22 de outubro de 2022

Um guia para os perplexos


O economista alemão E.F. Schumacher goza de boa fama como distributista, tendo sido intelectualmente influenciado por pessoas tão diferentes como Mahatma Gandhi, Karl Marx, Buda, Lord Keynes e pelo pensamento econômico da Igreja Católica. No entanto, é sua obra filosófica que me interessou, em especial seu A Guide for the Perplexed, recomendado por James Schall, se não me engano, em On the Unseriousness of Human Affairs.

Para Schumacher, filosofar é contemplar o mundo em sua totalidade, e não em suas partes, o que estaria mais bem a cargo das diversas ciências humanas. Daí o "guia para os perplexos": os perplexos somos nós, aqueles que, diante da miríade de conhecimentos novos e fascinantes produzidos pelas ciências, sentem falta de um mapa a partir do qual possam navegar e orientar-se na vida.

A crítica de Schumacher não vai tanto direcionada à ciência enquanto tal, mas a sua incapacidade de responder às perguntas que realmente valem a pena. Na verdade, o cientificismo que se formou em torno das ciências modernas simplesmente nega a validade dessas perguntas. Neste ponto, a obra-prima de Jordan Peterson, Maps of Meaning, é fundamental para entender a questão: a ciência é parte da porção "o que é" do mundo, mas não da porção "o que deveria ser". A destruição da sabedoria antiga levou consigo os antigos mapas que nos norteavam no mundo. Como dizia Viktor Frankl, o lamentável não é tanto que os cientistas se especializem, mas que os especialistas generalizem.

Mas que perguntas são essas? São aquelas que se referem aos fins, aos sentidos, da vida, dos sentimentos, das ações, dos pensamentos. O que precisamos para ser felizes? Qual é a verdade que nos liberta? Onde encontrá-la? O que devo fazer da minha vida? E assim por diante.

O mapa de Schumacher se baseia no que ele chama de Grandes Verdades. São quatro:

1. A Grande Verdade sobre o mundo: é a estrutura hierárquica dos 4 grandes níveis do ser.

2. A Grande Verdade sobre o homem: é o princípio da adequação (adaequatio).

3. A Grande Verdade sobre o aprendizado: são os 4 campos do conhecimento.

4. A Grande Verdade sobre a vida: é a distinção entre problemas convergentes e divergentes.

René Descartes e Francis Bacon, pensadores típicos da era moderna, afirmavam que o alcance da mente humana era estritamente limitado, ou seja, que não havia razão para interessar-se por assuntos que ultrapassem sua capacidade. No entanto, a sabedoria tradicional considerava que a mente humana, embora fraca, era ilimitada, ou seja, que era capaz de alçar-se acima de si mesma a níveis cada vez mais elevados. Assim, Schumacher entende que o cientificismo se desfez dessa dimensão vertical da existência. Não há mais "superior" e "inferior", não há melhor e pior, não há hierarquia. A matematica e a física, por exemplo, são absolutamente mudas a esse respeito. A vida se encontra sem orientação, sem diretrizes, sem sentido.


1. Os níveis do ser

Schumacher recorda que no mundo natural há certas diferenças entre os seres ou, mais precisamente, certas "descontiuidades ontológicas", certos "saltos de nível", que podemos destruir embora sejamos incapazes de construir. Os seres são classificados por reinos: mineral ("seres inanimados"), vegetal, animal e humano, e as respectivas qualidades que identificam sua descontinuidade ontológica são vida (vegetal), consciência (animal) e autoconsciência (humano), esta última entendida como uma capacidade de dizer "eu" e de dirigir a consciência de acordo com fins próprios. Observe que, embora possamos destruir a vida, a consciência e a autoconsciência, somos incapazes de dar vida a uma pedra, consciência a uma planta e autoconsciência a um animal.

Aqui observamos que a evolução, entendida como o processo de surgimento espontâneo e acidental dos poderes vitais, da cosciência e da autoconsciência a partir da matéria inanimada, é algo totalmente incompreensível. Não é possível o surgimento acidental do superior a partir do inferior.

Do nível inferior, o nível mineral, se ocupa a física e a química. E talvez aqui resida uma das grandes confusões da era moderna: dizer que a vida, o primeiro fator que explica o segundo nível do ser ("reino vegetal"), é apenas uma combinação atômica é o mesmo que dizer que Hamlet, de Shakespeare, é apenas uma combinação de letras. Descrever um animal como um complexo sistema físico-químo não está errado. O que está errado é fingir que tal descrição não omite a animalidade do animal. Há, portanto, uma diferença de tipo, não de grau, entre os níveis do ser.

É curioso observar que o superior compreende em certo sentido o inferior, mas é incapaz de entender algo superior a si mesmo. Isso explica por que as pessoas que têm sua autoconsciência pouco desenvolvida tendem a considerá-la uma simples extensão da consciência. E explica por que essas pessoas tendem a tratar o próximo com certa brutalidade, certa bestialidade. Não é incomum que se tratem a si mesmas assim também. Ao contrário da vida e da conscieêcia, que agem de maneira automática, involutária, a autoconsciência é uma potencialidade, não tanto uma realidade, que cada indivíduo deve desenvolvê-la se quer chegar a ser verdadeiramente humano, se quer chegar a ser uma persona.

Há certos traços que caracterizam os níveis do ser aos quais chamamos "progressões". 

A progressão mais notável é a passividade/atividade, ou seja, a passagem da passividade para a atividade conforme se sobe no nível do ser. A partir da passividade total de uma pedra, coforme subimos a escada dos níveis do ser, chegamos a contemplar o ser humano, no qual existe um sujeito que diz "eu" (ou seja, que tem consciência de si mesmo, que tem autoconsciência), que não apresenta virtualmente nenhuma limitação, muito embora, claro, existam limitações práticas as quais deve respeitar. Por isso os homens são obrigados a lançar mão de sua imaginação, de sua capacidade intuitiva, para completar o processo de atividade e, assim, por extrapolação, superar essas limitações impostas pelas circunstâncias do entorno.

O movimento, a atividade, possui origens distintas nos níveis do ser. No nível da matéria inanimada é a relação causa-efeito física, e totalmente externa, que explica o movimento. Nas plantas, é essa cadeia causal física e também o estímulo interno que produz (fototropismo, a busca das raízes por umidade etc.). Nos animais, é tudo isso mais o motivo (certos impulsos, atrações e forças, como a curiosidade, o medo do inimigo, o reconhecimento do dono etc.), que ocorre no chamado "espaço interior". Ainda assim, a causa dos motivos deve estar fisicamente presente para que os motivos se manifestem. Nos homens a autoconsciência acrescenta outro fator causal da atividade: a vontade. Aqui não há coação física, nem estímulo, nem força motivadora, mas uma pura "ideia", ou seja, a mente humana é capaz de prever acontecimentos futuros. É o poder da presciência. Claro, é limitada de acordo com cada ser humano, de acordo com as condições presentes etc., mas é um poder típico deste nível do ser.

Há outras progressões além da passividade/atividade. Por exemplo, a progressão necessidade/liberdade. Schumacher explica que o espaço interior é o cenário da liberdade. Em outras palavras, é num espaço interior desenvolvido que se produz a liberdade. Da observação direta deduzimos que a maioria das pessoas se comporta mecanicamente, como uma máquina, na maior parte do tempo. O poder especificamente humano da autoconsciência se encontra adormecido, e o ser humano, como o animal, somente age -- com mais ou menos inteligência -- em resposta a influências externas. Somente quando o homem faz uso do poder da autoconsciência alcança o nível de persona, o nível da liberdade. Neste exato momento o homem está vivendo, e não sendo vivido. Sim, as forças da necessidade continuam existindo e atuando, acumuladas no passado, mas ao mesmo tempo se produz aí uma pequena fenda, uma minúscula mudança de direção. Assim que ser livre é como ser rico: é uma possibilidade, uma meta, um destino ao qual nos esforçamos.

Observa-se nos níveis do ser a progressão desintegração/integração. A matéria inanimada pode ser dividida e subdividida inúmeras vezes sem perder suas características. No nível vegetal a integração é frágil. Nos animais, no entanto, as partes não podem sobreviver à sua separação, mas em nível mental a logicidade e coerência são modestas, a memória é escassa e o intelecto, na melhor das hipóteses, nebuloso. Nos homens, no entanto, a integridade é uma possibilidade que lhe está dada pela autoconsciência mas, novamente, é necessário esforçar-se por conseguí-la. Em geral, o nível de autoconsciência das pessoas é muito baixo, de forma que convive nelas uma miríade de personalidades, de egos, que dizem "eu" alternadamente.

Não é difícil a esta altura identificar a progressão visível/invisível. Todos os nossos pensamentos, emoções, sentimentos, imaginações, devaneios, fantasias, sonhos são invisíveis. Tudo o que se refere a nossos projetos, planos, segredos, ambições, todas as nossas esperanças, medos, dúvidas, perplexidades, todos os nossos afetos, suposições, reflexões, vazios, incertezas, todos os nossos desejos, saudades, apetites, sensações, gostos, antipatias, aversões, atrações, amores e ódios: tudo isso é invisível.

E quanto ao mundo? Sim, o mundo tem tamanhos, ou "alcances", diferentes de acordo com o nível do ser. Poderíamos chamar essa progressão espacial de inexistente/ilimitado. A matéria inanimada não tem mundo. As plantas e animais têm mundos proporcionais às suas necessidades biológicas e materiais. Os homens são capax universi, ou seja, são capazes de trazer o universo inteiro à sua experiência. Segundo Hobbes, o homem que nega viver como persona, mas insiste em voltar-se às suas necessidades meramente biológicas, às comodidades materais, àquilo que lhe ocorre por acidente, "atrairá" inveitavelmente uma vida miserável: é uma vida "solitaria, pobre, suja, bestial e breve".

Em suma, a autoconsciência confere aos homens potencialidades infinitas e, segundo deduz Schumacher, não somente a potencialidade mas a necessidade de tornar-se sobre-humano.


2. O princípio da adequação

A adequação tem a ver com possuir o instrumento apropriado para conhecer a si mesmo e o mundo que o rodeia. Em outras palavras, o entendimento deve adequar-se ao objeto que se pretende conhecer. Tomás de Aquino dizia, de maneira muito eloquente, que "o conhecimento se produz na medida em que o objeto conhecido se encontra dentro da pessoa". 

Os cinco sentidos são suficientes para conhecermos a matéria inanimada. Mas se queremos que os dados que os sentidos coletam tenham sentido, que identifiquemos forma, estrutura, regularidade, harmonia, ritmo, significado etc, serão necessárias aptidões diferentes, superiores. Serão necessário "sentidos intelectuais", por assim dizer. Há muitas coisas que algumas pessoas "veem", enquanto outras não as "veem". Em outras palavras, algumas pessoas são adequadas, enquanto outras não são.

E aqui Schumacher expõe um entendimento bastante curioso. Segundo ele, o observador deverá escolher o nível adequado por meio da fé. Isso mesmo, fé, pois Schumacher está de acordo com o velho slogan agostiniano segundo o qual credo ut intelligam. O mundo real não nos chega com etiquetas ou rótuos indicando qual o nível adequado a ser utilizado. A propósito, escolher um nível inadequado não significa necessariamente que a conclusão implicará em erro ou contradição lógica, mas apenas que os diferentes níveis, embora todos verdadeiros, lógicos e objetivos, não são por isso igualmente reais. Em termos práticos, o observador tem de possuir um intelecto devidamente formado, treinado e educado, mas também sua fé (suas "suposições fundamentais") terá de estar bem desenvolvida, sob pena de entregar-se a repetir aquilo que seu tempo e sua época dizem de acordo com o nível de fé, ou ausência de fé, vigente.

Aqui cabe fazer uma distinção entre intelecto e fé. O intelecto é capaz de ver para além dos cinco sentidos. As verdades matemáticas e geométricas, por exemplo, são típicas do exercício intelectual. Mas a fé enxerga para além do intelecto. A fé abre o chamado "olho do coração", algo que todos nós possuímos, mas nem todos o exercitam. A plena compreensão, a plena certeza, é algo que somente o olho do coração pode proporcionar. O intelecto, por mais "verdadeira" que seja a conclusão a que chegue, nunca ultrapassa o nível da opinião. Somente o olho do coração possui essa misteriosa capacidade de reconhecer a verdade aí onde se encontra. Os sentidos e o intelecto nos dão experiência. O olho do coração nos dá iluminação. Schumacher acredita que o mundo das ideias está dentro de nós.


3. Os campos de conhecimento

O aprendizado compreende 4 grandes campos de conhecimento, os quais respondem às seguintes pergutas:

(I) O que acontece no meu mundo interior? O que eu sinto?

(II) O que acontece no mundo interior dos outros seres? O que você sente?

(III) O que pareço aos olhos dos outros seres? O que eu pareço?

(IV) O que realmente obervo no mundo que me rodeia? O que você parece?

Vamos examiná-los um a um.


(I) A atenção (noûs)

Dizem que a psicologia é uma ciência nova. Trata-se de um entendimento completamente falso; pelo contrário, o que se observa é que a psicologia é uma das ciências mais antigas. O que ocorre é que os aspectos essenciais da psicologia foram esquecidos, o que faz com que muitos concluam que seja portanto algo novo. A psicologia tradicional tinha como objetivo não tanto curar as pessoas mentalmente enfermas e convertê-las à normalidade, mas curar as pessoas mentalmente normais e convertê-las à supernormalidade.

A psicologia tradicional entendia que a autoconsciência está intimamente ligada à faculdade da atenção, mais especificamente à faculdade de dirigir a atenção. Schumacher nos lembra que são raros os momentos em qe nos damos conta da possibilidade de dirigir nossa atenção aonde queremos, ou seja, livre de qualquer "atração", e mantê-la aí pelo tempo que desejarmos. São raros esses momentos de liberdade e autoconsciência.

O objetivo aqui é que a atenção esteja plenamente desperta. Não se trata evidentemente de despertar do sono noturno comum, mas de despertar do movimento errante e sem rumo da atenção. Esses movimentos, segundo Schumacher, nos tornam incompetentes, miseráveis e algo menos humanos.

Essa atenção pura se alcança mediante a interrupção de todo e qualquer "murmúrio" interno, ou ao menos observar tal murmúrio com calma. A atenção pura é algo que está acima das atividades de pensar, raciocinar, debater, opinar etc., que, por mais importantes que sejam, são subsidiárias à atenção pura, ou seja, elas devem apenas classificar, conectar e verbalizar as ideias e conteúdos obtidos pela atenção pura. O pensamento é algo que está no nível da consciência, e não no nível superior da autoconsciência. A mente, explica Schumacher citando Nyanaponika, "regressa ao estado original das coisas. [...] A observação retrocede à fase primieva do processo de percepção, na qual a mente s enecontra em um estado meramente receptivo e a atenção se limita puramente a notar o objeto". A ideia portanto é que o ego do homem, com seus apegos e interesses, não adultere o material autêntico e imaculado recebido pela atenção pura. Os vários egos que habitam o homem agem de maneira descoordenada, destrutiva, e livrar-se desses egos é algo que o homem somente pode empreender esperando em Deus, com um "propósito puro", como é dito no clássico inglês The Cloud of the Unkown.

Segudo Schumacher, no Cristianismo a tradição que estabelece a técnica e a experiênca acumulada de milênios de prática da atenção pura encontra-se na Igreja Ortodoxa, mais especificamente na prática do hesicasmo e da oração incessante no interior de alguns mosteiros gregos e russos.  Citando o Metropolita Kallistos Ware, Schumacher explica que a Oração de Jesus opera como uma lembrança constante que leva o homem a voltar-se ao interior a todo momento, tornando-o consciente de seus pensamentos fugazes, de suas emoções repentinas, inclusive de seus movimentos, de modo que pode lhe servir de grande ajuda para controlá-los.

Vale a pena citar alguns trechos de Mysticism and Philosophy, de W.T. Stace:

"Suponhamos que uma pessoa interrompa interrompa o fluxo dos sentidos físicos de maneira que nenhuma sensação possa chegar à consciência. [...] Não parece existir nenhuma razão a priori para que um homem que se proponha este objetivo [...] não consiga, adquirindo concentração e controle suficientes, apartar de sua consciência toda sensação física.

Suponhamos que, depois de ter se libertado de todas as sensações, o homem continue excluindo da consciência todas as imagens sensuais e, depois, todos os pensamentos abstratos, processos de raciocínio, volições e demais conteúdos concretos. O que restaria à consciência? Não haveria nenhum conteúdo mental, apenas um completo vazio, o nada.

Se supõe a priori que a consciência se afundaria por inteiro e que ficaríamos adormecidos ou inconscientes. No entanto, os místicos introspectivos -- milhares deles em todo o mundo -- afirmam que alcançaram esse completo vazio de conteúdos mentais concretos, e o que ocorre é algo muito diferente do desmoronamento da consciência. Pelo contrário, o que surge é um estado de consciência pura, no sentido de que não é consciência de nenhum conteúdo empírico. A consciência é seu único conteúdo.

O paradoxo é que exista uma experiência autêntica sem um conteúdo autêntico, uma experiência que ao mesmo tempo seja algo e nada. Em nossa consciência normal e cotidiana sempre há objetos, imagens, inclusive nossos próprios sentimentos e pensamentos percebidos introspectivamente. Suponhamos então que apaguemos todos os objetos físicos e mentais. Quando o eu não está ocupado em apreender objetos se torna consciente de si mesmo. Surge o próprio eu. [...] Podemos dizer que o místico se liberta de seu ego empírico, com o qual o puro ego, normalmente oculto, sai à luz. O ego empírico é o fluxo da consciência. O ego puro é a unidade que mantém juntas as múltiplas correntes do fluxo".

O paradoxo só existe para quem se afana em acreditar que nada superior pode existir acima de sua conscincia e experiência cotidianas. É necessário transcender a consciência mediante a autoconsciência. O homem precisa abrir-se ao puro ego, ao eu, ao vazio, ao poder divino que habita em seu interior. É isso que ensinam as grandes espiritualidades.


(II) O autoconhecimento

Para conhecer o próximo é necessário antes conhecer-se a si mesmo melhor. É isso ao menos que ensinam as grandes tradições espirituais. A expicação é que por mais que as outras pessoas comuniquem o que pensam e sentem de maneira precisa, abrangente e correta, tais dados não serão corretamente interpretados se não dispusermos em nosso interior alguma experiência que corresponda àquela transmitida por nosso interlocutor. Isso vale desde as dores físicas até sentimentos como amor, ódio, alegria, tristeza, esperança, medo, angústia etc. Nada disso é observável por nossos sentidos externos e, portanto, exige certa eperiência interior para que as compreendamos verdadeiramente.

É possível que sejamos pessoas "honradas", "respeitosas", "dignas", "crentes" etc., mas sem uma atividade interior desenvolvida, toda e qualquer empatia, toda e qualquer compreensão da condição alheia, seremos como uma pianola, que apenas macaqueia a partitura que lhe inserem, ou como um computador, que executa à risca o que determnado programa lhe comanda.

Nossa consciência não é capaz de apreender corretamente os sinais que nos chegam pelos sentidos. Um gesto, por exemplo, não pode ser interpretado por uma mente puramente racional; é absolutamente necessário que a autoconsciência desempenhe este papel. Neste sentido, Schumacher recomenda que tomemos contato com a vida e a obra daqueles que conseguiram chegar a tal autoconhecimento (místicos, santos, mestres espirituais etc.).


(III) A auto-observação

Para entender como os outros me veem é necessário que esteja consciente de meu movimento pendular, ou seja, de como eu tendo a mudar com muita frequência de uma opinião a sua opinião oposta. A ideia não é apenas dar-se conta da mudança, mas observá-la sem julgá-la, sem justificá-la.

O segredo aqui está em observar e compreender as necessidades, perplexidades e dificuldades dos demais, mas de maneira que nossos egos, ou seja, nossas próprias necessidades, perplexidades e dificuldades, não interfiram nessa observação. O altruísmo, entendido aqui como ausência do ego, é um pré-requisito para aprendermos algo do próximo.

Quando uma pessoa ama a si mesmo não existe nada entre o que ama e o que é amado. Mas quando ama o próximo, seu pequeno ego costuma intrometer-se. Portanto, amar ao próximo como a si mesmo significa amar sem nehuma intromissão do próprio ego; significa alcançar o altuísmo perfeito, eliminar todo e qualquer vestígio de egoísmo.


(IV) A ciência

Atualmente acreditamos que a "ciência" é a fonte verdadeira do conhecimento a respeito do mundo que nos rodeia. Ela conta com a ajuda de instrumentos e equipamentos e, claro, de teorias e hipóteses que norteiam seus estudos.

Aqui Schumacher vê um problema importante. Sim, é verdade que a ciência está a cargo de tudo isso, mas seria o mesmo que dizer que uma grande obra de arte se limita aos materiais que a compõe. É como se o inferior ocupasse o lugar do superior.

Ele explica que as ciências grosso modo podem ser divididas em dois grupos ou dois "graus":

(a) Ciências descritivas: botânica, geografia, zoologia, história, biologia etc. Estas ciências se ocupam de toda a verdade. Aqui há classificações, regularidades observadas, conjecturas, teoremas com diferentes grau de plausibilidade, mas nunca provas.

(b) Ciências instrutivas: física, química, matemática etc. Estas ciências se ocupam de partes ou aspectos da verdade que são úteis para manipulação. Portanto, elas tratam somente do aspecto morto da natureza. Dado que seu objetivo é produzir resultados repetíveis e previsíveis, e dado que vida, consciência e autoconsciência são elementos que possuem "vontade própria", essas ciências não podem levá-los em conta. Aqui é possível falar de provas, de "comprovação científica".

Do ponto de vista científico, especialmente no caso das ciências instrutivas, não faz sentido distinguir entre o que podemos conhecer (epistemologia) e o que realmente existe (ontologia). Isso é importante entender porque as ciências, ao concentrarem-se no aspecto aparente do mundo, não são capazes ipso facto de dar-lhe sentido ao que estudam. As ciências, afinal, têm a ver mais com fertilidade (produzir resultados num campo previamente delimitado) do que com veracidade (explicar o mundo e sua estrutura). É por isso que as ciências descritivas, quando mais amplas se pretenderem, ou seja, quanto mais abrangentes, mais globalizantes, mais será necessário aplicar-lhes fé. Não por outro motivo o evolucionismo nos parece uma doutrina religiosa: seus postulados não podem ser provados.

As ciências descritiva estão vocacionadas a alcançar o significado e o propósito para além das aparências, mas para isso têm de contar com o apoio da experiência interior. Se não for assim, estarão fadadas a serem meras coleções, meros inventários, meras descrições enciclopédicas.


4. Os tipos de problemas

Na vida encontramos dois tipos de problemas:

(a) Problemas convergentes. São aqueles que se resolvem mediante o emprego da inteligência. Quanto mais inteligência se lhes aplicamos, tanto mais as respostas ao problema convergerão. Os problemas enfrentados pelas engenharias são típicos dessa classe de problemas. Tai problemas se relacionam com o aspecto inerte do universo. Consciência e autoconsciência não estão presentes para "atrapalhar" sua solução.

(b) Problemas divergentes. São aqueles cuja solução provém de um par de contrários, os quais, tomados em si, são irrenconciliáveis. Os problemas das ciências humanas são típicos dessa classe de problemas. O problema de como educar uma criança é resolvido a partir do par disciplina/liberdade, e sua solução é irredutível a esses termos. Quanto mais lógica e consistente a proposta de solução tanto mais divergente será a solução proposta em contrário. As soluções aqui não são meramente lógicas, mas existenciais. A experiência interior, a qualidade e profundidade dessa experiência, é o fator determinante. As grande obras de literatura em geral se ocupam destes problemas.

A vida é maior do que a lógica. Um educador é melhor ou pior que outro não tanto por conta do método que empregue, embora, claro, isso possa ter alguma influência, mas mais por conta de fatores como amor, empatia, participação, compreensão, compaixão. São as faculdades de ordem superior as que se requerem para aplicar qualquer política, seja de disciplina ou liberdade. Mobilizar essas faculdades exige um elevado grau de autoconsciência.

Os problemas divergentes ofendem a mente lógica, que deseja fazer desaparecer a tensão entre os pares, inclinando-se para um ou para outro lado. No entanto, os problemas divergentes provocam, estimulam e agudizam as faculdades mais elevadas do homem, sem as quais não seria mais que um animal inteligente. Neegar-se a aceitar a divergência dos problemas divergentes faz com que estas faculdades permaneçam inativas e se atrofiem, e quando isso acontece o mais provável é que o "animal inteligente" se destrua a si mesmo.

Fonte: E.F. Schumacher, Una Guía para los Perplejos, Atalanta, Girona, Espanha, 2019.