17 de novembro de 2024

Política: a metafísica dos antimetafísicos


Mais importa obedecer a Deus do que aos homens. (Atos 5:29)

Indaguei o que era a iniquidade, e não achei substância, mas a perversão de uma vontade que se afasta da suprema substância, de ti, meu Deus, e se inclina para as coisas baixas. (Santo Agostinho, Confissões 7, 16)

O mal refere-se a um mau uso do mundo pela vontade, não a um cosmo mau. (G.K. Chesterton)

Lei é razão sem paixão. (Aristóteles, Política 1287a32)

Tudo sugere que a vida orgânica será um episódio muito curto e sem importância na história do universo. Muitas vezes, ouvimos pessoas se consolarem de seus problemas individuais dizendo: “Será tudo a mesma coisa daqui a 100 anos”. Mas você pode fazer o mesmo com nossos problemas como espécie. O que quer que façamos, tudo será igual daqui a algumas centenas de milhões de anos. A vida orgânica é apenas um relâmpago na história cósmica. No longo prazo, ela não dará em nada. (C.S. Lewis, De futilitate)

Se algum poder é o sumo bem maior, ele deve ser perfeitíssimo. Ora, o poder humano é imperfeitíssimo, porque se baseia nas vontades e nas opiniões humanas, que são de máxima inconstância. E quanto maior for o poder considerado, tanto mais depende ele de muitos, o que também concorre para a sua fraqueza, porque, quando uma coisa depende de muitos, também pode ser destruída de muitas maneiras. Logo, o sumo bem do homem não está no poder mundano. (Tomás de Aquino, SG 3, 31)

O fim da lei divina é levar os homens à união com Deus. [...] As leis humanas, porém, se ordenam a determinados bens terrenos. (Tomás de Aquino, ST II-II, 140, 1)

Se a contemplação do ser é o fim último do homem, qual a contribuição da política para tal fim? Ou, em outras palavras, a política tem alguma utilidade para alcançarmos a contemplação do ser? É claro que sim, e eis o que veremos aqui.

A tese central de James Schall, baseando-se em Aristóteles, Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Leo Strauss e Eric Voegelin (mas não só), é que a teoria política moderna reduz a ética, a religião e a ontologia à política, encarregando o homem e o mundo decaído por fornecerem suas próprias balizas, o que, além de impossível – ou talvez pelo fato mesmo de ser impossível –, é devastador.

O Velho Testamento, seja na história da criação, da queda, do exílio, dos hebreus, das guerras, dos profetas, é um esforço contínuo para impedir que o homem se contente com nada menos do que seu próprio Criador, o próprio Deus. Do ponto de vista político, a principal ameaça é um sistema político que reivindique as prerrogativas de Deus. Obedecer a Deus não é alienar-se, mas, pelo contrário, é o caminho da restauração. A história da queda ensina que o efeito dispersivo do pecado ancestral pode ser parcialmente reparado mediante a política. A morte de Cristo indicaria que a política em si é incapaz de reestruturar o homem nesta vida. A felicidade superior pertence ao Reino, que não é deste mundo.

Santo Agostinho foi claro ao apontar que a origem do mal no mundo não está propriamente no âmbito da política ou da cultura, mas no âmbito da vontade. Para ele, a política é naturalmente limitada porque nenhum bem futuro neste mundo poderá assegurar-nos a imortalidade. Não há esperança em nenhuma ordem política, não importa se “perfeita”, imperfeita, bárbara ou o que seja. Eis a contribuição cristã à filosofia política: ela só faz sentido quando contextualizada na imortalidade humana e na vida do século futuro. Pelo contrário, é por meio da redução de nossas expectativas em relação à política que se pode melhor vislumbrar a conquista da bem-aventurança. Santo Agostinho chama a atenção para o mal da política: ela nunca é tão mal que não possa piorar. E, frequentemente, piora. O mal, para Santo Agostinho, não é o aprisionamento do bem pela matéria, mas a simples ausência de bem. Em termos éticos, o mal é fruto de uma escolha.

Isso nos leva à questão do inferno, uma reflexão a qual o homem medieval estava especialmente inclinado. O “inferno” era considerado como a pior forma de governo e, claro, uma possibilidade derradeira da liberdade humana, na qual o mal deve ser punido e o bem recompensado. E eis aqui uma reflexão crucial de Santo Agostinho: o que rege o Estado não é a justiça (isso não cabe aos homens), mas o amor comum, ou seja, uma vontade que pode escolher uma política justa e, frequentemente, pode escolher uma injusta. O inferno, portanto, livra a política de um fardo terreno impossível, “de modo que essa mesma ordem política não seja obrigada a ver como sua tarefa o exercício da justiça e da punição absoluta por seus próprios esforços”. Quando se rejeita os limites da razão então abre-se espaço para a reivindicação da possibilidade de construir racionalmente a vida boa. É evidente que o pensamento clássico é repulsivo a tal possibilidade. Embora possa soar um tanto pueril, mas é notório observar como a rejeição da revelação pela razão produz aqui mesmo o inferno político. Quando Jacques Ellul anuncia que a definição mesma de religião é a de “ajudar o irmão”, ou seja, dar-lhe roupa, comida e habitação, tal humanismo se autoenclausura. Impossível não ver aí a definição perfeita de inferno: melhorar o vale de lágrimas que, por mais “bem-intencionado”, não passa de uma tentativa tola de envernizar o inferno. Você pode desconsiderar o inferno, mas ele não vai desconsiderar você.

Schall observa que tinha razão Platão, em A república, ao notar que um dos sinais infalíveis da decadência de uma civilização é a oferta excessiva de médicos e advogados. Isso é um sintoma de que a população em geral acredita na tolice de que o mundo é capaz de salvar (medicina) e de fazer justiça (advocacia).

Quando esta vida se torna tudo o que existe, a má saúde e a injustiça tornam-se intoleráveis, para não dizer exasperantes e destrutivas. [...] Homens e mulheres devem ser relativamente saudáveis e justos, é claro. Mas há uma linha tênue, não mais tão demarcada, entre uma visão de mundo que acredita que os homens devem reduzir a má saúde e a injustiça e aquela que suspeita de devam ser erradicadas. [...] O “possível” não limita mais o que é politicamente factível. A estranha e curiosa condição humana não atua mais como freio ou restrição aos esforços para a construção de uma vida perfeita na Terra. E o fracasso na tentativa de produzir tal sistema passa a ser atribuído a determinados grupos e pessoas que vivem no mundo e são acusadas de causar esse fracasso.

Observe o caráter gnóstico dessa postura: a razão e o discernimento humano definem o conteúdo do que é humano. O homem não é mais um ser sujeito a um Deus. É claro que estamos no reino da ética revolucionária, da busca do homem perfeito, da salvação temporal. A moralidade, portanto, passa a ser a identificação com as leis do sistema ideológico vigente. A lei, nas civilizações clássicas, tinha por objetivo libertar o homem da tirania de suas paixões e protegê-lo das paixões alheias (“razão sem paixão”, como disse Aristóteles). Mas a lei era apenas a segunda melhor opção, ou seja, a lei era incapaz de colocar o homem em contato direto com o bem. Nunca, jamais, a lei foi pensada para resolver os problemas mais profundos do homem com a justiça. Por isso Santo Agostinho pensava o Estado como um mero remédio para o excesso de orgulho e ganância. Nenhuma ética, nenhuma santidade, é capaz de ser alcançada pela política e pela lei. Eis uma sábia reflexão de Schall a respeito:

[N]os é dito no Novo Testamento que existem dois mandamentos, o amor a Deus e o amor ao próximo. E nos é dito que se amamos o nosso próximo, cumprimos a lei. [...] Os limites do segundo mandamento estão no primeiro. Este é o mistério da nossa existência, que todos devemos encarar na intimidade dos nossos corações, dos nossos inquietos corações, como Santo Agostinho os chamava.

É notável como a morte de Cristo demonstrou que nenhuma ordem política contém o propósito e a felicidade do homem. Os primeiros cristãos sentiram que o Estado não era tão necessário: para os Apóstolos Pedro e Paulo, por exemplo, a autoridade vinha de Deus, e o Estado, como dizia Santo Agostinho, funcionava quando muito como “remédio” para as faltas e imperfeições humanas, como um mantenedor da “paz”, e eis tudo. Tomás de Aquino ensina que a melhor forma de regime é aquela composta por homens sujeitos à lei que está além da política. Assim, o melhor regime político é aquele capaz de colocar aos homens a liberdade e o ócio e, ao mesmo tempo, controlar as más escolhas e desejos de forma legal e institucional. É quando muito a isso, e somente a isso, que o bom Estado pode almejar. E a pior forma de governo não é aquela que elimina fisicamente a raça humana, mas aquela em que para salvar suas vidas os homens têm de ceder ao mal: morrer não é tão mal quanto viver maliciosamente. O mal final está na ordem da inteligência e da liberdade, não na mera destruição física. A ética da rendição em nome do pior Estado, ou seja, é melhor render-se a um Estado totalitário do que morrer honrosamente, não é cristã, mas hobbesiana. Eis o que disse Santo Agostinho em Contra Faustam:

Qual é a acusação contra a guerra? Seria a de que alguns homens, que morrerão de qualquer jeito mais cedo ou mais tarde, são mortos para estabelecer a ordem, a fim de que outros possam viver em paz? Fazer tal acusação não é próprio de mentes religiosas, mas de mentes timoratas. Os verdadeiros males da guerra são o amor à violência, a crueldade vingativa, a inimizade feroz e implacável, a resistência selvagem, a ânsia pelo poder e coisas semelhantes; e geralmente é para impedir esse tipo de coisa, quando a força é necessária par infligir a punição que, em obediência a Deus e às autoridades legais, homens bons empreendem guerras. É quando se encontram em tal posição no que diz respeito à condução dos assuntos humanos que essa conduta correta exige que ajam ou façam outros agirem dessa maneira.

A velha desculpa de que a conduta correta perante um regime tirânico é a aparente “virtude clássica” é típico de “mentes timoratas” (ou seja, covardes). A conduta correta requer ação, que não é guerra em si, mas o argumento (ou seja, a caneta, ensina Schall). Na ausência de uma autêntica filosofia política os piores regimes tornam-se “morais” em nome da “busca da virtude”.

Conclui-se, portanto, que o bem comum e o bem pessoal não são contraditórios, mas correlativos. Ora, o bem pessoal só se desenvolve quando lida com os outros (cf. a virtude da justiça). Assim, ensina Tomás de Aquino, a qualidade de quem olha para o absoluto depende de como o homem olha para a sociedade. Para Tomás, a sociedade não tem ser substancial, mas encontra-se na categoria da relação, e tal relação, embora seja acidental (e não substancial, como em Deus), é real porque seus sujeitos e termos são reais. As relações entre os homens não são pessoas, pois são acidentais, e portanto não há ser nessas relações como as há na Trindade; assim, estão enganados aqueles filósofos que conferem substancialidade à sociedade, ao Estado, à raça, à natureza, ou ao que quer que seja que não seja a pessoa. A sociedade existe em pessoas, mas não é ela uma tertium quid. E as pessoas, sozinhas, são incapazes de satisfazerem suas potências, mas somente aquela Pessoa Absoluta que não é senão o próprio Deus. Substituir Deus pelo Estado ou pela natureza será sempre uma tentativa, intencional ou não, de degradar o homem.

Nota-se tal degradação especialmente no desaparecimento da misericórdia nas sociedades contemporâneas. A “compaixão” ou “benevolência” secular está no cerne do Estado absoluto, e aqui importa pouco se estamos falando de regimes liberais, socialistas, fascistas ou o que seja; afinal, “o homem não contempla mais o que há no ser metafísico, mas o que ele coloca no lugar por seu próprio poder”. Os homens, imaginando que a misericórdia fosse algo “natural” e não sobrenatural, concluíram que poderiam fabricá-la. Ledo engano: o ordinário está enraizado no extraordinário. O mundo foi criado na misericórdia, como ensinou Tomás de Aquino, não na justiça (ST I, 21, 4). O abundante veio antes do suficiente. O dar veio antes do receber. A “justiça” neste mundo é inversamente proporcional à justiça efetiva da misericórdia, da caridade autêntica, da graça. O desprezo pela misericórdia é a chave para entender a teoria política mdoerna.

Fonte: James Schall, A política do céu e do inferno, Ecclesiae Editora, Campinas, SP, Brasil, 2022.