28 de outubro de 2022

O homem absurdo e a ideia do suicídio


É segunda-feira. Acordo de manhã, tomo banho, como alguma coisa. Carro, trânsito, escritório. Reuniões, e-mails, projetos, clientes, chefe. Hora do almoço, como mais alguma coisa. Depois mais escritório. Fim da tarde, carro, trânsito, casa. Assisto qualquer coisa em qualquer tela. Pago as contas. Como mais alguma coisa. Cama. Terça-feira, mesma coisa. E também a quarta, a quinta, a sexta. Sábados e domingos iguais aos anteriores. Uma viagem aqui, alguma ativiadde extra-laboral ali.

Talvez esta rotina faça sentido para você. Talvez em meio às atvidades do dia-a-dia você encontre momentos de alegria e esperança que, em si, são suficientes para fazê-lo seguir em frente. Talvez você tenha alguma religião, fé, espiritualidade, filosofia, meditação, ou seja lá o que for, que lhe conforte e lhe dê "forças".

Mas talvez você tenha uma consciência mais desenvolvida, uma inteligênia mais aguçada, uma percepção mais profunda da vida -- digamos logo, um QI acima da média --, e nada do que descrevi acima o satisfaça. A vida como um todo não faz sentido para você. Angústias, sofrimentos, dores: a vida enquanto tal, a vida em sua totalidade, não tem unidade, não fornece nenhum motivo em si que a torne digna de ser vivida, digna de ser suportada. Os momentos alegres e singulares da vida se diluem no oceano do absurdo.

O que fazer? Em seu Mito de Sísifo, Albert Camus invoca o que, em sua opinião, é o problema filosófico mais importante de toda a história da humanidade: o suicídio. Sim, a ideia parece irreverente, inóspita, mas diante do absurdo da vida, diante da ausência de toda razão profunda, do caráter insensato da agitação cotidiana, é perfeitamente legítimo que perguntemos: por que não?

A ciência e a psicologia classificam o mundo, ensinam coisas notáveis a seu respeito, mas ao fim e ao cabo tudo não passa de imagens, de metáforas. Como diz Camus com eloquência, "as suaves linhas destas colinas e a mão da tarde sobre este coração agitado me ensinam muito mais". As categorias da ciência e do conhecimento não têm nada a ver com o espírito. Aqui é notável a semelhança de raciocínio com Schumacher.

Qaunto à filosofia, Camus tampouco encontra consolo. A postura existencial ele entende ser uma espécie de "suicídio filosófico", ou seja, uma forma cômoda de superar o dilema negando-o. A negação é o Deus dos existencialistas na medida em que nega a razão humana. Husserl, por sua vez, apenas reúne o universo que outrora encontrava-se disperso, desconexo, mas não resolve o dlema de que a mera reunião não implica em unidade. Ao fim e ao cabo, a fenomenologia também nega versar sobre o absurdo da vida.

Ocore que Camus, mediante uma série de insights, chega a uma brilhante conclusão: quanto menos sentido ten a vida, melhor. Viver uma experiência, um destino, é aceitá-lo plenamente. Mas para viver esse destino é necessário ter em mente sua absurdidade. A palavra-chave é rebelião, ou seja, rebelar-se conscientemente. Viver é fazer viver o absurdo. O homem tem de enfrentar a obscuridade da vida. Enfrentar tal obscuridade significa resignar-se a nosso destino devastador. Suicidar-se é render-se ao absurdo. Rebelar-se é aceitar a realidade do absurdo. A única verdade é o próprio desafio de viver em rebelião.

O homem inconsciente do absurdo vive escravo do sentido que artificialmente atribui à vida. A ideia de que somos eternos, fingir que há um "amanhã", é apegar-se à bola de ferro acorrentada a seu tornozelo. Somente na rebeldia, na revolução, é possível exercitar a liberdade. Dar sentido à vida é criar barreiras dentro das quais encerro minha vida. Portanto, a ideia não é viver "melhor" (segundo a moral comum), mas viver "mais", viver com verdadeira paixão (acumular experiências, estar diante do mundo com a maior freqência possível, da maneira mais presente pssível).

Portanto, eis as três consequências que Camus deriva do absurdo: a rebelião, a liberdade e a paixão (pela diversidade).

O homem absurdo

Camus delinea três exemplos de homem absurdo: o amante, o comediante e o aventureiro. Nenhum deles, e nenhum homem absurdo, nega o eterno; ocorre apenas que eles não têm o que fazer com ele.

Em termos éticos e morais, o homem absurdo reconhece apenas a existência de responsáveis, mas não de culpados. Em outras palavras, a carga condenatória, o castigo psicológico, é inexistente para o homem absurdo. Ele é responsável por tudo o que faz, mas não aceita ser culpado por nada: a vida humana é um sopro, e seu objetivo não pode ser cumprir regras morais.

Don Juan, por exemplo, o amante por excelência, não tem objetivos morais. ele não quer ser santo. O que ele quer é quantidade, ao contrário do santo, que quer qualidade. Qualidade para quê? Por acaso as coisas têm alguma sentido profundo? Por acaso a vida tem sentido? Claro que não. A vida do santo é movida pelo mito do sentido, da eternidade, do além. O santo finge não existir o absurdo. O homem absurdo, pelo contrário, não só não finge como vive de acordo com ele. O homem absurdo não se separa do tempo, afinal. O amor convencional, aquele através do qual nos doamos a uma mulher, pode ser "enriquecedor" para ambos, mas em termos pessoais será empobrecedor a ambos, pois estarão literalmente apartados da vida, das experiências que ela pode proporcional para além da mera doação mútua. O amor convencional não é libertador, é uma prisão. O homem absurdo não quer "ser" algo na eternidade: o homem absurdo escolhe não ser nada, mas escolhe ser algo nesta vida. Eis a única grandeza a que pode aspirar.

O pensamento absurdo não quer explicar, não quer se aprofundar. Quer apenas descrever. Eis sua ambição. O autêntico artista absurdo é aquele que retrata o contreto, e que tal retratação não signfique nada além do concreto. A obra absurda ilustra < renúncia do pensamento a seus prestígios e sua resignação a ser apenas uma inteligência que põe em marcha as aparências e cobre com imagens o que carece de razão. A arte absurda deve refletir aquilo que deve manifestar o pensamento absurdo: rebelião, liberdade e diversidade. E, claro, uma profunda inutilidade.

Fonte: Albert Camus, El Mito de Sísifo, Literatura Random House, Barcelona, Espanha, 2021.