é o “deus mal”, a
causa do mal metafísico. Os gnósticos o identificam com Satanás e com Javé,
criador dos céus e da terra. O demiurgo é o inimigo do Deus absconditus,
ora imitando-o, ora ignorando-o. A serpente teria procurado revelar aos
ignorantes Adão e Eva que o criador não era o Deus verdadeiro. Portanto, foi a
serpente quem primeira revela a gnose: o demiurgo (Javé-Satanás) era um
ignorante que criara um cosmos caricato por não conhecer o mundo do pleroma.
O demiurgo é o Javé-Satanás do Velho
Testamento, enquanto o deus do Novo Testamento é bom e misericordioso. Por isso
devemos rejeitar a lei (VT) e basta a fé para a salvação (NT), sem necessidade
de obras. É claro que isso faz lembrar a tese luterana, o mesmo Lutero, aliás,
que inspirou-se ostensivamente em Eckhart (“Não quero Moisés com sua lei, pois
ele é um inimigo do Senhor Cristo”). Fedeli lembra na parte 2 de sua aula sobre o esquema gnóstico que a renovação carismática guarda grande semelhança com a seita dos Irmãos do
Livre Espírito, declaradamente gnóstica. Alguns gnósticos chamam o demiurgo de Topos
(“Lugar”), uma alusão ao criador do espaço e do tempo.
4. Antropogenia. O homem é o ponto
que une o espiritual e o material. Ele é, assim, o ponto inicial para o retorno
à Divindade. A gnose repete a ideia do “homem universal”, ou seja, o homem ao
mesmo tempo é uma redução do universo, enquanto o universo é um homem ampliado.
O homem também foi criado pelo demiurgo e, assim como as demais coisas criadas,
tem aprisionado algo da substância divina em seu corpo.
5. Psicologia. A gnose é antipática
à razão, ao raciocínio, à lógica, à vontade, porque eles são não apenas incapazes
de apreender o divino, mas dificultam em fazê-lo (veja acima o que dissemos
sobre a gnose ser contrária aos princípios metafísicos que, por sua vez, são a
base da lógica). Só por meio da intuição pneumática isso seria possível. O pneuma,
ou centelha divina no homem, é o que constitui seu verdadeiro eu. As almas
humanas individualizadas constituiriam, originalmente, uma grande alma coletiva
e divina. Daí a gnose ser contra tudo aquilo que personaliza, seja a vontade
(apegada aos desejos), seja a razão.
6. Soteriologia. Não há salvação
propriamente na gnose, porque quem caiu não foi o homem, mas o próprio Deus. A
passagem do nada absoluto (o não-ser) ao ser é a queda; portanto, não houve
queda moral, mas uma queda ontológica. A soteriologia gnóstica consiste,
portanto, numa dupla moralidade: ascética (fruto do ódio à matéria e à
existência) e antinomista (prática de ações degradantes e repugnantes). Os dez
mandamentos são, portanto, um meio perpetuante do aprisionamento das centelhas
divinas. O pecado é o meio de salvação gnóstico, ou seja, ele é a técnica por excelência
para destruir as cadeias ontológicas, isto é, para destruir o ser.
7. Cristologia. Não há Redentor na
gnose porque não há pecado ancestral. Por vezes os gnósticos alegam que Cristo não
teria corpo, por motivos óbvios. Eles rejeitam todos os elementos estruturais
da Igreja: organização, hierarquia, leis, templos etc. Os gnósticos são contra
todo dogmatismo porque entendem que a verdadeira igreja é pneumática, formada
exclusivamente por homem “espirituais”.
8. Escatologia. Enquanto não são
libertas da matéria pela gnose, o inferno é o renascimento das partículas
divinas, ou mesmo a transmigração para corpos de animais, plantas e até mesmo
matéria bruta. O inferno é, portanto, a permanente ligação a um corpo material.
Os gnósticos, no entanto, ao morrerem são reintegrados na Divindade.
9. O amor. A gnose odeia o ser,
portanto as questões relativas ao sexo e à reprodução lhe são importantes. De
maneira geral, os gnósticos desprezam as mulheres porque são fontes de
procriação, ou seja, da continuidade material da humanidade. As relações
sexuais podem ser livres, contanto que não deem à luz a novas vidas. A gnose é o elemento subjacente que explica por que a mulher deveria apoiar uma seita que despreza a mulher: há
aqui uma possível explicação do apoio feminino ao feminismo. No romantismo, a
mulher em concreto é desprezada, enquanto a partícula divina que há nela
(simbolizada pela dama) é apresentada num contexto de amor platônico
idealizado. A mulher é uma fada, mas na verdade é a luxúria idealizada. Diz
Denis de Rougemont: “A licenciosidade demoliu o casamento por baixo, enquanto a
cavalaria [o amor cortês ou cavalheiresco] o ridiculariza de cima”. Diz ainda
Fedeli: “O amor sentimental dos gnósticos é apenas um meio utilizado para
romper os laços da individualidade e obter uma união “mística” de duas almas,
de duas partículas divinas com a Divindade [...] e, portanto, exige a morte
como veículo de libertação”.
10. Eclesiologia. Na igreja
gnóstica, todos são iguais (porque todos são igualmente divinos), não há santos.
Essa igreja tem membros não apenas na Igreja, mas em todas as religiões. Não há
“síbolo de fé” na gnose, eis porque é difícil traçar os limites de cada seita.
Seus contornos são fluidos e confusos.
Para Fedeli, panteísmo e gnose
ocasionalmente se unem, provocando grandes “curtos-circuitos”. Foi o caso da Reforma
Protestante, da Revolução Francesa, da Revolução Russa, do modernismo e,
compreende-se, do Concílio Vaticano II.
Fonte: Orlando
Fedeli, Antropoteísmo, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil,
2020.