21 de novembro de 2008

Santo Agostinho e a Igreja Ortodoxa

Em 1978, o Pe. Serafim Rose, de abençoada memória, publicou em duas edições da revista The Orthodox Word um estudo sobre o Bispo Agostinho de Hipona (+430) e a maneira como os cristãos ortodoxos deveriam encará-lo e venerá-lo.

[Foto: Detalhe do ícone em mosaico bizantino de Santo Agostinho, em um dos absides da Catedral de Cefalù, Itália, século XII. Ele é comemorado nos dias 15/28 de junho e 28 de agosto/10 de setembro, data de seu repouso.]

Ocorre que Agostinho escreveu e defendeu algumas doutrinas que são consideradas errôneas do ponto de vista cristão ortodoxo. Não há teólogos ortodoxos consagrados que neguem este fato. Desde contemporâneos de Agostinho, como São João Cassiano e São Vicente de Lérins, até os mais recentes, como o Arcebispo Filareto de Chernigov e o próprio Pe. Serafim Rose, todos reconhecem que Agostinho, no mínimo, exagerou ou expressou-se mal em alguns pontos cruciais de sua vasta obra.

No entanto, motivada pela renovação patrística que se iniciou na segunda metade do século XX, uma postura outrora estranha à devoção ortodoxa despontou na mente daqueles que, por zelo excessivo pela doutrina da Igreja ou amor próprio exacerbado, tomaram para si a tarefa de resgatar e restaurar a filosofia e o ensinamento dos Santos Padres da Igreja Ortodoxa. Este zelo excessivo engendrou uma prática de caça às bruxas cujas vítimas contam-se, além dos conhecidos hereges e apóstatas da Igreja, alguns santos e veneráveis hierarcas ortodoxos que, a despeito de seus erros, triunfaram por seu amor a Cristo e pelo arrependimento sincero e verdadeiro que demonstraram.

O mais famoso destes perseguidos cristãos ortodoxos é, sem sombra de dúvida, Santo Agostinho. E foi para defendê-lo de semelhantes ataques que o Pe. Serafim Rose reuniu seus estudos em um livro, expandindo-o com notas e introduções, e publicando-o com o nome de The Place of Blessed Augustine in the Orthodox Church [O Lugar do Abençoado Agostinho na Igreja Ortodoxa]. Nele, o Pe. Serafim explica por que Agostinho pode e deve ser considerado um modelo de santidade para nós, mesmo que não possa ser considerado uma grande autoridade em questões espirituais e teológicas. A visão ortodoxa sobre o Abençoado Agostinho, tanto dos Santos Padres do Oriente quanto do Ocidente, não pende para nenhum dos extremos, isto é, os ortodoxos reconhecem sua inquestionável grandeza assim como suas inquestionáveis falhas.

Os erros de Santo Agostinho

Não restam dúvidas de que a controvérsia mais famosa em torno de Agostinho é a questão da graça e do livre arbítrio. O excesso de lógica por parte de Agostinho (o que o Pe. Serafim chamava de over-logicalness), um traço característico da mentalidade e da cultura latina a qual pertencia, levou-o a distorcer a doutrina da graça. Conhecemos bem os pontos de discórdia entre o Abençoado Agostinho e São João Cassiano, que expôs, pela primeira vez em latim, a autêntica doutrina oriental da vida monástica e espiritual. Mas o que não conhecemos tão bem são os pontos de concórdia entre eles. Influenciados pela contenda em si, não somos informados que Cassiano e Agostinho discordavam como dois Padres da Igreja, ou seja, nenhum deles julgava o outro um herege. Ambos procuravam ensinar a doutrina ortodoxa da graça e do livre arbítrio contra a heresia de Pelágio. No entanto, no calor da contenda contra o pelagianismo, Agostinho cometeu seu erro fundamental, que foi o de superestimar o papel da graça e subestimar o papel do livre arbítrio. Embora Agostinho jamais tivesse negado o livre arbítrio (ele censurava quem o fizesse), seu tratado Da repreensão e graça apresenta uma exposição exagerada em favor da graça, praticamente neutralizando o livre arbítrio [1]. A posição de São João Cassiano, apresentada em suas Conferências, é muito mais ponderada, equilibrada, quando afirma que a graça coopera com o homem que se esforça na vida cristã [2]. Esta doutrina mais tarde ganharia o nome de sinergia, isto é, a cooperação da graça divina com a liberdade humana. Para a mentalidade monástica de São João Cassiano, não há qualquer contradição entre graça e liberdade, pois tal contradição só surgiria quando a lógica humana trabalhasse de maneira abstrata e divorciada da vida.

Ligada ao erro da graça divina está a idéia da predestinação. No entanto, cabe lembrar que Agostinho jamais ensinou a doutrina calvinista da predestinação, como muitas pessoas pensam. O que Agostinho fez foi ensinar a doutrina ortodoxa da predestinação, mas de maneira exagerada. A doutrina ortodoxa encontra-se neste trecho bíblico: Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho...e aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou (Romanos 8:29-30). O erro de Agostinho foi aplicar sua over-logicalness a fim de superar as dificuldades do mistério da predestinação. Afinal, se somos predestinados, precisamos nos esforçar para alcançar a salvação? Se não somos predestinados, podemos desistir de nos esforçar, já que não ajudaria em nada mesmo? São João Crisóstomo explica este trecho: “O Apóstolo refere-se ao conhecimento anterior a fim de que nem tudo seja explicado pelo chamado... Pois se apenas o chamado fosse suficiente, então por que nem todos foram salvos? Portanto, ele afirma que a salvação dos chamados não se cumpre somente pelo chamado em si, mas também pelo conhecimento anterior, sendo que o chamado não é compulsório nem forçoso. Por conseguinte, todos foram chamados, mas nem todos obedeceram” (Homilia XV sobre Romanos). No entanto, uma das exegeses mais graves do Abençoado Agostinho foi em relação a I Timóteo 2:4 (Deus quer que todos se salvem, e venham ao conhecimento da verdade). Agostinho ensinava que Deus não quer literalmente que todos se salvem, pois se Ele predestina somente alguns para serem salvos, então Ele não poderia querer que todos se salvem. Portanto, Agostinho explicitamente defendeu a idéia de que Deus não quer que todos se salvem, o que é, sem dúvida, uma distorção grave da doutrina ortodoxa. No entanto, o Pe. Serafim Rose é claro ao afirmar que não foram propriamente as doutrinas erradas do Abençoado Agostinho que engendraram os posteriores predestinacionismos extremistas do Ocidente, mas a mentalidade super-lógica que sempre grassou entre os povos ocidentais. Tivesse Agostinho ensinado suas doutrinas no Oriente, provavelmente os predestinacionismos extremistas não teriam se desenvolvido, mas Agostinho continuaria sendo visto da maneira como sempre foi, ou seja, como um venerável Padre da Igreja que, em função de seus erros, situa-se abaixo dos grandes Padres do Oriente e Ocidente.

Santo Agostinho ao longo dos anos

Na Gália do século V, a doutrina do Abençoado Agostinho continuou a produzir controvérsias, mas apenas moderadamente. Por exemplo, Próspero de Aquitânia, o principal discípulo de Agostinho, admitiu, alguns anos após a morte de seu mestre, que Agostinho de fato havia se pronunciado muito rudemente (durius) quando defendera a idéia de que Deus não desejava que todos se salvassem (Respostas aos Capitula Gallorum, VIII). Em sua obra póstuma O Chamado de Todas as Nações (De vacatione omnium gentium), Próspero revela que a doutrina de Agostinho abrandou-se consideravelmente antes mesmo de sua morte. Nesta obra, Próspero esclarece que a graça não compele o homem, mas age em harmonia com o livre arbítrio humano.

[Foto: O mais antigo ícone de Santo Agostinho, do século VI, na Biblioteca da Igreja de São João Laterano, Roma.]

No século VI, a controvérsia agostiniana havia cessado, e a imagem de Agostinho permaneceu a mesma de sempre: a de um Padre da Igreja. Uma das maneiras mais claras de apurarmos esse dado é quando, no 5º Concílio Ecumênico, seu preâmbulo lista Agostinho como Santo Padre ao lado de santos como Atanásio, Basílio, Gregório, Cirilo, Proclo e Leão. O Papa de Roma, Vigilius, embora estivesse presente em Constantinopla, recusou-se a participar do Concílio. Meses mais tarde, aceitando a autoridade do Concílio, retratou-se de seu erro citando como exemplo as próprias retratações de Agostinho em relação a suas obras. É evidente, portanto, que no século VI Agostinho era reconhecido como Padre da Igreja.

No entanto, foi somente no século IX que o Abençoado Agostinho tornou-se controverso no Oriente, em função da contenda sobre o Filioque (a doutrina segundo a qual o Espírito Santo procede do Pai “e do Filho”, e não somente do Pai, conforme sempre ensinado no Oriente). Pela primeira vez, um Padre da Igreja grego (São Fócio, o Grande) examinou minuciosamente uma parte da teologia de Agostinho. Anteriormente, somente Padres ocidentais, embora sempre no espírito ortodoxo, haviam feito isso, e sempre em latim. Em sua Carta ao Patriarca de Aquiléia, que era um dos principais apologistas do Filioque no reino de Carlos Magno, São Fócio responde algumas objeções, das quais a principal seria de que “os grandes Ambrósio, Agostinho, Jerônimo e outros escreveram que o Espírito Santo procede também do Filho”. São Fócio respondeu: “Se dez ou mesmo vinte Padres disseram isso, 600 e muitos mais não disseram. Quem ofende aos Padres? Não seriam aqueles que, reunindo toda a piedade destes poucos Padres em umas poucas palavras, os colocam contra os concílios? Ou seriam aqueles que, em sua defesa, escolhem os demais Padres?” São Fócio continua: “Não ensinaram eles em condições complicadas, o que acarretou muitos Padres a, em parte, expressarem-se imprecisamente, em parte adaptarem-se às circunstâncias vigentes, contra ataques de inimigos, e às vezes por ignorância, a qual também estavam sujeitos?... Se alguns falaram com imprecisão, ou por alguma razão desconhecida desviaram-se do caminho certo, nós os admitimos na lista dos Padres como se não o tivessem dito, por causa de sua retidão de vida e virtude ímpar e fé, embora falhos nos demais aspectos. Nós, no entanto, não seguimos seus ensinamentos naquilo em que se desviaram da verdade... Nós não adotamos as doutrinas em cujas áreas sabemos que erraram, mas mesmo assim os abraçamos enquanto homens. Portanto, no caso daqueles que ensinaram que o Espírito procede do Filho, não admitimos que se oponham à palavra do Senhor, mas também não os lançamos fora da categoria de Padres”. O Pe. Serafim explica que se Agostinho tivesse conhecido a doutrina da Santíssima Trindade, ele não teria ensinado que o Espírito procede “do Filho”; Agostinho abordou a questão de um ponto de vista “psicológico”, inadequado à abordagem oriental nas questões sobre o conhecimento de Deus. No entanto, está claro que, mesmo num grau inferior e mesmo sob escrutínio oriental, Agostinho ainda assim era considerado santo e Padre da Igreja.

A questão da santidade de Agostinho

Nos primeiros séculos da Cristandade, a palavra “abençoado” era usada de maneira mais ou menos intercambiável com a palavra “santo”. Como não havia canonização formal naqueles tempos, a aclamação baseava-se em veneração popular. Por exemplo: São Martinho de Tours, um inquestionável santo e taumaturgo do século IV, era chamado por São Gregório de Tours de “abençoado” ou “beato” (beatus) e, às vezes, “santo” (sanctus); São Fausto de Lérins, no século V, referia-se a Agostinho como “beatíssimo” (beatissimus), enquanto São Gregório, o Grande, no século VI, referia-se a ele como “abençoado” ou “beato” (beatus), ou ainda “santo” (sanctus); São Fócio, no século IX, o chamava de “santo” (agios). No entanto, nos tempos de São Marcos de Éfeso, no século XV, a palavra “abençoado” começou a ser empregada para designar os Padres de menor autoridade; assim, São Marcos dizia “Abençoado Agostinho”, “Abençoado Gregório de Nyssa”, “Divino Ambrósio”, “Gregório, o Teólogo, grande entre os santos”, embora ele mesmo não tenha sido muito consistente nos critérios. Até hoje, na Rússia, a palavra blazhenny é usada para os Padres em torno dos quais houve alguma controvérsia, como Agostinho e Jerônimo, no Ocidente, e Teodoreto de Ciro, no Oriente, bem como para loucos-por-Cristo canonizados e não-canonizados e pessoas santas recentemente falecidas mas que ainda não foram canonizadas. Na Grécia, a situação é mais ou menos a mesma, embora lá seja mais comum a expressão “Santo Agostinho”. O teólogo grego Eustratius Argenti, bem como São Tikhon de Zadonsk, na Rússia, fizeram uso das obras de Santo Agostinho como se ele fosse um Padre da Igreja, embora tivessem reservado muito mais espaço para os Padres orientais. São João (Maximovitch) de Shanghai e San Francisco, ao ser designado bispo da diocese russa na França, encomendou a redação de um ofício de louvor a Agostinho.

Em suma, embora Agostinho não seja formalmente canonizado pela Igreja Ortodoxa e tenha cometido alguns deslizes e erros graves em determinados pontos de sua vasta obra, todos os ortodoxos podem e devem encará-lo como um Padre da Igreja que, embora de grau inferior a outros consagrados Padres, é um modelo de retidão, fé e virtude. Ninguém, portanto, pode ser censurado por chamar Agostinho de “Santo Agostinho”.

* * *

No dia 12 de outubro de 1975, o Pe. Serafim Rose enviou uma carta ao Pe. Igor Kapral, atual Metropolita Hilarion de Nova York e primaz da Igreja Ortodoxa Russa no Exterior, pedindo-lhe alguns conselhos sobre como lidar com os “super-ortodoxos” que insistiam em condenar Agostinho por completo. Nela, o Pe. Serafim resume sua posição a respeito do Abençoado Agostinho.

29 de setembro/12 de outubro de 1975
São Ciríaco

Caro Padre Igor,

... Agora, algo que, enfim, não é um pedido, mas uma expressão de nossa profunda preocupação com a atual missão ortodoxa. O Pe. N, em sua última edição de Witness, fez mais um ataque totalmente infundado contra o Abençoado Agostinho. Todos nós sabemos das doutrinas errôneas do Abençoado Agostinho sobre a graça – mas por que essa tentativa “fundamentalista” de destruir totalmente a imagem de alguém a quem jamais, na tradição ortodoxa, foi negado um lugar entre os Padres da Igreja? O Pe. Teodoritos, que sem dúvida expressa a opinião de outros zelotes da Grécia e da Santa Montanha, escreve-nos que sem dúvida aceitam Agostinho como santo, porque São Nicodemos da Santa Montanha aceita. Nosso Vladika João [São João de Shanghai e San Francisco] tinha um ofício composto a ele e tinha grande devoção por ele. São Nicodemos o introduziu em nosso calendário oriental (assim como o Vladika João fez com São Patrício), e nossos Padres russos do século XIX seguiram seu exemplo. O 5º Concílio Ecumênico classifica-o como autoridade teológica no mesmo nível de São Basílio, Gregório e João Crisóstomo, sem distinções. Os contemporâneos de Agostinho que dele discordavam (São Vicente de Lérins, São João Cassiano) corrigiram seus ensinamentos sem mencionar seu nome, por respeito, e muito menos o chamaram de “herege”. Outros contemporâneos seus, inclusive grandes Padres, se dirigiam a ele com enorme respeito. A tradição ortodoxa universal o aceita, sem a menor sombra de dúvida, como um Santo Padre, embora com falhas em suas doutrinas – mais ou menos como São Gregório de Nyssa, no Oriente. Por que, então, essa estranha campanha “protestante” para declarar o Abençoado Agostinho um herege, e condenar qualquer um que discorde dessa posição? Isto muito nos perturba, não tanto por causa do Abençoado Agostinho (afinal, ele era um Padre de menor peso do que os demais), mas por causa do doentio espírito “partidário” que ameaça toda a missão ortodoxa de língua inglesa. O Pe. N diz mais ou menos assim: se vocês não concordarem exatamente com o que diz o Pe. P, então vocês não são ortodoxos! Se você recomenda um catecismo do século XIX (como Vladika João sempre fazia com os convertidos), então você é um latino; se você ler Unseen Warfare [Batalha Invisível], então você está sob influência latina; se você se recusar a acreditar na evolução (!), então você está sob influência ocidental!!!

Compartilhamos nossas preocupações com o senhor porque realmente estamos sendo desmotivados por esta postura doentia, de zelo não com entendimento [Romanos 10:2]. Nós e outros tentamos nos comunicar gentilmente com o Pe. N e o Pe. P sobre estas coisas, mas a impressão é que nenhuma comunicação é possível; eles estão “certos” em todos os assuntos, eles se acham “especialistas”, e nenhuma outra opinião é possível....

Por favor, perdoe-nos por lhe incomodar com tudo isso. Nós gostaríamos muito de saber o que pensa a respeito disso tudo. Haveria alguma maneira de persuadi-los a serem menos temerários? Parece que há uma pessoa entre os “russos” que eles demonstram algum respeito – todos estariam sob “influência ocidental”. (Isso é schmemanismo!) Como fazê-los ver, antes que seja tarde demais, que todos nós devemos ser humildes e que todos nós não devemos pensar grande coisa de nossa própria “teologia”, que estamos todos nós quiçá sob “influências ocidentais” dos mais variados tipos (isso está muito claro no caso do próprio Pe. N), mas que isso não nos exclui da Ortodoxia, na medida em que estamos nos esforçando para entender a verdade.

Pedimos suas orações por nós.

Com amor em Cristo,
Serafim, monge

* * *

Notas:

[1] “Vós vos atreveríeis a dizer que quando Cristo rezou para que a fé de Pedro não falhasse, ela mesmo assim teria falhado caso Pedro assim o quisesse? Como se Pedro pudesse querer outra coisa além daquilo que Cristo quis que ele quisesse” (capítulo 17).

[2] “Ele disse: E a sua graça para comigo não foi vã, antes trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus, que está comigo (I Coríntios 15:10). Quando ele diz trabalhei, ele demonstra o esforço de sua própria vontade; quando ele diz todavia não eu, mas a graça de Deus, ele aponta o valor da proteção divina; quando ele diz comigo, ele afirma que a graça coopera com ele quando não se encontra indolente e desleixado, mas trabalhando e se esforçando” (XIII, 13).