30 de janeiro de 2023

A consciência segundo Julian Jaynes


O psicólogo americano Julian Jaynes tornou-se mundialmente famoso por suas pesquisas sobre a consciência, sua origem e seu funcionamento. E talvez na palavra "origem" esteja o núcleo de seu pensamento mais criativo: Jaynes não apenas trata da origem da consciência no sentido de quando, na vida humana, ela entra em ação e desempenha um papel central, mas sobretudo trata da origem da consciência na própria história da humanidade. Sim, isso mesmo: Jaynes acredita que os homens antes aproximadamente de 1000 a.C. viviam sem consciência -- não sem pensamento, não sem raciocínio, mas em consciência -- até que houvesse uma paulatina, mas decisiva, "ruptura da mente bicameral". Meu objetivo aqui não é rever o argumento de Jaynes a favor da existência da mente bicameral, de povos bicamerais, do desenvolvimento da consciência a partir de catástrofes naturais e sociais etc. Para isso o leitor poderá rever o conjunto de dados e argumentos que reuniu em seu famoso livro, ou mesmo em um artigo que resume bem sua posição. O que vamos fazer aqui é procurar entender o que Jaynes quer dizer por “consciência”.

1) A consciência não é um "estar desperto". Quando dizemos que "Fulano perdeu a consciência" o que ele perdeu, na verdade, foi a reatividade. Ora, quando falamos a alguém que está distraído e não nos responde não dizemos, pelos mesmos motivos, que esse alguém perdeu a consciência. Ele apenas não está reagindo, eis tudo. Por outro lado, há uma ideia popular de que estamos conscientes todo o tempo em que estamos acordados. Isso é terminantemente falso. Quantas vezes agimos, reagimos, pensamos, raciocinamos, sem ao menos nos dar a mínima conta do que fizemos ou estamos fazendo? Resulta que estamos conscientes somente quando "prestamos atenção" ao que fazemos e pensamos. Quando lemos, tocamos piano, dançamos etc. a consciência encontra-se perfeitamente desligada, e é bom, nesses casos, que seja assim.

2) A consciência não é uma coleção de imagens. A quantidade imensa de informações e imagens armazenada na memória em momento algum necessita da intervenção da consciência. Quantas vezes nos damos conta de que algo mudou no ambiente somente depois de nos depararmos com o ambiente novamente? Antes disso, quem é capaz de descrever o ambiente com precisão a ponto de recordar-se de todos os microdetalhes? O que há na memória não temos consciência alguma e, pior, o que há na memória é em grande parte inventado ou, como diz Jaynes, "narratizado".

3) A consciência não é uma coleção de conceitos. A consciência nunca se conscientiza de conceitos, mas de objetos reais, concretos, individuais, mesmo quando pensamos sobre um conceito. Jaynes explica que os conceitos são apenas "classes de coisas" que suscitam comportamentos equivalentes, e que existem antes da experiência e são a base, por exemplo, dos instintos.

4) A consciência não é necessária para a aprendizagem. Sim, a consciência pode ser útil para a aprendizagem, por vezes é contraproducente, mas não é necessária. Inúmeras pesquisas na área da psicologia demonstram que a aprendizagem ocorre na ausência da consciência.

5) A consciência não é pensamento. Nos diversos processos propelidos por imagens que versam "sobre" ou "de" alguma coisa -- aquilo que geralmente chamamos de "pensamento" -- a consciência não desempenha nenhum papel. Em primeiro lugar surge o pensamento, e só em seguida sabemos sobre o quê versará o pensamento.

6) A consciência não é raciocínio. A ideia de que para que o raciocínio lógico ocorra é necessária a condução da consciência é um mito. A velha imagem do cientista sentado em seu laboratório ou escritório sendo conduzido conscientemente pelas leis da indução e dedução é fruto da superstição popular. Inúmeros relatos e pesquisas comprovam que o raciocínio em si, até a preparação prévia do material pertinente, surge subitamente, por insights ou "estalos". O raciocínio é algo automático. Ademais, o raciocínio está para a lógica assim como a saúde está para a medicina ou o comportamento está para a moral. Isso significa dizer que nem todo raciocínio será necessariamente lógico assim como nem todo estado de saúde corresponde ao conhecimento médico atual, e assim como nem toda conduta está de acordo com as regras morais de uma sociedade.

7) A consciência não está na cabeça. O fato de o cérebro conter uma grande quantidade de neurônios tem feito muita gente pensar que é ali que "fica" a consciência. Aristóteles pensava que ela ficava logo acima do coração, por exemplo. Ora, quando andamos de bicicleta o cérebro se encontra altamente ativado. Alguém por acaso concluiria que andamos de bicicleta no cérebro? Tolice semelhante é acreditar que a consciência "está" no cérebro.

Em suma, a imensa maioria das atividades humanas dispensa completamente o uso da consciência.

A consciência, explica Jaynes, é um análogo do mundo real, ou seja, é um campo lexical (vocabular) cujo objetivo é curto-circuitar os processos comportamentais. A consciência tem uma estrutura interna. Eis suas características principais:

1) Espacialização. A consciência sempre cria no espaço mental os substratos metafóricos do que está pensando, ou seja, a consciência transforma o diacrônico em sincrônico no espaço mental.

2) Extrato. Pensamos em algo mediante extratos desse algo. São partes da coisa, nunca a natureza da coisa, de modo que o extrato depende de como a coisa nos afeta e vice-versa. A partir do extrato é que as memórias se aderem: são as reminiscências, ou seja, uma sucessão de extratos.

3) Eu análogo. Somos capazes de nos “mover” por aí, de “prever” vistas, panoramas, ambientes, cenários etc.

4) Eu metáfora. É a capacidade da autoscopia, ou seja, de nos vermos, nos observarmos.

5) Narratização. Criamos estórias em torno de nós e dos outro, atribuindo causas, motivos, sucessões etc. Tudo na consciência tem uma “estorinha”. Fatos soltos são amarrados a outros faltos soltos.

6) Conciliação. Assim como a narratização cria estorinhas (tempo) para as coisas, a conciliação cria objetos (espaço) para as coisas.

7) Concentração. É o análogo interior da atenção perceptual exterior.

8) Supressão. É o análogo interior da supressão de pensamentos perturbadores, da mesma forma que evitamos perturbações no mundo físico exterior.

Em suma:

“Deixe-me resumir como uma forma de "ver" onde estamos e a direção em que nossa discussão está indo. Dissemos que a consciência é uma operação e não uma coisa, um repositório ou uma função. Ela opera por meio de analogia, por meio da construção de um espaço análogo com um análogo que pode observar esse espaço e mover-se metaforicamente nele. Ele opera sobre qualquer reatividade, extrai aspectos relevantes, narratiza e concilia-os em um espaço metafórico onde tais significados podem ser manipulados como coisas no espaço. A mente consciente é um análogo espacial do mundo e os atos mentais são análogos aos atos corporais. A consciência opera apenas em coisas objetivamente observáveis. Ou, para dizer de uma maneira que ecoa a John Locke, não há nada na consciência que não seja um análogo de algo que já estava no comportamento antes. [...] A consciência é a invenção de um mundo análogo com base na linguagem, um mundo paralelo ao mundo comportamental assim como o mundo da matemática é um mundo paralelo ao mundo das quantidades das coisas”.

A linguagem é a base sobre a qual o mundo análogo é inventado. Essa invenção é a consciência. A linguagem, enquanto metáfora, é o que faz o trânsito entre o mundo real e o mundo consciente. A linguagem é, portanto, uma interface.

Cabe lembrar que a autoridade da voz do solilóquio, da “voz da consciência”, não é como a autoridade da voz das outras pessoas, que de alguma forma modulamos seja guardando alguma distância, seja sustentando alguma opinião a respeito do outro que fala. A autoridade da voz interior é muito mais desafiadora de controlar. A voz contém em si uma tendência para o comando, para a ordem. Não é à toa que obedecer etimologicamente vem de “ouvir voltado a”. 

O que Jaynes descreveu? Ele não descreveu a consciência, mas o ego, que é movido a linguagem. Tudo o que acessamos através da linguagem em nosso interior é o ego. O “eu análogo” ao qual Jaynes se refere é precisamente o ego em ação. Mas quem cria esse eu análogo? Quem o move? Quem o narratiza? Quem o alimenta? Ora, não pode ser ele mesmo. É o noûs, o eu, o “self”, o verdadeiro eu, a autoconsciência, o eu ontológico e hipostático. A origem dessa verdadeira consciência, eis o elemento fundamental que falta às investigações de Jaynes.

Fonte: Julian Jaynes, The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, Mariner Books, Boston, MA, EUA, 1976.