7 de fevereiro de 2023

O homem que brinca


A essência da brincadeira é o divertimento, ou seja, é quando há um influxo da mente que rompe o determinismo absoluto do cosmo físico. O mundo físico é o mundo do necessário, do determinado, da operação de forças cegas. A brincadeira rompe esse mundo, para o qual não passa de uma atividade supérflua, literalmente “inútil”. A brincadeira situa-se fora das antíteses sabedoria-loucura, verdade-falsidade, virtude-vício, bem-mal, porque a brincadeira é amoral, ou seja, não desempenha nenhuma função moral.

O historiador holandês Johan Huizinga se rende e não define precisamente o que vem a ser brincadeira, mas simplesmente a declara como uma função ou operação da vida animal e humana. Mas, há algumas características que marcam a brincadeira, a saber:

- É uma atividade voluntária, ou seja, totalmente livre e inecessária. Tampouco há uma obrigação moral em desempenhá-la.

- Não é uma atividade da “vida normal” ou da “vida real”. Isso não significa que não seja séria, pois é evidente que o grau de absorção e devoção a que se dedicam seus praticantes se trata, sim, de algo muito sério.

- É uma atividade desinteressante. Em outras palavras, ela se situa como um interlúdio em nossas vidas diárias. A brincadeira adorna a vida, a amplifica e nesse sentido funciona como uma “necessidade” para o indivíduo e a sociedade em razão do sentido e do valor expressivo, das associações espirituais e sociais. Em suma, a brincadeira é um item cultural central livre de interesses materiais e necessidades biológicas.

- É uma atividade reclusa, isolada, limitada. Ela possui suas próprias razões, seu próprio sentido e seus próprios limites temporais e espaciais. Talvez a melhor palavra para descrever essa característica é “ordem”. A brincadeira cria sua própria ordem para além da confusão e da imperfeição da vida comum. É por isso que, em linhas gerais, a brincadeira tende a ser esteticamente bela, encantadora, cativante. Ela claramente conta com ritmo e harmonia.

- É uma atividade tensa. Quanto mais competitiva a brincadeira (o que chamamos em português de “jogo”), tanto mais o binômio tensão-solução se aplicará. Dentro de suas regras, a destreza, coragem, tenacidade e, acima de tudo, a retidão do jogador estará à prova. Aqui pouco ou nada importa que seja “só uma brincadeira”. A palavra “só” vem do hábito de avaliar as coisas sob o ponto de vista utilitário e “sério” da vida. De um ponto de vista vital, a brincadeira é fundamental, embora “inútil”.

- É uma atividade secreta. A ideia aqui é que dentro de seu círculo, dentro de suas linhas, as leis e costumes da vida comum não se aplicam. A brincadeira é para “nós”, não para os “outros”.

- É um fingimento. Em outras palavras, conscientemente sabemos que todos ali estão fingindo nos papéis que desempenham, mas a ideia da brincadeira é precisamente, entre outros aspectos, fingir. É um faz-de-conta, afinal.

Huizinga nota que os rituais portam exatamente as mesmas características da brincadeira, com especial atenção ao aspecto de que “eleva” os participantes a um nível distinto da vida mundana comum. Não se engane. A brincadeira é profundamente séria, assim como os rituais também o pretendem ser. Nos rituais presenciamos não apenas a tensão que mencionamos acima, mas algo ainda maior: uma elação.  Novamente, cuidado com o hábito de rebaixar a brincadeira a algo “meramente” tolo, pueril, inútil, frívolo. O fato de ser frívola não torna a brincadeira algo “inferior”. Nos rituais, os insights cósmicos e o desenvolvimento social daí engendrado são fundamentais. O bem-estar da comunidade passa pelo desempenho da “brincadeira dos rituais”. Uma brincadeira, sem dúvida, mas uma brincadeira sagrada.

O argumento central de Huizinga, cabe salientar, não é que os jogos e brincadeiras sejam um entre muitos elementos culturais, mas que os jogos e brincadeiras precedem todos os demais elementos culturais. A cultura emerge das brincadeiras e jogos arcaicos. A eles se somam valores físicos, intelectuais, morais e espirituais que os elevam a um nível cultural, ou seja, que conferem à outrora desinteressada brincadeira uma característica de “interesse”. Em outras palavras, numa brincadeira o que está “em jogo” é um fato ideal, é concluir a brincadeira de maneira bem-sucedida. Elevada ao nível cultural, haverá um resultado concreto, além do ideal, também “em jogo”. Quem vence a brincadeira ganha uma certa aparência de superioridade e, por conseguinte, certa reputação, fama, estima, honra, heroísmo,  que pode ou não, a depender da brincadeira, estender-se ao grupo ao qual faz parte. Observe que a virtude, a honra, a nobreza e a glória fazem parte, antes de tudo, do campo da competição, ou seja, da brincadeira.

* * *

Brincadeira e direito. É óbvio, diz Huizinga, a semelhança entre uma ação na justiça e uma competição. Competir é brincar. O tribunal é como um círculo sagrado. Os juízes atuam fora da “vida normal”. Os códigos legais são um sistema de regras restritivas, enquanto as ações na justiça são como um jogo de sorte, uma “batalha verbal”. Observe que por trás dos conceitos ético-jurídicos de “certo” e “errado” estão os conceitos lúdicos de “ganhar” e “perder”.

Brincadeira e guerra. No fundo, as guerras se travam menos por questões econômicas e forças políticas e mais por orgulho, vaidade, desejo de prestígio etc. As grandes guerras, sejam as do mudo antigo sejam as atuais guerras modernas, se fundam na ideia de glória, e não tento em teorias racionais e dinamismos políticos. Em vez de “consultar os deuses” mediante jogos de azar, oráculos, disputas verbais, a brincadeira da guerra obtém a validação divina mediante a vitória na guerra. A guerra é uma forma de divinação. Algo dos antigos códigos de honra, beleza, virtude e lealdade permanecem na forma de relações diplomáticas, como honra a tratados, assinatura de tratados de paz após a derrota, troca de prisioneiros etc. A ausência do elemento lúdico torna a civilização impossível.

Brincadeira e vida intelectual. Nos tempos antigos, as competições intelectuais giravam em torno sobretudo sobre a origem do cosmo e a ordem das coisas. As competições de enigmas (conhecimento esotérico) versavam sobre nomes secretos, origem do mundo, objetos sagrados. Era uma questão de alta sabedoria postular uma pergunta para a qual ninguém tinha uma resposta. A resposta a uma questão enigmática não era formulada mediante raciocínios lógicos ou após longas reflexões, mas era algo repentino, que tinha de surgir de maneira espontânea, “natural”, em flashes. As competições de enigma eram, portanto, uma brincadeira, um jogo. Destes jogos surgiu a filosofia tal como a conhecemos hoje, em especial a filosofia e a teosofia dos Upanishads, a filosofia intuitiva dos pré-socráticos etc.  Os antigos filósofos eram como campeões, falavam em tom de profecia e arrebatamento. O espírito competitivo da vida intelectual se pode vislumbrar bem com as disputas escolásticas medievais. Todo conhecimento apresenta certo elemento de polêmica, e a polêmica não pode se divorciar do espírito lúdico.

Brincadeira e poesia. A poesia não tem função meramente estética. Nas civilizações florescentes, a poesia tem uma função socialmente vital. Transmite jovialidade, alegria, regozijo, júbilo. Era exercitada em competições, e o objetivo não era estético, mas sobretudo de romper feitiços. Ademais, a poesia tinha a nobre função de expressar sentimentos e aspectos importantes da vida da comunidade. A poesia sempre precedeu a prosa, pois era vista como o veículo adequado para expressar coisas sagradas e solenes. Enquanto os enigmas transmitiam conhecimento, a poesia transmitia beleza. A arte da poesia, claro, difere do discurso comum porque emprega termos, imagens, figuras de linguagem etc. especiais. O eterno hiato entre ser e ideia só pode ser vencido pelo arco-íris da imaginação. E precisamente o que a linguagem poética faz com as imagens é brincar com elas. Conforme a civilização avança e ganha certa amplitude espiritual, as atividades que continham elementos originários lúdicos os vão perdendo (direito, guerra, comércio, técnica, ciência etc.). A poesia, no entanto, é exclusivamente lúdica, e assim conseguiu permanecer viva tal qual até hoje.

Em suma, conclui Huizinga:

“A verdadeira civilização não pode existir na ausência de um certo elemento lúdico, pois a civilização pressupõe limitação e domínio do ego, a capacidade de não confundir suas próprias tendências com a meta última e mais elevada, mas entender que ela está encerrada em certos limites livremente aceitos. A civilização, em certo sentido, sempre será jogada de acordo com certas regras, e a verdadeira civilização sempre exigirá jogo limpo. “Fair play” nada mais é do que boa-fé expressa em termos de jogo. Assim, a trapaça destrói a própria civilização. Para ser uma força criadora de cultura sólida, esse elemento lúdico deve ser puro. Não deve consistir no obscurecimento ou rebaixamento dos padrões estabelecidos pela razão, fé ou humanidade. Não deve ser uma aparência falsa, um disfarce de propósitos políticos por trás da ilusão de uma forma lúdica genuína. O verdadeiro jogo não conhece propaganda; seu objetivo está em si mesmo, e seu espírito familiar é uma feliz inspiração”.

Fonte: Johan Huizinga, Homo Ludens, Angelico Press, Kettering, OH, EUA, 2016.