12 de dezembro de 2022

Algumas observações girardianas


René Girard faz uma crítica à circularidade viciosa do raciocínio-padrão do evolucionismo social.

"Não se pode pressupor que os domesticadores tivessem sido motivados pelos resultados futuros do processo, que não tinham como prever. Não pode ter havido nenhum incentivo para domesticá-los [animais e plantas] diretamente ligado à domesticação e suas vantagens, pois tais consequências eram naturalmente desconhecidas! Além disso, em seus primeiros estágios, a domesticação era antieconômica [grifo do autor] [...] A domesticação não pode ter sido prevista, nem mesmo planejada."

O desfecho de um longo processo histórico não se antecipa em sua origem, ao menos não para nós; logo, um período da história não adivinhará o próximo.

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A intuição/criação de reinos espirituais via estados alterados de consciência ou, melhor dizendo, via percepção aguçada, foi uma prerrogativa do sapiens, a marca inconfundível de sua superioridade simbólico-imaginativa. A religião passaria a ser vista como a "invenção" mais original de nossa espécie, em torno da qual se fundamentou o traço tipicamente humano de erigir constructos simbólicos, narrativas de gênese e procedimentos religiosos coletivamente hierarquzados e socialmente distribuídos.

[...]

Apreende-se que por trás das variações mitológicas dos povos há três instituições (e três ideias) universalmente presentes: sacrifício, sepultamente e xamanismo. 

No templo-palácio, sacrifício, sepultamento e xamanismo foram finalmente domesticados, e esquemas mais acrisolados de racionalização e controle puderam ser concebidos e implantados, o que levou, muito provavelmente, a um dinamismo intelectual fomentador de procedimentos mais complexos e hierarquizados de ordenamento coletivo.

Surgiu, de bases xamânicas, uma classe especialmente talhada para pensar a religio: o estamento sacerdotal. Esse ambiente social acabou por criar modos de vida sobremaneira intelectulizados.

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Girard: "Em seus sonhos [e devaneios] solitários, o orgulho se vê como um, mas no fracasso ele se divide entre um ser desprezível e um observador que despreza. Ele se torna Outro para si próprio. O fracasso o obriga a tomar, contra si mesmo, o partido desse Outro que lhe revela o seu próprio nada".

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O que faz de uma pessoa um psicopata é sua incapacidade de relaxar diante das adversidades que se contrapõem ao seu desejo, já que este jamais aceitará uma derrota. Ele vive a tirania de um desejo que não admite ser contrariado, que se ressente de tudo e todos que lhe antagonizem a vontade. Os outros, os que lhe cruzam o caminho, são vistos como realidades potencialmente hostis e, mais cedo ou mais tarde, precisrão ser vencidos ou descartados. Nesse universo de violência psíquica (e física), o companheiro hoje será amanhã o inimigo, um adversário que precisará ser enganado ou eliminado. Trata-se de um ambiente privado de perdão, mas que, ao mesmo tempo, abarrota-se de retaliações, uma atmosfera que podemos chamar de subterrânea, em que o desejo (de si) é ao mesmo tempo sagrado e violento.

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Em sua base, a intuição de Girard é mínima e largamente assistêmica: não sabemos o que desejar e precisamos que os outros nos indiquem; ou seja, precisamos de modelos cujos desejos imitamos. Logo, "entre o eu e os outros sempre se estabelece uma comparação" que busca apropriar-se não só de objetos e substâncias, mas, pricipalmente, do que essas coisas representam. Por conseguinte, essa tendência à imaterialidade do que se busca abre um espectro absolutamente infinito de significados (e justificativas) possíveis de conflito. O "caminho da rivalidade" gera doses crescentes de fascínio entre elementos polarizados, levando seus participantes às dimensões "metafísicas" (imateriais) do desejo, que se afastam progressivamente de ojetos e coisas, intensificando as subjetividades desencadeadas entre os desejantes.

Fonte: Maurício Righi, Pré-História & História, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2017.