12 de dezembro de 2022

O filósofo-místico de Eric Voegelin - II


Parte I

Em seu livro autobiográfico, o filósofo Eric Voegelin relata como de repente se viu obrigado a abandonar um longo e trabalhoso projeto intelectual quando se convenceu, em definitivo, de que "não haveria ideias se antes não houvesse símbolos e experiências imediatas. Ademais, era impossível tratar como 'ideias' fenômenos como um ritual egípcio de coroação ou a recitação do Enuma Elish nas celebrações do ano-novo sumério [...]; [Assim, seria preciso] recuperar as experiências em que as ideias têm origem". Na elucidação desse ponto, Voegelin não quis afirmar a impossibilidade de escrever uma "história das ideias", mas sim a inadequação de tratar as ideias religiosas como realidades fundantes, principalmente quando se estudam as instituições religioso-políticas em contextos arcaicos. Muito antes que se organizassem determinadas ideias (religiosas e/ou políticas), Voegelin percebeu que teria de haver experiências cujo impacto seria determinante na atriuição dos sinais fundantes dessas ideias. Todavia, ainda que Voegelin estivesse certo na aposta que fez de uma anterioridade estrutural de certas experiências e eventos fundadores, ele jamais conseguiu se libertar do fascínio intelectual que tinha pelas simbologias do sagrado; portanto, embora percebsse a necessidade de desintelectualizar as experiências fundantes, que se expressariam como experiências de ordem (seu objetivo era conseguir compreendê-las com maior acuidade histórica), suas análises nunca abandonaram o mundo das ideias. Os sistemas de Voegelin simplesmente não encontram o necans [que mata], o implantador dos mais variados sistemas de ordem. A meu ver, esse filósofo germânico, ainda que intelectualmente brilhante e de inegável erudição, foi incapaz de rompero véu de seu reconhecido platonismo e ver Caim matar seu irmão.

Como ocorre com parte expressiva dos "filósofos esotéricos", havia um comprometimento inegociável com a autoridade primeira das ideias e dos conceitos, mesmo quando se afirmava o contrário em nome de um suposto rastreamento histórico das experiências fundantes em seus ordenamentos simbólicos, em cuja base as mais diersas cosmologias teriam tomado forma.

Àqueles que se escandalizarão por conta da atrbuição de esoterismo a Voegelin (o presumível campeão de uma cruzada intelectual contra o perigo gnóstico dos revolucionários modernos),deixo-lhes as palavras de Gregor Sebba, colega e amigo íntimo de Voegelin: "Para mim Eric Voegelin sempre fora um representante exemplar do racionalismo, em seu sentido grego. Todavia, ao defender essa posição contra afirmações que lhe chamavam de filósofo místico, ele me escreveu: 'Isso lhe causará um choque, mas sou um filósofo místico'". Não se engane o leitor, o misticismo de Voegelin nõ se alicerçava na fé, na oração e no arrependimento, mas numa via negativa sustentada pelo pretenso distanciamento reflexivo do filósofo, "uma forma de autoasserção e a expressão de um desejo de estar certo quando tutdo e todos estariam comprovadamente equivocados". Semelhante aos gnósticos que tanto denunciava, Voegelin também fundou uma crítica social fundamentalista, baseada na dimâmica entre opostos, e que em seu caso expressava numa pretensa validade insuperável de sua via negativa versus o que via como engano da obstrução gnóstica: "A insistência de Voegelin no mistério fundamental da Realidade e de seu campo cognitivo não reflete o 'acesso humilde' da prece meditativa, mas a imposição de um sistema portador de um paradoxo em seu centro".

Na pena de Voegelin, o filósofo "esotérico", um hino dedicado a Hórus tornar-se mera idealização indumentária de um poder excelso. Como disse John Ranieri com prcisão: "Esse é um problema que a filosofia não consegue olhar; fascinada pela aparente profundidade de sua própria cortina de fumaça".

"Para Voegelin, a crise [de ordem] era sempre e exclusivamente um fenômeno social, e a imunidade pessoal [do filósofo] era uma possibiidade distinta ou mesmo uma obrigação. O orgulho ao qual nos referimos neste contexto corresponde à indisposição ou incapacidade do filósofo de contemplar a possibilidade de que o seu pensamento seja um sintoma da própria doença que ele tão bem diagnosticou em seu meio social".

Fonte: Maurício Righi, Pré-História & História, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2017.