29 de dezembro de 2022

A personalidade neurótica


O que é um neurótico? Segundo Karen Horney, neurótico é aquele que apresenta alguns comportamentos que não coincidem com o das outras pessoas de sua mesma época e lugar. Uma definição arriscada, sem dúvida, porque supõe à primeira vista que exista uma "psicologia normal", ou seja, uma normalidade extensível a toda a raça humana. Por outro lado, também é verdade que nossos sentimentos e condutas são moldados pelas condições sob as quais vivemos. Isso tudo significa dizer que embora não haja uma normalidade rígida, precisa, monolítica, há, sim, uma faixa ou conjunto de limites -- um "âmbito" -- dentro do qual se estabelece uma normalidade de condutas e, por conseguinte, de pensamentos e sentimentos. As neuroses são portanto aqueles comportamentos que escapam a essa faixa, a esse âmbito.

Talvez seja mais fácil entender o que é uma neurose se apontarmos as duas caracteristicas gerais que a identificam em um indivíduo: (1) a rigidez nas reações e (2) a discrepância entre capacidade potencial e realização. Essas características são manifestas, ou seja, são algo que se pode detectar a olho nu, digamos. Mas se pudéssemos ilustrar um pouco mais essas caracerísticas, como elas se manifestam na vida do indivíduo? Em outras palavras, quais são as principais atitudes que denotam os conflitos que o indivíduo enfrenta que correspondem à sua rigidez de reações e a subutilização de suas capacidades? São 4 atitudes principais: (1) excessiva dependência de aprovação ou carinho, (2) demonstrar sentimentos de inferioridade ou de inadequação (ideia de incompetência, estupidez, feiúra etc.), (3) inibições manifestas que vão de encontro a seu próprio interesse, como expressar desejos, pedir algo, expressar opiniões ou críticas, dar ordens, selecionar pessoas com quem deseja relacionar-se, estabelecer conexão com outras pessoas etc., (4) agressividade (ataque, ofensa, intromissão, hostilidade, propensão à dominação, exigência etc.), (5) disfunção sexual, seja um desejo compulsivo por sexo ou, ao contrário, uma inibição em fazê-lo (dificudades em aproximar-se do sexo oposto, em galantear, em fazer sexo, em disfrutar das relações sexuais etc.).

Mas há um fator dinâmico (ou seja, subconsciente) que intervém na produção dessas características: trata-se da angústia. É a angústia que desencadeia o pocesso neurótico e o mantém ativo. O neurótico, portanto, não sofre apenas os temores objetivos comuns aos indivíduos de sua cultura e sociedade, mas acrescenta seus próprios temores subjetivos (angústias) que correspondem às suas codições de vida vinculadas à cultura geral. O indivíduo neurótico sofre mais que o indivíduo normal, pois tem de pagar um preço desorbitado para poder sustentar suas angústias.

A angústia é um temor. Mas não um simples temor. É um temr crônico, desmedido, irracional, desproporcional ao perigo real, imaginário, insidioso, que começa na infância e afeta setores mais ou menos amplos da personalidade. Ocorre que há angústias que a maioria dos indivíduos de uma cultura apresenta e outros indivíduos de outra cultura não, o que nos força a concluir que as angústias não são parte da "natureza humana". E aqui cabe comentar algo fudamental: o grau de consciência que o indivíduo tem de sua angústia não indica de forma alguma a magnitude de sua força ou importância. Ou seja, podemos estar angustiados sem saber ou mesmo estarmos ativos e combativos ante nossos problemas mas nos encontrarmos completamente inermes (desarmados) em um estado de angústia. Ademais, diz Horney:

"Outro elemento próprio da angústia é seu manifesto caráter irracional. Deixar-se governar por qualquer fator irracional lhes resulta mais insuportável a alguns indivíduos do que a outros, em especial àqueles que, no fundo, percebem o perigo secreto de serem presas de seus conflitos irracionais e que aprenderam a exercer sempre, de forma automática, um estrito domínio intelectual sobre si mesmos. Portanto, não tolerarão conscientemente nenhum elemento irracional; reação que, além de seus motivos idividuais, entranha um fator cultural, pois nossa cultura outorga máximo valor ao pensamento e às condutas racionais, estimando inferior a irracionalidade ou qualquer aspecto de irracionalidade enquanto tal".

A irracionalidade serve, portanto, de advertência, de alarme, de que algo não funciona bem, de que algo precisa mudar. Se o indivíduo recusa esse convite à mudança, os mecanismos de defesa da angústia se acentuarão, fazendo com que a pessoa se aferre com ainda mais energia à ideia de que está certa, de que é perfeita.

Para fugir da angústia nossa cultura oferece 4 (falsas) saídas: (1) racionalização, ou seja, inventar alguma explicação que tenha verniz de razoabilidade para que a pessoa possa eludir toda responsabilidade sobre sua angústia e atribuí-la ao mundo exterior, (2) negação, ou seja, por meio da aplicação da "força de vontade" a pessoa crê que eliminará a angústia; ocorre que as manifestações externas obviamente permanecerão (insônia, urinar com frequência, náuseas, sudorese noturna etc.) e o sofrimento não cessará; ou ainda a pessoa tentará "ser forte" e enfrentar sua angústia, porém a dinâmica essencial de sua personalidade permanecerá inalterada e a janela de oportunidade que o transtorno lhe dá será desperdiçado, (3) narcotização (álcool, drogas, precipitar-se em atividades sociais, afogar-se no trabalho, dormir em demasia, fazer sexo em demasia, comer em demasia), (4) fuga, ou seja, o indivíduo evita as situações, ideias e sentimentos que podem desencadear o estado de angústia, ou inibição, mas essa fuga surge de maneira automática, inconsciente, como nas inibições funcionais da histeria: cegueira, mutismo, paralisia de um membro, frigidez, impotência, incapacidade de concentração, de formação e expressão de opiniões, de relacionar-se com os outros etc.

Segundo Horney, os fatores que desencadeiam a maioria das angústia não têm a ver com os impulsos sexuais -- é um dos aspectos em que ela marcadamente diverge do Dr. Freud --, mas com impulsos hostis das mais diversas fontes, sociais e/ou culturais. Os impulsos hostis são "hostis" precisamente porque agem de maneira contrária aos interesses do sujeito. Daí a angústia que se segue a tais impulsos logicamente também ser hostil, ou seja, contrária aos interesses do sujeito.

E eis que aqui reside a raiz do problema. A hostilidade dos impulsos não seria um problema importante não fosse por uma tendência, ou reação, que surge na maioria dos neuróticos: a tendência em reprimir a hostilidade. E por que o sujeito reprime a hostilidade, ou seja, por que o suejeito sente que sustentá-la na consciência é algo intolerável? Porque lhe é intolerável a realidade de que pode amar ou necessitar de uma pessoa que ao mesmo tempo odeia. Observe que, ao reprimir a hostilidade, o sujeito carece da noção de que ele mesmo está sendo hostil. Parece que subtrair da consciência a hostilidade não significa que a hostilidade tenha sido abolida. Pelo contrário, ela se agita no indivíduo e se manifesta como um afeto muito intenso, muito explosivo, prestes a entrar em erupção.

Ao tomar consciência da animosidade que a hostilidade lhe despertou, o sujeito restringe sua expansão e explosão em duas etapas: (1) repressão da raiva (o que ocasionará novas reações de raiva), (2) projeção dos impulsos hostis ao mundo exterior (a repressão causa a projeção, ou seja, o sujeito finge que os impulsos destrutivos não surgem de seu interior, mas da outra pessoa ou de coisas exteriores; o sujeito se encontra inerme e portanto o perigo lhe parecerá muito maior do que é realmente).

Mas de onde surgem tais hostilidades? Qual é a estrutura geral das angústias? Examinando a história infantil de muitos neuróticos, Horney conclui que o fator nocivo básico é, sem dúvida, a falta de autêntico afeto e carinho, seja a permanente interferência com os desejos legítimos da criança, seja intrometendo-se em suas amizades, ridicularizando suas ideias, malogrando interesse por suas atividades artísticas, atléticas ou mecânicas. Em suma, em toda tentativa paternal de romper a vontade da criança. Evidentemente, os ciúmes também são um impulso hostil que poderá engendrar angústias futuras. De maneira geral, os pais neuróticos criam uma atmosfera espiritual nociva pelo fato de eles mesmos carecerem de relações afetivas e sexuais satisfatórias e, portanto, tendem a descarregar seu "amor" nos filhos. O amor aos filhos deixa de ser uma consequência da relação dos pais e passa a ser um objetivo, um alvo, de um ou ambos os pais. As expressões desse afeto sempre têm elevada carga emocional. A carga emocional desse "amor", que nada mais é do que um conjunto de críticas, reclamações e acusações, despertará na criança uma tendência a assumir toda a culpa e a sentir-se indigna de ser amada.

Ora, quais serão os sentimentos subjacentes a esta situação? "Tenho que reprimir minha hostilidade porque necessito de vocês", "Tenho que reprimir minha hostilidade porque tenho medo de vocês", "Tenho que reprimir minha hostilidade para não perder o amor de vocês", "Teho que reprimir minha hostilidade senão serei uma criança má" etc. Se a criança tiver a sorte de ser criada por avós e/ou tutores carinhosos é possível que cresça sem esperar encontrar maldade por toda parte. De qualquer forma, como dissemos acima quanto à questão da repressão/projeção, a criança vítima de pais "amorosos" desenvolverá uma evidente má-vontade contra sua família, mas se adaptará (reprimirá seus sentimentos) a ela, o que causará a projeção de sua angústia no mundo eterior, convencendo-se de que o mundo é perigoso e terrível.

Estabelece-se aqui a angústia básica que fundamenta a neurose de caráter, ou seja, aquela angústia que persistirá ao longo da vida do indivíduo e que constituirá o fundamento de todas suas relações adultas, mesmo na ausência de estímulos particulares em situações específicas. Tal angústia é muito pareceida, senão idêntica, em todos os neuróticos: um sentimento de ser pequeno e insignificante, de estar inerme, abandonado e em perigo, solto em um mundo disposto a abusar, enganar, agredir, humilhar, trair e invejar; um sentimento de ser ameaçado por tormentas, convulsões políticas, micróbios, acidentes, alimentos em decomposição, de estar condenado ao destino, de sentir-se isolado emocionalmente, de lançar toda responsabilidade sobre os demais, de ser protegido e amparado.

Na cultura contemporânea encontramos 4 formas de nos proteger e nos tranquilizarmos da angústia básica: (1) carinho ("Se você me ama então não me faça mal"), (2) submissão ("Se eu ceder nisso então não me farão mal"), (3) poder ("Se sou poderoso então ninguém poderá me fazer mal"), (4) isolamento ("Se eu me isolar então ninguém poderá me fazer mal"). Diz Horney:

"Se alguém requer o afeto de outro para assegurar-se contra sua angústia, quase nunca o notará conscientemente, pois ignora que se encontra dominado pela ansiedade e que, em consequência, busca de forma desesperada qualquer forma de carinho a fim de recobrar a segurança perdida. Unicamente sabe que se encontra ante uma pessoa que gosta, em quem confia, ou por quem sente atração. No entanto, o que percebe em qualidade de amor espontâneo pode não ser senão uma reação de gratidão por alguma amabilidade ou por uma emoção de esperança ou afeto que alguém ou algo lhe suscitou. A pessoa que de uma maneira explícita ou implícita infunde esperanças dessa natureza será automaticamente revestida de grande importância".

Muitas dessas relações transcorrem sob o disfarce do "amor", ou seja, com a convicção subjetiva do carinho, quando esse "amor" na verdade consiste apenas em apego a alguém para satisfazer suas próprias necessidades psíquicas. É como um sujeito que está se afogando e se aferra a um nadador para se salvar. Não há real consideração pela personalidade, pelas peculiaridades, pelos defeitos, necessidades, desejos ou pelo desenvolvimento do outro. Os neuróticos são incapazes de amar: sua dependência do outro é confundida com uma suposta disposição a amar. Quem sente verdadeiro carinho pelo próximo não duvida que ele, o próximo, também seja capaz de idêntico carinho. Do contrário, todo afeto será encarado com desconfiança, como se o outro obedecesse a interesses ocultos. A dependência afetiva promove na pessoa uma luta desesperada contra quem a ama. Essa luta o neurótico chama de "amor": a própria situação que configura sua necessidade afetiva a impede de satisfazê-la.

Horney se extende sobre os tipos principais de manifestação da necessidade neurótica de afeto: (1) compulsividade (carêcia de espontaneidade e flexibilidade; neste caso o carinho não é uma forma de obter energia ou prazer adicionais, mas há uma "urgência vital" em sua obtenção, uma submissão, uma dependência emocional; é como um sujeito morto de fome, ele aceita comer qualquer coisa imediatamente), (2) insaciabilidade (necesidade de sentir-se querido mediante mostras constantes; se não a obtém de fonte humana se manifesta na forma de "cobiça", ou seja, voracidade por compras, sexo, dinheiro, sucesso, prestígio, masturbação, gula), (3) desconfiança (quando o sujeito se sente tão profundamente e precocemente ferido que chega ao ponto de rejeitar conscientemente toda e qualquer forma de afeto). De qualquer forma, a despeito dos três tipos citados, há duas características marcantes dos neuróticos de afeito: (a) ciúmes (um ciúme simples é normal, mas o do neurótico é desproporcional, inexplicável; "Você só pode amar a mim e a ninguém mais", "Reconheço que você me trata com amabilidade, mas como muito provavelmete também trata os outros assim, então suas deferências para comigo não valem nada"), (b) amor incondicional (trata-se de uma forma extrema de desejo, algo impossível de satisfazer, um afã de ser amado a qualquer custo; não há reciprocidade, não há qualquer vantagem na relação para o outro, exige-se sarifícios como "prova de amor", seja dinheiro, renúncia a convicções pessoais, renúncia à integridade pessoal; o sujeito se transforma num vampiro, em alguém que quer o sacrifício alheio sem a menor compensação).

Como dizíamos, uma das saídas que o neurótico encontra caso não obtenha a atenção e o carinho que exige é isolar-se. "Se as pessoas não me querem então é melhor que eu fique sozinho, no meu canto, a salvo de toda e qualquer rejeição". Forma-se um círculo vicioso: as "rejeições" pelas quais passa retroalimentam a angústia, e assim por diante. Para contornar a rejeição e romper o isolamento, o neurótico pode apelar (1) ao suborno ("Eu te amo terrivelmente, então você deve abandonar tudo e me amar também"), (2) à piedade ("Você tem que me amar porque estou sofrendo"), (3) à justiça ("Fiz isso e aquilo por você, então o que você vai fazer por mim?!").

A sexualidade, como não poderia deixar de ser, desempenha importante papel no desenvlvimento das neuroses. Ao contrário de Freud, que conferia à sexualidade um caráter quase inamovível, Horney acredita que a diversidade cultural, a vitalidade e o próprio temperamento sexual do indivíduo têm certa influência aqui. Assim, alguns estabelecem com o próximo uma relação de tinte sexual mais ou menos intenso, mas sempre compulsivo, em outros a excitabilidade ou as ativiaddes sexuais se mantêm dentro dos limites normais do sentimento e do comportamento. No primeiro grupo verificamos que se sentem inseguras, desprovidas e descentradas quando não têm relações eróticas ou enquanto não veem a imediata possibilidade de entabulá-las. Desse mesmo grupo, mas mais inibidas, são as qe possuem escasas relações, mas criam entre si e os demais uma atmosfera de intenso erotismo, estejam ou não atraídos por eles. Por fim, cabe considerar aqui um terceiro grupo de pessoas, nas quais se observam ainda maiores inibições sexuais, mas que se excitam sexualmente com facilidade e se encontram dominadas pela compulsão de ver em todo homem (ou mulher) uma possível presa de seus desejos. Neste último subgrupo, a masturbação compulsiva pode substituir as relações sexuais, embora não seja obrigatório que deva ocorrer assim. De qualquer forma, a despeito do caso, a ausência pronunciada de discriminação ao escolher seus objetos amorosos é a característica que lhes é comum. Não apenas o amor lhes parece algo quimérico, mas na realidade são suscetíveis de chegar a sentirem-se intensamente perturbados -- até impotentes, se se trata de homem -- quando lhes é oferecido amor. As relações sexuais não são apenas meios de liberação da tensão sexual, mas o único modo de entabular conexões humanas. Em algumas pessoas a ausência de discriminação se reflete na busca ativa por relações com ambos sexos, enquanto outras cedem ter relações sexuais com o mesmo sexo ou com o sexo oposto. Assim como "nem tudo o que reluz é ouro", assim também "nem tudo o que parece é sexo", ou seja, grande parte do que se apresenta como sexualidade tem muito pouco a ver com ela, mas é apenas uma expressão de anseio por segurança.

Para assegurar-se contra a angústia, outro recurso é o afã de poder, fama e posses. Conquistar carinho significa obter segurança mediante um contato mais estreito com os outros, enquanto que o anseio de poder, fama e posses implica no fortalecimento através de certa perda de contato e de certo reafirmação da própria posição. O afã por poder serve, em primeiro lugar, de resguardo contra a indefesa, que é, como já vimos, um dos elementos básicos da angústia. Em segundo lugar, tal afã também funciona contra o risco de sentir-se, ou de ser, estimado insignificante.

Outro afã típico da personalidade neurótica é a competição. Ele se apresenta em três traços: (1) o neurótico sempre se valora a si mesmo em comparação aos demais, inclusive em circustâncias inadequadas, (2) ele não apenas tem de ter mais sucesso, mas também tem de ser único e excepcional e (3) a hostilidade lhe será característica ("Só eu sou belo, capaz e triunfante"). Assim que tal afã leva o neurótico a fugir de toda situação que apresente o perigo de competição, ou seja,fugir precisamente daquilo que intimamente mais lhe atrái. Essa fuga se explica por um impulso duplo: por um lado, ele quer estar acima de todos e, por outro, quer ser amado por todos. A solução desse conflito é a fuga. O neurótico se retrái, sua vida se empobrece. Qualquer sucesso, por mais tímido que seja, terá seu valor reduzido pelo neurótico.

A culpa é mais um recurso utilizado frequentemente pelos neuróticos. Dizem que seus sofrimentos se devem ao fato de não merecerem destino melhor. Em qualquer conflito, mesmo naqueles em que evidentemente foram mal-tratados, se inclinam a aceitar que o outro tem razão. Não é incomum que o neurótico se sinta mais cômodo quando algum revés o acometa, mesmo que seja um acidente ou evento fortuito. O fator capital do temor à reprovação é a profunda discrepância entre a fachada que o neurótico exibe como própria ao mundo e todas as tendências reprimidas que se encontram sob tal fachada. Apesar de sofrer pelas simulações que deve manter a todo custo, o neurótico precisa resguardá-las com todas as suas energias, pois representam as únicas defesas que o protegem contra sua ameaçante angústia. O neurótico tenta disfarçar toda sua "agressividade", ou seja, sua raiva, desejos de vingança, inveja, impulsos a humilhar etc. Em segundo lugar, exibe uma fachada de aparente energia: as autoacusações não apenas o protegem do medo e da rejeição, mas também incitam a reconfortar o sujeito, pois os demais se sentem obrigados a disuadir-lo de sua culpabilidade fingida. Em terceiro lugar, tentará refugiar-se na ignorância, na doença, no desamparo, em sua presunção de ser débil mental. Por fim, desenvolverá um sentimento de vítima, o qual representa uma dupla vantagem, pois ao mesmo tempo que rejeitará qualquer exigência de responsabilidade ainda por cima culpará os outros pelo que lhe acomete.

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Horney se refere à personalidade neurótica "de nosso tempo". Mas afinal o que há em "nosso tempo" que difere dos demais? Quais fatores estão presentes em "nosso tempo" que explicam o surgimento da personalidade neurótica? Horney menciona três grandes contradições da modernidade sob as quais se produz no indivíduo certa ambiguidade e incerteza a partir das quais o indivíduo normal, já previamente acometido do isolamento emocional típico de nossa existência, tenderá a desenvolver uma angústia (temor irracional, desproporcional) e, por conseguinte, comportamentos neuróticos e uma correspondente personalidade neurótica. São elas: (1) a pressão social pelo sucesso (financeiro, profissional, prestígio etc) vs. a pressão cristã pela mansidão, discrição, para dar "a outra face", (2) o estímulo a mais e novas necessidades vs. a frustraçao em não cumpri-las, (3) a pretensa liberdade individual vs. as restrições reais (é verdade que não escolhemos nossos pais, mas a sociedade atual se esquece de informar a seus cidadãos que tampouco escolhemos a imensa maioria dos fatores que nos rodeiam).

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De maneira muito resumida, podemos delinear alguns passos genéricos no desenvolvimento da personalidade neurótica:

1) A relação dos pais carece de intimidade, afeto e cariho mútuos. É uma relação postiça, fingida. A relação sexual é deficiente e igualmente artificial.

2) A ausência de amor genuíno no casal será compensada pela produção de um amor igualmente falso pelos filhos. O amor é falso porque se traduzirá não em um ambiente de liberdade e respeito, mas precisamente o contrário, num ambiente geralmente tolhedor, repressivo. Não é amor, mas mero controle. A ideia subjacente é que a vida exterior do filho seja uma criação grotesca e farsesca daquilo que deveria ser a verdadeira vida interior do casal.A vontade legítima da criança será podada, suas capacidades subvalorizadas, seu comportamento reprovado.

3) Está estabelecido o impulso hostil básico.

4) A criança com o tempo tenderá a reprimir os impulsos hostis porque é intolerável precisar de quem a odeia, e a projetá-los no mundo exterior, como se a hostilidade viesse de lá e não de dentro de si mesma.

5) O mundo, a sociedade, os "outros", se tornam um ambiente perigoso, um ambiente pelo qual se desenvolve um temor. Eis a angústia.

6) A angústia se desenvolverá numa personalidade neurótica no jovem e adulto, cujas características principais serão a dependência emcional, os sentimentos de inferioridade, as inibições, a agressividade e as disfunções sexuais.

7) Assim como os impulsos hostis foram reprimidos, o indivíduo reprimirá também sua angústia mediante alguns subterfúgios socialmente disponíveis: racionalização, negação, narcotização, fuga, busca desmedida por carinho, submissão, poder e isolamento.

Fonte: Karen Horney, La personalidad neurótica de nuestro tiempo, Paidós Editorial, Barcelona, Espanha, 1981.