Mais importa obedecer a Deus do que aos
homens. (Atos 5:29)
Indaguei o que era a iniquidade, e não
achei substância, mas a perversão de uma vontade que se afasta da suprema
substância, de ti, meu Deus, e se inclina para as coisas baixas. (Santo Agostinho, Confissões 7, 16)
O mal refere-se a um mau uso do mundo
pela vontade, não a um cosmo mau. (G.K.
Chesterton)
Lei é razão sem paixão. (Aristóteles, Política 1287a32)
Tudo sugere que a vida orgânica será um
episódio muito curto e sem importância na história do universo. Muitas vezes,
ouvimos pessoas se consolarem de seus problemas individuais dizendo: “Será tudo
a mesma coisa daqui a 100 anos”. Mas você pode fazer o mesmo com nossos
problemas como espécie. O que quer que façamos, tudo será igual daqui a algumas
centenas de milhões de anos. A vida orgânica é apenas um relâmpago na história
cósmica. No longo prazo, ela não dará em nada.
(C.S. Lewis, De futilitate)
Se algum poder é o sumo bem maior, ele
deve ser perfeitíssimo. Ora, o poder humano é imperfeitíssimo, porque se baseia
nas vontades e nas opiniões humanas, que são de máxima inconstância. E quanto
maior for o poder considerado, tanto mais depende ele de muitos, o que também
concorre para a sua fraqueza, porque, quando uma coisa depende de muitos, também
pode ser destruída de muitas maneiras. Logo, o sumo bem do homem não está no
poder mundano. (Tomás de Aquino, SG 3, 31)
O fim da lei divina é levar os homens à
união com Deus. [...] As leis humanas, porém, se ordenam a determinados bens
terrenos. (Tomás de Aquino, ST II-II, 140,
1)
Se a contemplação do ser é o fim último do
homem, qual a contribuição da política para tal fim? Ou, em outras palavras, a
política tem alguma utilidade para alcançarmos a contemplação do ser? É claro
que sim, e eis o que veremos aqui.
A tese central de James Schall, baseando-se
em Aristóteles, Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Leo Strauss e Eric Voegelin
(mas não só), é que a teoria política moderna reduz a ética, a religião e a
ontologia à política, encarregando o homem e o mundo decaído por fornecerem
suas próprias balizas, o que, além de impossível – ou talvez pelo fato mesmo de
ser impossível –, é devastador.
O Velho Testamento, seja na história da
criação, da queda, do exílio, dos hebreus, das guerras, dos profetas, é um
esforço contínuo para impedir que o homem se contente com nada menos do que seu
próprio Criador, o próprio Deus. Do ponto de vista político, a principal ameaça
é um sistema político que reivindique as prerrogativas de Deus. Obedecer a Deus
não é alienar-se, mas, pelo contrário, é o caminho da restauração. A história
da queda ensina que o efeito dispersivo do pecado ancestral pode ser parcialmente
reparado mediante a política. A morte de Cristo indicaria que a política em si
é incapaz de reestruturar o homem nesta vida. A felicidade superior pertence ao
Reino, que não é deste mundo.
Santo Agostinho foi claro ao apontar que a
origem do mal no mundo não está propriamente no âmbito da política ou da
cultura, mas no âmbito da vontade. Para ele, a política é naturalmente
limitada porque nenhum bem futuro neste mundo poderá assegurar-nos a
imortalidade. Não há esperança em nenhuma ordem política, não importa se
“perfeita”, imperfeita, bárbara ou o que seja. Eis a contribuição cristã à
filosofia política: ela só faz sentido quando contextualizada na imortalidade
humana e na vida do século futuro. Pelo contrário, é por meio da redução de
nossas expectativas em relação à política que se pode melhor vislumbrar a
conquista da bem-aventurança. Santo Agostinho chama a atenção para o mal da
política: ela nunca é tão mal que não possa piorar. E, frequentemente, piora. O
mal, para Santo Agostinho, não é o aprisionamento do bem pela matéria, mas a
simples ausência de bem. Em termos éticos, o mal é fruto de uma escolha.
Isso nos leva à questão do inferno, uma
reflexão a qual o homem medieval estava especialmente inclinado. O “inferno”
era considerado como a pior forma de governo e, claro, uma possibilidade
derradeira da liberdade humana, na qual o mal deve ser punido e o bem
recompensado. E eis aqui uma reflexão crucial de Santo Agostinho: o que rege o
Estado não é a justiça (isso não cabe aos homens), mas o amor comum, ou seja,
uma vontade que pode escolher uma política justa e, frequentemente, pode
escolher uma injusta. O inferno, portanto, livra a política de um fardo terreno
impossível, “de modo que essa mesma ordem política não seja obrigada a ver como
sua tarefa o exercício da justiça e da punição absoluta por seus próprios
esforços”. Quando se rejeita os limites da razão então abre-se espaço para a
reivindicação da possibilidade de construir racionalmente a vida boa. É
evidente que o pensamento clássico é repulsivo a tal possibilidade. Embora
possa soar um tanto pueril, mas é notório observar como a rejeição da revelação
pela razão produz aqui mesmo o inferno político. Quando Jacques Ellul anuncia
que a definição mesma de religião é a de “ajudar o irmão”, ou seja, dar-lhe
roupa, comida e habitação, tal humanismo se autoenclausura. Impossível não ver
aí a definição perfeita de inferno: melhorar o vale de lágrimas que, por mais
“bem-intencionado”, não passa de uma tentativa tola de envernizar o inferno.
Você pode desconsiderar o inferno, mas ele não vai desconsiderar você.
Schall observa que tinha razão Platão, em A
república, ao notar que um dos sinais infalíveis da decadência de uma
civilização é a oferta excessiva de médicos e advogados. Isso é um sintoma de
que a população em geral acredita na tolice de que o mundo é capaz de salvar
(medicina) e de fazer justiça (advocacia).
Quando esta vida se torna tudo o que existe, a má saúde e a injustiça tornam-se intoleráveis, para não dizer exasperantes e destrutivas. [...] Homens e mulheres devem ser relativamente saudáveis e justos, é claro. Mas há uma linha tênue, não mais tão demarcada, entre uma visão de mundo que acredita que os homens devem reduzir a má saúde e a injustiça e aquela que suspeita de devam ser erradicadas. [...] O “possível” não limita mais o que é politicamente factível. A estranha e curiosa condição humana não atua mais como freio ou restrição aos esforços para a construção de uma vida perfeita na Terra. E o fracasso na tentativa de produzir tal sistema passa a ser atribuído a determinados grupos e pessoas que vivem no mundo e são acusadas de causar esse fracasso.
Observe o caráter gnóstico dessa postura: a
razão e o discernimento humano definem o conteúdo do que é humano. O homem não
é mais um ser sujeito a um Deus. É claro que estamos no reino da ética
revolucionária, da busca do homem perfeito, da salvação temporal. A moralidade,
portanto, passa a ser a identificação com as leis do sistema ideológico
vigente. A lei, nas civilizações clássicas, tinha por objetivo libertar o homem
da tirania de suas paixões e protegê-lo das paixões alheias (“razão sem
paixão”, como disse Aristóteles). Mas a lei era apenas a segunda melhor opção,
ou seja, a lei era incapaz de colocar o homem em contato direto com o bem.
Nunca, jamais, a lei foi pensada para resolver os problemas mais profundos do
homem com a justiça. Por isso Santo Agostinho pensava o Estado como um mero
remédio para o excesso de orgulho e ganância. Nenhuma ética, nenhuma santidade,
é capaz de ser alcançada pela política e pela lei. Eis uma sábia reflexão de
Schall a respeito:
[N]os é dito no Novo Testamento que existem dois mandamentos, o amor a Deus e o amor ao próximo. E nos é dito que se amamos o nosso próximo, cumprimos a lei. [...] Os limites do segundo mandamento estão no primeiro. Este é o mistério da nossa existência, que todos devemos encarar na intimidade dos nossos corações, dos nossos inquietos corações, como Santo Agostinho os chamava.
É notável como a morte de Cristo demonstrou
que nenhuma ordem política contém o propósito e a felicidade do homem. Os
primeiros cristãos sentiram que o Estado não era tão necessário: para os
Apóstolos Pedro e Paulo, por exemplo, a autoridade vinha de Deus, e o Estado,
como dizia Santo Agostinho, funcionava quando muito como “remédio” para as
faltas e imperfeições humanas, como um mantenedor da “paz”, e eis tudo. Tomás
de Aquino ensina que a melhor forma de regime é aquela composta por homens
sujeitos à lei que está além da política. Assim, o melhor regime político é
aquele capaz de colocar aos homens a liberdade e o ócio e, ao mesmo tempo,
controlar as más escolhas e desejos de forma legal e institucional. É quando
muito a isso, e somente a isso, que o bom Estado pode almejar. E a pior forma
de governo não é aquela que elimina fisicamente a raça humana, mas aquela em
que para salvar suas vidas os homens têm de ceder ao mal: morrer não é tão mal
quanto viver maliciosamente. O mal final está na ordem da inteligência e da
liberdade, não na mera destruição física. A ética da rendição em nome do pior
Estado, ou seja, é melhor render-se a um Estado totalitário do que morrer
honrosamente, não é cristã, mas hobbesiana. Eis o que disse Santo Agostinho em Contra
Faustam:
Qual é a acusação contra a guerra? Seria a de que alguns homens, que morrerão de qualquer jeito mais cedo ou mais tarde, são mortos para estabelecer a ordem, a fim de que outros possam viver em paz? Fazer tal acusação não é próprio de mentes religiosas, mas de mentes timoratas. Os verdadeiros males da guerra são o amor à violência, a crueldade vingativa, a inimizade feroz e implacável, a resistência selvagem, a ânsia pelo poder e coisas semelhantes; e geralmente é para impedir esse tipo de coisa, quando a força é necessária par infligir a punição que, em obediência a Deus e às autoridades legais, homens bons empreendem guerras. É quando se encontram em tal posição no que diz respeito à condução dos assuntos humanos que essa conduta correta exige que ajam ou façam outros agirem dessa maneira.
A velha desculpa de que a conduta correta
perante um regime tirânico é a aparente “virtude clássica” é típico de “mentes
timoratas” (ou seja, covardes). A conduta correta requer ação, que não é guerra
em si, mas o argumento (ou seja, a caneta, ensina Schall). Na ausência
de uma autêntica filosofia política os piores regimes tornam-se “morais” em
nome da “busca da virtude”.
Conclui-se, portanto, que o bem comum e o
bem pessoal não são contraditórios, mas correlativos. Ora, o bem pessoal só se
desenvolve quando lida com os outros (cf. a virtude da justiça). Assim, ensina
Tomás de Aquino, a qualidade de quem olha para o absoluto depende de como o
homem olha para a sociedade. Para Tomás, a sociedade não tem ser substancial,
mas encontra-se na categoria da relação, e tal relação, embora seja acidental
(e não substancial, como em Deus), é real porque seus sujeitos e termos são
reais. As relações entre os homens não são pessoas, pois são acidentais, e
portanto não há ser nessas relações como as há na Trindade; assim, estão enganados
aqueles filósofos que conferem substancialidade à sociedade, ao Estado, à raça,
à natureza, ou ao que quer que seja que não seja a pessoa. A sociedade existe
em pessoas, mas não é ela uma tertium quid. E as pessoas, sozinhas, são incapazes
de satisfazerem suas potências, mas somente aquela Pessoa Absoluta que não é
senão o próprio Deus. Substituir Deus pelo Estado ou pela natureza será sempre
uma tentativa, intencional ou não, de degradar o homem.
Nota-se tal degradação especialmente no
desaparecimento da misericórdia nas sociedades contemporâneas. A “compaixão” ou
“benevolência” secular está no cerne do Estado absoluto, e aqui importa pouco
se estamos falando de regimes liberais, socialistas, fascistas ou o que seja; afinal,
“o homem não contempla mais o que há no ser metafísico, mas o que ele coloca no
lugar por seu próprio poder”. Os homens, imaginando que a misericórdia fosse
algo “natural” e não sobrenatural, concluíram que poderiam fabricá-la. Ledo engano:
o ordinário está enraizado no extraordinário. O mundo foi criado na misericórdia,
como ensinou Tomás de Aquino, não na justiça (ST I, 21, 4). O abundante veio
antes do suficiente. O dar veio antes do receber. A “justiça” neste mundo é
inversamente proporcional à justiça efetiva da misericórdia, da caridade
autêntica, da graça. O desprezo pela misericórdia é a chave para entender a
teoria política mdoerna.
Fonte: James Schall, A política do céu e do inferno, Ecclesiae Editora, Campinas, SP, Brasil, 2022.