1 de maio de 2010

Alguns pensamentos de Pascal


"Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas. Não sei o que é o meu corpo, nem o que são os meus sentidos, nem o que é a minha alma, e até esta parte, parte do meu ser que pensa o que eu digo, refletindo sobre tudo sobre si própria, não se conhece melhor do que o resto. Vejo-me encerrado nestes medonhos espaços do universo e me sinto ligado a um canto da vasta extensão, sem saber porque fui colocado aqui e não em outra parte, nem porque o pouco tempo que me é dado para viver me foi conferido neste período de preferência a outro de toda a eternidade que me precedeu e de toda a que me segue.

"Só vejo o infinito em toda parte, encerrando-me como um átomo e como uma sombra que dura apenas um instante que não volta.

"Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar.

"Assim como não sei de onde venho, também não sei para onde vou. Sei, apenas, que, ao sair deste mundo, cairei para sempre no nada ou nas mãos de um Deus irritado, sem saber em qual dessas duas situações deverei ficar eternamente. Eis a minha condição, cheia de miséria, de fraqueza, de obscuridade. Concluo, de tudo isso, que devo passar todos os dias da minha vida sem pensar em descobrir o que me deve acontecer. Talvez pudesse encontrar algum esclarecimento nas minhas dúvidas, mas não quero dar-me a esse trabalho, nem dar um passo nesse sentido. Tratando com desprezo os que com isso se preocupam, quero experimentar esse grande acontecimento sem previdência e sem temor, deixando-me passivamente conduzir à morte, na incerteza da eternidade da minha condição futura".

Quem desejaria ter como amigo um homem que assim falasse? Quem o escolheria para lhe comunicar as suas intimidades? Quem recorreria a ele em suas aflições? Finalmente, a que utilidade, na vida, se poderia destiná-lo?

O mesmo homem que passa dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido um cargo, ou por alguma ofensa imaginária à sua honra, sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova. É uma coisa monstruosa ver, num mesmo coração e ao mesmo tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha insensibilidade pelas maiores.

Vendo a cegueira e a miséria do homem, observando todo o universo mudo, e o homem sem luz, abandonado a si mesmo, e como que perdido neste recanto do universo, sem saber quem o pôs aqui, o que veio aqui fazer, o que se tornará ao morrer, incapaz de qualquer conhecimento, eu principio a ter medo como um homem que tivesse sido levado dormindo para uma ilha deserta e medonha e que despertasse sem saber onde está e sem meios de escapar. E, sobre isso, admiro como não se entra em desespero por tão miserável estado. Vejo outras pessoas perto de mim com semelhante natureza: pergunto-lhes se são mais instruídas do que eu e me dizem que não: e, sobre isso, esses miseráveis perdidos, tendo olhado ao redor e visto alguns objetos agradáveis, a eles se entregaram e se ligaram.

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Conhecemos, pois, a existência e a natureza do finito, porque somos finitos e extensos como ele. Conhecemos a existência do infinito e ignoramos sua natureza, porque ele tem extensão como nós, mas não tem limites como nós. Não conhecemos, porém, nem a existência nem a natureza de Deus, porque ele não tem extensão nem limites.

Mas, pela fé, conhecemos sua existência; pela glória, conheceremos sua natureza. Ora, já mostrei que não se pode conhecer bem a existência de uma coisa sem conhecer a sua natureza.

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As outras religiões, como as pagãs, são mais populares, porque se exteriorizam: não são, porém, para as pessoas hábeis. Uma religião puramente intelectual seria mais proporcionada aos hábeis, mas não serviria ao povo. Só a religião cristã é proporcionada a todos, sendo composta de exterior e de interior. Ela eleva o povo ao interior e baixa os soberbos ao exterior, não sendo perfeita sem os dois, pois é preciso que o povo entenda o espírito da letra e que os hábeis submetam o seu espírito à letra (praticando o que há de exterior).

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A única religião contrária à natureza no estado em que ela se acha, que combate todos os nossos prazeres e que, à primeira vista, parece contrária ao senso comum, é a única que sempre existiu. [...] Imaginam [os ímpios] que ela [a religião cristã] consiste simplesmente na adoração de um Deus considerado como grande e poderoso e eterno: o que é propriamente o deísmo, quase tão afastado da religião cristã quanto o ateísmo, que lhe é totalmente contrário. E daí concluem que Deus não se manifesta aos homnes com toda a evidência que lhe seria possível.

Mas, que daí concluam o que quiserem contra o deísmo, nada concluirão contra a religião cristã, que consiste propriamente no mistério do Redentor, o qual, unindo em si as duas naturezas, a divina e a humana, retirou os homens da corrupção do pecado, para reconciliá-los com Deus em sua pessoa divina.

Ela ensina, pois, a todos os homens, estas duas verdades: que há um Deus de que os homens são capazes, e que há uma corrupção na natureza que os torna indignos dele. Importa, igualmente, que os homens conheçam esses dois pontos; e é igualmente perigoso que o homem conheça Deus sem conhecer sua miséria, e conheça sua miséria sem conhecer o Redentor que pode curá-lo dela.

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"É incrível que Deus se unisse a nós". Essa consideração só é tirada em vista da nossa baixeza. Mas, se a tendes bem sincera, seguia-a tão longe quanto eu, e reconheci que somos de fato tão baixos que somos por nós mesmos incapazes de conhecer se a sua misericórdia pode tornar-nos capazes dele. Com efeito, eu bem desejaria saber de onde esse animal, que se reconhece tão fraco, tem o direito de medir a misericórdia de Deus e de pôr-lhe os limites que a fantasia lhe sugere. Ele sabe tão pouco o que é Deus que não sabe o que ele próprio é: e, todo perturbado pela visão do seu próprio estado, ousa dizer que Deus não pode torná-lo capaz de sua comunicação! Mas, eu desejaria perguntar-lhe se Deus lhe pede outra coisa além de que o ame conhecendo-o, e por que crê que Deus não pode tornar-se cognocível e amável por ele, de vez que é naturalmente capaz de amor e de conhecimento. Sem dúvida, conhece ao menos que existe e que ama alguma coisa. Portanto, se vê alguma coisa nas trevas em que se encontra, e se acha algum motivo de amor entre as coisas da terra, por que, se Deus lhe dá alguns raios de sua essência, não será capaz de o conhecer e de o amar da maneira que lhe aprouver comunicar-se conosco? Há, pois, sem dúvida, uma presunção insuportável nessas espécies de raciocínios, embora pareceçam fundados sobre uma humildade aparente, que não é nem sincera, nem razoável, se não nos faz confessar que, não sabendo por nós mesmos o que somos, só podemos aprendê-lo por Deus.

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Admiro a ousadia com que essas pessoas empreendem falar de Deus dirigindo os seus discursos aos ímpios. O seu primeiro capítulo é provar a divindade pelas obras da natureza.

Eu não me admiraria de sua empresa se dirigissem os seus discursos aos fiéis; pois é certo que os que têm a fé viva no coração vêem incontinente que tudo o que é não é outra coisa senão a obra do Deus que adoram. Mas, para aqueles em que essa luz está extinta, e nos quais se tem o desígnio de a fazer reviver, para essas pessoas destituídas de fé e de graça, as quais, procurando com toda a sua luz tudo o que vêem na natureza que as possa conduzir a esse conhecimento, só acham obscuridade e trevas, dizer-lhes que não têm senão que ver a menor das coisas que as cercam e que aí verão Deus a descoberto, e dar-lhes, por toda prova desse grande e importante assunto, o curso da lua ou dos planetas, e pretender ter acabado a prova com um tal discurso, é dar-lhes motivo de crer que as provas da nossa religião são bem fracas; e eu vejo pela experiência que nada é mais próprio para lhes causar o desprezo dela.

Não é dessa maneira que a Escritura, que conhece melhor as coisas que são de Deus, fala disso. Ela diz, ao contrário, que Deus é um Deus oculto; e que, desde a corrupção da natureza, ele os deixou (os homens) numa cegueira de que só podem sair por Jesus Cristo, fora do qual toda comunicação com Deus está afastada: Nemo novit patrem nisi filius, et cui voluerit filius revelare (Mateus, XI, 27). [Ninguém conhece o pai a não ser o filho, e aquele a quem o filho quiser revelá-lo].

É o que a Escritura nos marca, quando nos diz em tantos lugares que os que procuram Deus o acham; não é dessa luz que se fala como do dia em pleno meio-dia; não se diz que os que procuram o dia em pleno meio-dia ou água no mar os encontrarão; e assim é preciso bem que a evidência de Deus não seja tal na natureza. Também ela nos diz em outra parte: Vere tu es Deus absconditus. [Na verdade, tu és Deus absconso].

E eis porque não empreenderei provar aqui, com razões naturais, ou a existência de Deus ou a Trindade, ou a imortalidade da alma, nem nenhuma das coisas dessa natureza; não somente porque não me sentiria bastante forte para achar na natureza com que convencer ateus endurecidos, mas ainda porque esse conhecimento, sem Jesus Cristo, é inútil e estéril. Quando um homem fosse persuadido de que as proporções dos números são verdades imateriais, eternas e dependentes de uma primeira verdade em que elas subsistem e que se chama Deus, eu não o acharia muito avançado para a sua salvação.

As provas metafísicas de Deus são tão afastadas do raciocínio dos homens e tão implícitas, que pesam pouco; e, quando isso servisse a alguns, seria apenas durante o instante que vêem essa demonstração; mas, uma hora depois, temem estar enganados. Quod curiositate cognoverint superbia amiserunt. [Os que conhecerem por curiosidade esquecerão por soberba].

Mas, para conhecer Deus, é preciso conhecer ao mesmo tempo a sua miséria, a sua indignidade, e a necessidade que se tem de um mediador para se aproximar de Deus e para se unir a ele. É preciso não separar esses conhecimentos porque, uma vez separados, são não só inúteis, mas nocivos. O conhecimento de Deus sem o da nossa miséria faz o orgulho. O conhecimento da nossa miséria sem o de Jesus Cristo faz o desespero. Mas, o conhecimento de Jesus Cristo nos isenta não só do orgulho como do desespero, porque encontramos nele Deus, a nossa miséria e a via única de a reparar.

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Quando São Pedro e os apóstolos (Atos, XV) deliberam abolir a circuncisão, em que se tratava de agir contra a lei de Deus, eles não consultam os profetas, mas simplesmente a recepção do Santo Espírito na pessoa dos incircuncisos. Julgam mais certo que Deus aprove os que enche com seu Espírito do que necessário observar a lei; sabiam que o fim da lei não era senão o Santo Espírito, e que assim, uma vez que o tinham sem cirsuncisão, esta não era necessária.

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As condições mais fáceis de viver segundo o mundo são as mais difíceis de viver segundo Deus; e, ao contrário, nada é tão difícil segundo o mundo como a vida religiosa; nada é mais fácil do que passá-la segundo Deus: nada é mais fácil do que ter um grande cargo e grandes bens segundo o mundo; nada é mais difícil do que nele viver segundo Deus, e sem dele tomar parte e gosto.

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A natureza tem perfeições, para mostrar que é a imagem de Deus; e defeitos, para mostrar que é apenas a sua imagem.

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Se nada fosse preciso fazer para o certo, nada se deveria fazer pela religião: pois ela não é certa. Mas, quantas coisas se fazem pelo incerto! as viagens por mar, as batalhas! Digo, pois, que nada absolutamente seria preciso fazer, pois nada é certo; e que há mais certeza na religião do que na esperança de vermos o dia de amanhã: pois não é certo que vejamos o amanhã; mas, é certamente possível que não o vejamos. Não se pode dizer o mesmo da religião. Não é certo que ela o seja; mas, quem ousará dizer que é certamente possível que não o seja? Ora, quando se trabalha para amanhã e pelo incerto, age-se com razão.

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As invenções dos homens vão avançando de século em século. A bondade e a malícia do mundo em geral, também.

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Conhecemo-nos tão pouco que muitos pensam morrer quando estão passando bem, e muitos parecem passar bem quando estão próximos da morte, não sentindo a febre próxima ou o abcesso prestes a se formar.

Quando considero a pequena duração de minha vida absorvida na eternidade precedente e seguinte, memoria hospitis unius diei praetereuntis [na memória do hóspede do dia precedente], o pequeno espaço que encho, e mesmo que vejo abismado na infinita imensidade dos espaços que ignoro, e que tu ignoras, espanto-me e assombro-me ao ver aqui antes que lá, pois não havia razão por que aqui antes lá, por que agora antes que então! quem me pôs aqui? Por ordem e conduta de quem este lugar e este tempo me foram destinados?

Por que meu conhecimento é limitado? meu talhe? minha duração em cem anos em lugar de mil? Que razão teve a natureza de me dar tal, e de escolher este número em lugar de outro na infinidade, dos quais não há mais razão de escolher um do que o outro, nada tentando um mais do que o outro?

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Não nos contentamos com a vida que temos em nós e no nosso próprio ser: queremos na idéia dos outros uma vida imaginária, e nos esforçamos por assim parecer. Trabalhamos incessantemente por embelezar e conservar esse ser imaginário, e negligenciamos o verdadeiro; e, se temos ou a tranquilidade, ou a generosidade, ou a fidelidade, apressamo-nos em fazê-lo saber, a fim de ligar essas virtudes a esse ser de imaginação: nós as destacaríamos antes de nós para a juntá-las a ele, seríamos de bom grado poltrões para adquirir a reputação de ser corajosos. Grande marca do nada do nossos próprio ser, não estar satisfeito com um sem o outro, e renunciar muitas vezes a um pelo outro! Pois, quem não morresse para conservar sua honra, esse seria infame.

A doçura da glória é tão grande que, a alguma coisa que se ligue, mesmo à morte, é amada.

A vaidade está de tal forma arraigada no coração do homem, que um soldado, um criado, um cozinheiro, um malandro, se gaba e quer ter seus admiradores; e os filósofos também o querem ter escrito bem, e os que lêem querem ter a glória de o ter lido; e eu, que escrevo isto, talvez tenha essa vontade, e talvez os que me lerem... (também a tenham).

Somos tão presunçosos que desejaríamos ser conhecidos de toda a terra, e até das pessoas que vierem quando nela não estivermos mais; e somos tão vãos que a estima de cinco ou seis pessoas que nos cercam nos diverte e nos contenta.

Curiosidade não é senão vaidade. O mais das vezes, não se quer saber senão para falar disso. De outro modo, não se viajaria por mar para nunca dizer nada a respeito, e só pelo prazer de ver, sem esperança de nunca comunicá-lo.

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Não ficamos nunca no tempo presente. Antecipamos o futuro como demasiado lento para vir, como para apressar o curso; recordamo-nos o passado, para pará-lo, como demasiado pronto: tão imprudentes que erramos nos tempos que não são nossos e não pensamos só no que nos pertence; e tão vãos que sonhamos com os que não são mais nada e evitamos sem reflexão o único que subsiste. É que o presente de ordinário nos fere. Ocultamo-lo à nossa vista, porque nos aflige; e, se nos é agradável, arrependemo-nos de vê-lo escapar. Tratamos de sustentá-lo pelo futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão em nosso poder para um tempo que não temos nenhuma certeza de alcançar.

Que cada um examine o seu pensamento, e o achará sempre ocupado com o passado e o futuro. Quase não pensamos no presente: e, quando pensamos, é só para tirar dele a luz para dispor do futuro. O presente nunca é o nosso fim. Assim, não vivemos nunca, mas esperamos viver; e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que não o sejamos nunca, (se não aspiramos a outra beatitude além da que se pode gozar nesta vida).

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As ciências têm duas extremidades que se tocam: a primeira é a pura ignorância natural em que se acham todos os homens ao nascer; a outra extremidade é aquela a que chegam as grandes almas que, tendo percorrido tudo o que os homens podem saber, acham que não sabem nada e se tornam a encontrar nessa mesma ignorância de onde partiram. Mas, é uma ignorância sábia que se conhece. Aqueles dentre os que saíram da ignorância natural e não puderam chegar à outra têm alguma tintura dessa ciência suficiente, e fazem-se de entendidos. Esses perturbam o mundo e julgam mais mal de tudo que os outros. O povo e os hábeis compõem, de ordinário, o trem do mundo: os outros o desprezam e são desprezados.

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Encarregam os homens, desde a infância, do cuidado de sua honra, do seu bem, e ainda do bem e da honra dos seus amigos. Atormentam-nos com negócios, com a aprendizagem das línguas e das ciências, e fazem-nos entender que não poderiam ser felizes sem a sua saúde, a sua honra, a sua fortuna e a dos seus amigos estarem em bom estado, e que uma só coisa que falte os tornaria infelizes. Assim, dão-lhes cargos e negócios que os fazem labutar desde o despontar do dia. Eis, direis, uma estranha maneira de torná-los felizes; que se poderia fazer de melhor para torná-los felizes; que se poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? Como! que se poderia fazer? Bastaria tirar-lhes todas as suas preocupações: e, então , eles se veriam, pensariam no que são, de onde vêm, para onde vão; e, assim, não se pode ocupá-los e desviá-los tanto; e eis porque, depois de lhes terem preparado tantos negócios, se eles têm algum tempo de folga, aconselham-nos a empregá-lo exclusivamente em diversões, passatempos e ocupações.

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A dignidade real não é bastante grande por si mesma para tornar feliz aquele que a possui pela simples visão do que é? Será preciso ainda diverti-lo desse pensamento, como as pessoas comuns? Bem vejo que é tornar um homem feliz desviá-lo da visão de suas misérias domésticas, para encher todo o seu pensamento do cuidado de dançar bem. Mas, será assim também com um rei, e será ele mais feliz ligando-se a esses vãos divertimentos do que à visão de sua grandeza?

Que objeto mais satisfatório se poderia dar ao seu espírito? Não seria, então, prejudicar-lhe a alegria ocupar sua alma com o pensar em ajustar os passos à cadência de uma ária, ou em colocar destramente uma bola, em lugar de deixá-lo gozar em repouso da contemplação da glória majestosa que o cerca? Tire-se a prova disso; deixe-se um rei sozinho, sem nenhuma satisfação dos sentidos, sem nenhum cuidado no espírito, sem companhia, pensar em si inteiramente à vontade; e se verá que um rei sem divertimento é um homem cheio de misérias. Tanto se evita isso cuidadosamente que nunca deixa de haver junto da pessoa do rei um grande número de pessoas que velam por fazer suceder o divertimento aos seus negócios, e que observam todo o tempo do seu lazer para lhe fornecer prazeres e jogos, de sorte que não haja vazio; isto é, fica cercado de pessoas que têm um cuidado maravilhoso de zelar para que o rei não fique só e em estado de pensar em si, sabendo bem que ele será miserável, por mais rei que seja, se o pensar.

Daí resulta que os homens gostem tanto do barulho e do reboliço; daí resulta que a prisão seja um suplício tão horrível; daí resulta que o prazer da solidão seja uma coisa incompreensível.

Nada é tão insuportável ao homem como estar em pleno repouso, sem paixão, sem ocupação, sem diversão, sem aplicação. Ele sente, então, o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua dependência, a sua impotência, o seu vazio. Incontinente, sairá do fundo da sua alma o aborrecimento, a melancolia, a tristeza, a aflição, a raiva, o desespero.

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Como se explica que um coxo não nos irrite, e que um espírito coxo nos irrite? É que um coxo reconhece que andamos direito, e um espírito coxo diz que somos nós que coxeamos; sem isso, teríamos piedade dele, e não raiva.

Epiteto pergunta, com muito mais força, por que não nos zangamos quando nos dizem que somos malucos, e nos zangamos quando nos dizem que raciocinamos mal ou que escolhemos mal. O motivo é que estamos certos de não sermos malucos, e de não sermos coxos; mas, não estamos tão certos de escolher o verdadeiro. De sorte que, só tendo certeza porque vemos com toda a evidência, quando um outro vê com toda a evidência o contrário, isso nos deixa vacilantes e nos assombra, e ainda mais quando mil outros zombam da nossa escolha, pois é preciso preferir as nossas luzes às de tantos outros, o que é arriscado e difícil. Nunca há essa contradição nos sentidos em relação a um coxo.

Blaise Pascal (1623-1662), Pensamentos, Edipro, Bauru, 1996.