31 de maio de 2010

Por que São Simeão é o "Novo Teólogo"?


Para entendermos por que São Simeão é chamado de “o Novo Teólogo”, tomemos como ponto de partida a sugestão do Arcebispo Basílio, segundo o qual o epíteto “talvez lhe tenha sido dado por seus adversários. O termo carregava uma nuance que soava pejorativa aos ouvidos bizantinos conservadores, mas que foi rapidamente apropriado pelos discípulos de Simeão com grande entusiasmo”. [1] Aproveitaremos esta sugestão para abordar a doutrina de São Simeão dialogicamente, ou seja, tanto do ponto de vista daqueles que a defendem como sendo a expressão da espiritualidade ortodoxa tradicional quanto daqueles que entendem que tal doutrina representa uma inovação. As evidências do primeiro ponto de vista serão retiradas das obras do Arcebispo Basílio (Krivcheine), [2] do Bispo [atual Metropolita] Hilarion (Alfeyev) [3] e do Hieromonge Alexander (Golitzin), [4], enquanto as evidências do segundo ponto de vista serão retiradas de três artigos do Pe. John Anthony McGuckin. [5]

Um dos pontos centrais da discussão é como a palavra “novo” deve ser entendida. A explicação mais comum é que o epíteto de São Simeão o alinharia com o Evangelista João e São Gregório de Nazianzo, que foram os únicos Padres que também receberam o título de “teólogo”. Sob este ponto de vista, São Simeão seria “novo” somente em termos temporais, ou seja, ele teria apenas “renovado” a teologia mística em sua própria vida e doutrina. O título não é usado para conotar novidade, mas precisamente o contrário: ele implica em uma renovação da teologia tradicional e da prática espiritual. Eu rotularia este uso do termo como “fideísta”, no qual todo santo deve ser considerado, por via de “regra de fé”, plenamente inserido nos padrões da tradição ortodoxa: sua fidelidade à Tradição é enfatizada acima de tudo, enquanto qualquer ecentricidade ou discrepância no seio da Tradição tem sua importância minimizada.

O Bispo Hilarion, por exemplo, afirma na Conclusão Geral de seu livro que o “principal objetivo dos capítulos anteriores foi demonstrar a unidade fundamental entre Simeão, o Novo Teólogo, e a tradição ortodoxa, qual seja, a Escritura e a doutrina dos Apóstolos e Padres da Igreja”. [6] O Hieromonge Alexander argumenta, mais ou menos na mesma linha, que as obras de São Simeão sobre deificação e paternidade espiritual apresentam nada menos do que “o testemunho pessoal dos antigos elementos da tradição patrística grega”. [7] Por fim, segundo o Arcebispo Basílio, “O termo ‘teólogo’ deve ser entendido aqui, à exemplo da maioria dos Padres gregos, não no sentido de um teólogo que elabora novos dogmas, mas de um teólogo que atingiu o estágio contemplativo. O adjetivo “Novo” significaria, portanto, um renovador da vida apostólica, a qual teria sido em grande parte esquecida, conforme o próprio Simeão afirmara”. [8]

Todavia, comparem estas avaliações com a leitura crítica e historicista do Pe. John Anthony McGuckin, segundo o qual São Simeão era “um dos místicos menos representativos da tradição cristã oriental”. [9] McGuckin critica aqueles que “tentam sempre inserir o estudo de um autor bizantino do século XI em qualquer lugar (aparentemente), menos no século XI”. [10] Vejam que, aqui, São Simeão é “novo” em um sentido totalmente distinto daquele que verificamos acima: ele seria um inovador, alguém que fez uso da primazia de pai espiritual e de experiências místicas sobretudo para impor sua autoridade sobre monges desconfiados. Não é difícil imaginarmos como esta suposta novidade teria levantado suspeitas em seus contemporâneos, levando-os a atribuir-lhe a pecha de “Novo Teólogo” de maneira pejorativa, senão irônica.

Surge aqui uma importante questão metodológica: Será que nós, ortodoxos, deveríamos aceitar acriticamente o retrato “fideísta” dos vários santos, conforme nos são apresentados na hagiografia e nos hinos da Igreja? Ou será que deveríamos levar em conta as críticas “desconstrutivas” contra a literatura religiosa? O Pe. McGuckin entende que ambas as posturas são compatíveis: “Tenho notado que, em vários debates de seminários, esta questão da contextualização histórica das experiências místicas é vista como uma tentativa de reduzi-las a fatores que a precederam ou invocaram. Tal reducionismo não é de meu interesse, nem é corolário para meus arguimentos, exceto quando se trata de interpretarem grosseiramente a lógica do meu discurso”. Vamos então aplicar estas duas posturas tão diferentes à questão do relato de São Simeão acerca da visão da Luz divina, bem como às suas questões corolárias, ou seja, à primazia da paternidade espiritual e à centralidade da experiência espiritual pessoal

No capítulo The Vision of Light, [12] o Arcebispo Basílio aceita o valor de face dos diversos relatos de São Simeão, e se limita a combiná-los e a lhes anexar alguns comentários. O Hieromonge Alexander faz algo semelhante, e chega ao ponto de dedicar um capítulo do livro a The Glory in the Tradition [A Glória na Tradição], no qual procura fundamentar os relatos de São Simeão sobre a experiência da glória divina no contexto do Velho e do Novo Testamento e nas obras dos Padres. Ele conclui afirmando que “Glória e Luz, e a possibilidade de experienciar estas coisas na graça do Espírito Santo, não são novidades na literatura patrística grega. Simeão tem toda razão quando afirma que ele não é um inovador”. [13] O Bispo Hilarion vai ainda um pouco mais longe, e sustenta que a visão da Luz divina era uma experiência comum aos santos monges desde o princípio do monasticismo: “Do século IV em diante, as fontes monásticas fornecem muitos exemplos desse tipo de coisa [a visão da Luz], e é evidente que a visão da Luz era a experiência comum de muitas gerações de monges e ascetas”. [14] O Bispo Hilarion conclui: “Podemos dizer que a doutrina da visão da Luz de Simeão definitivamente possui sua pré-história na literatura patrística, particularmente nas obras de Evágrio, Macário, Máximo e Isaque, o Sírio”. [15] Segundo o Bispo Hilarion, a singularidade de São Simeão no que tange as obras sobre a visão da Luz divina reside somente em sua natureza autobiográfica e na ênfase dada à importância dessa visão.

Assim sendo, verificamos que, para os três autores citados, as obras de São Simeão em geral e sua ênfase na visão da Luz divina em particular estão plenamente fundadas na tradição patrística. A novidade de São Simeão reside apenas nos relatos de caráter personalista dessa visão e na centralidade que ele atribui a essa experiência. Nota-se, porém, certa postura defensiva em suas descrições: se São Simeão é um teólogo tão tradicional quanto afirmam, por que tanta insistência no assunto? É neste ponto que a obra do Pe. John Anthony McGuckin nos é muito útil.

A intenção do Pe. McGuckin não é duvidar ou denegrir a realidade da experiência e da doutrina de São Simeão, mas encontrar a vida autêntica por trás de sua Vita mediante a correlação entre a carreira de São Simeão e os distúrbios politicos da corte bizantina da época, criando assim uma contextualização histórica dos relatos das visões espirituais de São Simeão. No que tange os autores supra citados, o Pe. McGuckin argumenta contra a tendência deles de inserir São Simeão em uma corrente dourada que começaria com os Padres do Deserto e culminaria na controvérsia hesicasta do século XIV. A hermenêutica correta para a interpretação de São Simeão, segundo o Pe. McGuckin, “deve inelutavelmente começar em seu próprio texto, e aí já fica claro de imediato que a maior parte da literatura que o incluenciou (à parte a reprodução “padrão” da literatura monástica ascética) é uma rede difusa de biblicismos que substanciam suas obras, e que dão testemunho de que uma profunda consciência bíblica poderia em breve ser introduzida por meio da prática monástica”. [16] Em particular, os paradigmas bíblicos aludidos pelo Pe. McGuckin são os que ele chama de “paradigma do Sinai”, “paradigma(s) paulino(s)” e o “arquétipo apocalíptico-visionário”. [17] Os principais interesses destes paradigmas são “(a) uma forte reivindicação por autoridade e (b) uma necessidade explícita em estabelecer as bases para um programa radical de reformas”. [18] Segundo o Pe. McGuckin, o interesse de São Simeão em relatar suas experiências não é tanto expor uma doutrina da Luz divina, mas estabelecer sua própria autoridade sobre os monges do Mosteiro de São Mamas.

Ademais, o Pe. McGuckin sustenta que São Simeão realmente introduziu contribuições originais e significativas à vida monástica bizantina, sobretudo no que tange “seu desejo em ver o monasticismo ascender à categoria de atividade extática e visionária” e “no seu desejo de propagar a forma de energia psíquica e emotiva de seu mestre na vida spiritual afetiva”; e, por fim, “em sua tentativa de redefinir a estrutura de poder dos fundamentos aristocráticos”. [19]

Como devemos analisar estas leituras tão radicalmente distintas da “novicidade” da vida e da obra de São Simeão? Parece-me que a causa de tão divergentes leituras encontra-se nas distintas metodologias e pressuposições adotadas pelos dois lados. O Arcebispo Basílio, o Bispo Hilarion e o Hieromonge Alexander partem da conclusão de que a espiritualidade monástica da Igreja Ortodoxa forma uma tradição ininterrupta desde os Padres do Deserto dos séculos IV e V, continuando ao longo do período bizantino e culminando na expressão doutrinal da controvérsia hesicasta do século XIV, e que continua ininterrupta até os dias de hoje. Assim, eles inserem São Simeão precisamente dentro desta tradição contínua e ininterrupra, conferindo-lhe, no máximo, certa mudança de ênfase para a experienciação pessoal da Luz divina. As motivações desses autores seriam tão confessionais e apologéticas quanto históricas: seu interesse parece estar focado não tanto em São Simeão, mas no extraordinário exemplo pessoal que São Simeão representa no contexto da tradição viva como um todo. Por outro lado, o Pe. McGuckin parece dispensar o que ele chama de “hermenêutica global sintetizante” [20], inserindo firmemente São Simeão em seu contexto histórico. O Pe. McGuckin procura não extrair uma doutrina da Luz divina nos relatos de São Simeão, mas procura entender os motivos do santo ao descrever essas visões de uma maneira específica a uma audiência específica em uma época específica. Ademais, ele lê a Vita de Nicetas Stethatos exatamente com o objetivo de identificar “os motivos reais de Simeão por trás dos motivos que lhe foram atribuídos na geração seguinte”. [21]

Na minha opinião, o produto da abordagem do Pe. McGuckin é, na melhor das hipóteses, dúbio. Embora ele insista que não é sua intenção duvidar da autenticidade da experiência espiritual de São Simeão, sua abordagem quase sempre projeta no santo os motivos os menos lisonjeiros. Alguns exemplos ilustram bem o que quero dizer. O Pe. McGuckin diz que no “argumento teológico central de Simeão”, a saber, que apenas os místicos iniciados têm o direito de teologizar, a questão principal é a da autoridade”. [22] Para o Pe. McGuckin, tal apelo “representa nada mais do que um apelo de cunho antecipatório, com o objetivo de arbitrar-lhe autoridade individual dentro e acima daquela sociedade”. [23] As exortações disciplinares das Catequeses são, para o Pe. McGuckin, “técnicas de controle dirigidas aos grupos do mosteiro que não se encontravam sob controle direto de seus hegoumenos e que São Simeão pressentia poderiam lhe representar uma ameaça”. [24] Embora o Pe. McGuckin insista na idéia de que não deseja negar a autenticidade espiritual de São Simeão, os motivos que ele atribui ao santo são de tal ordem que acabam por minar sua própria santidade.

Comecei este artigo perguntando por que São Simeão é chamado de “o Novo Teólogo”. Acredito que, à exemplo do Arcebispo Basílio, o epíteto possa ser visto de duas maneiras. Aqueles que falam de dentro da tradição ortodoxa, como o próprio Arcebispo Basílio, o Bispo Hilarion e o Hieromonge Alexander, tendem a explicar o título apontando para a renovação da vida espiritual empreendida por São Simeão, explicando assim sua insistência aparentemente nova na importância da visão da Luz divina (além da insistência corolária na obediência a um pai espiritual) como algo plenamente inserido na tradição. Mas o título “Novo Teólogo” também pode ser encarado como sendo uma genuína novidade. Verificamos que tal ponto de vista é defendido em três artigos do Pe. John Anthony McGuckin, o qual, apartando São Simeão de uma “hermenêutica global sintetizante” e inserindo-o no contexto imediato do século XI, afirma que São Simeão não era um representante do monasticismo bizantino e que, ademais, São Simeão teria defendido um programa de reformas apelando às suas próprias experiências místicas.

Estas avaliações tão diferentes a respeito da “novicidade” de São Simeão vêm de duas perspectivas também radicalmente diferentes. Aqueles que partem da premissa de que há uma “corrente dourada” e contínua de tradição monástica tendem a enxergar São Simeão como um dos mais novos elos dessa corrente. Aqueles que encaram São Simeão exclusivamente a partir de seu contexto histórico tendem a analisar tal novicidade comparando-a com a Igreja contemporânea de São Simeão, insistindo assim que o santo estaria desprovido de antecedentes. De minha parte, afirmo que a primeira abordagem -- aquela que enfatiza a tradicionalidade de São Simeão -- provavelmente corresponde à abordagem empregada por seus discípulos, enquanto aqueles que fazem uso irônico do título “Novo Teólogo” enxergam São Simeão de maneira semelhante à do Pe. McGuckin.

[1] In the Light of Christ (Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 1986), 62.

[2] Ibid.

[3] St Symeon the New Theologian and Orthodox Tradition(Oxford: Oxford University Press, 2000).

[4] On the Mystical Life: The Ethical Discourses, Vol. 3: Life, Times and Theology (Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 1997).

[5] “Symeon the New Theologian (d. 1022) and Byzantine Monasticism,” in A. Bryer and M. Cunningham Mount Athos and Byzantine Monasticism (London: Variorum, 1996); “St. Symeon the New Theologian (969-1022): Byzantine Spiritual Renewal in Search of a Precedent” in R. N. Swanson, The Church Retrospective (Ecclesiastical History Society, 1997); “The Luminous Vision in Eleventh-Century Byzantium: Interpreting the Biblical and Theological Paradigms of St. Symeon the New Theologian” in M. Mullet and A. Kirby, Work and Worship at the Theotokos Evergetis 1050-1200, (Belfast: Byzantine Texts and Translations, 27, 1997).

[6] Alfeyev, 271

[7] Golitizin, 11.

[8] Krivocheine, 62-63, grifos meus.

[9] McGuckin, “Luminous Vision,” 97, grifos no original.

[10] Ibid., 97, grifos no original.

[12] Krivocheine, 215-238.

[13] Golitzin, 105.

[14] Alfeyev, 226, grifos meus.

[15] Ibid., 241, grifos meus.

[16] McGuckin, “Luminous Vision,” 97-98.

[17] Ibid., 98-101.

[18] Ibid., 101-102

[19] McGuckin, “Byzantine Monasticism,” 34.

[20] McGuckin, “Luminous Vision,” 96.

[21] McGuckin, “Byzantine Monasticism,” 18.

[22] Ibid., 30

[23] Ibid., 30

Fonte: Ora et Labora (partes 1, 2, 3 e 4).