24 de novembro de 2008

O sentido do Natal

No dia 23 de dezembro de 2001, o jornal grego Eleftherotypia publicou um curto e complexo artigo do Metropolita Hierotheos de Nafpaktos sobre o sentido do Natal [1]. A correria para comprar presentes e enfeitar as casas oculta uma situação trágica: o produto de uma visão de mundo religiosa.

Para muitos isso representa uma surpresa. Afinal, não é bom que as pessoas tenham uma visão de mundo religiosa? Não.

Religião, conforme explica o Metropolita Hierotheos e o Pe. João Romanides neste e em outros artigos, é uma maneira mágica de se relacionar com Deus, cuja origem está na disposição decaída humana em formular doutrinas metafísicas que expliquem o Incriado, isto é, Deus. A metafísica tem por característica essencial a tentativa de demonstrar, de maneira lógica e racional, como os elementos que compõem a Divindade se relacionam entre si e com o mundo. Por conseguinte, a metafísica frequentemente implica em uma correspondente visão cosmológica. O cosmo, isto é, o mundo criado, passa então a ter uma relação perfeitamente direta e lógica com o Incriado, e é a partir daí que surgem as diversas práticas religiosas. A religião, portanto, tenderá a reintegrar o homem ao mundo das idéias, diluindo-o novamente no Ser Supremo, por meio de ritos e práticas.

A vinda de Jesus Cristo acabou com a religião. Não apenas com as religiões em geral, mas com a religião enquanto tal. A Igreja Ortodoxa, fundada por Cristo no dia de Pentecostes, não é uma religião. Na verdade, rotular a Ortodoxia de "religião" seria não apenas errado mas ofensivo. Nossa tradição não é exterior, aparente, ritualística, mas interior, néptica, hesicasta. Não somos indivíduos buscando nos conformar da melhor maneira, cosmológica e metafisicamente falando, a Deus, mas somos uma comunidade -- uma Igreja -- buscando internamente a união com as energias divinas.

[Foto: Um dos encontros do Metropolita Hierotheos com o Ancião Sofrônio (Sakharov)].

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A festa do Natal de Cristo não pode ficar confinada somente a circunstâncias meramente sentimentais, ou seja, a enfeites, a interpretações intelectuais e racionalistas, a esquemas moralistas. A festa tem um sentido muito mais profundo e existencial. Se permanecermos no nível meramente exterior, então estaremos infligindo fome e sede a nós mesmos, privando-nos do sentido da vida e da liberdade existencial.

A Encarnação de Cristo era considerada e celebrada pelos Padres da Igreja e pela comunidade eclesiástica em geral como sendo a abolição da religião e a sua transformação em uma Igreja. De fato, o memorável Pe. João Romanides dizia, de maneira categórica, que Cristo se fez homem para nos libertar da doença da religião.

A palavra “religião” é mencionada nas epopéias de Homero e usada por Heródoto para expressar a adoração e a honra que uma pessoa tinha de oferecer a Deus. Etimologicamente, a palavra religião [em grego, θρησκεία] é derivada de uma palavra antiga que implica em “ascender”, ou seja, a palavra religião implica na ascese do homem a Deus. Até mesmo a palavra homem [em grego, άνθρωπος] é etimologicamente derivada da expressão “olhar para o alto”, ou seja, também implica em ascese.

No entanto, à primeira vista, parece que uma ascese pressuporia a aceitação da essência da metafísica, de acordo com a qual a alma de uma pessoa decaiu do impessoal e imortal mundo das idéias e está enclausurada num corpo, tendo de se livrar desse corpo-signo-túmulo e retornar ao mundo das idéias. Até mesmo a palavra latina religio – da qual se deriva a palavra religião – significa, de acordo com os dicionários, a união-junção-unidade do homem com Deus; ela também denota o mesmo fato, ou seja, a essência e o conteúdo da metafísica. De fato, ela também pressupõe – a exemplo das religiões orientais – uma expressão impessoal, anônima, da humanidade, dado que o homem tende a desaparecer como uma gota d´água no oceano do Ser Supremo e, por conseguinte, a eliminar a persona.

Conforme ensinava o Pe. João Romanides, o termo “religião” implica na relação do Incriado com o criado e, por conseguinte, na relação das representações do Incriado com noções e palavras do pensamento humano, sendo que tais relações são, é claro, o fundamento da religião e da adoração de ídolos. Portanto, neste caso, a face de Deus se perde, assim como a face da pessoa; o homem cai gravemente doente, dado que sua imaginação e seus vícios são cultivados ainda mais e, mais do que isso, podemos dizer que os chamados vícios naturalmente irrepreensíveis (fome, sede etc.) tornam-se vícios repreensíveis; causas de anomalias sociais por causa de ambições ilimitadas, ânsias injustas por bens e depravações sem-fim.

É famosa aquela frase de Feuerbach – repetida por Marx – de que “a religião é o ópio do povo”. Esse ponto de vista é aceitável – conforme verificamos no Oriente e nas visões religionizadas do Cristianismo Ocidental –, pois a religião estupidifica povos, mortifica sociedades e leva-as a tamanha inatividade que acaba tornando-as material de exploração para a instituição de tiranias que desprovêem a humanidade de seu direito inalienável à liberdade.

Eu gostaria de citar dois exemplos característicos das expressões religiosas.

O primeiro exemplo é o da religião budista. Sabemos que, de acordo com o budismo, o que tormenta a humanidade é o problema da dor, que se origina do desejo de viver. Daí, o objetivo final dos “iluminados” é sufocar essa paixão pela vida. A mortificação do desejo de viver é alcançada por um método especial chamado Yoga, que possui diversas variações, tais como o Hatha Yoga (união com o Brahma por meio de exercícios físicos), Karma Yoga (união com o Brahma por meio de feitos e rituais), Mantra Yoga (união com o Brahma por meio de cânticos e sílabas mágicas), Bhakti Yoga (união com o Brahma por meio da adoração absoluta de uma divindade ou do próprio guru), Jnana Yoga (união com o Brahma por meio do conhecimento místico), Kundalini Yoga (união com o Brahma por meio de atividades demoníacas), Tantra Yoga (união com o Brahma por meio de atos sexuais licenciosos). Através destes métodos, o homem supostamente alcança o Nirvana absoluto, o qual é a extinção de sua existência e seu desembaraço do desejo de viver, e cujo propósito último é evitar o Samsara – a reciclagem da vida, isto é, a reencarnação. Assim, o Atman pessoal é unido ao Brahma geral, assim como uma gota que adentra o oceano.

É óbvio que numa vida religiosa dessas não há personalidade; o homem é uma mera unidade, assim como não há sociedade; nenhuma vida social é encorajada, uma vez que esta vida é considerada um início de sofrimento.

O segundo exemplo origina-se das teorias de Anselmo de Canterbury, o teólogo escolástico que fundou o sistema cristão que prevaleceu no Ocidente e que tinha em mente o sistema feudal de organização social. Ocorre que o senhor feudal detinha honra e valor absolutos que não podiam ser violados, pois toda violação e todo distúrbio do sistema feudal – tido como obra de Deus – implicava na punição do infrator. Por conseguinte, dado que Deus é a forma suprema de justiça, que Ele possui honra e que instituiu a ordem na criação, então o infrator ou deve satisfazer o senso de justiça de Deus ou deve ser punido. Assim, Anselmo interpretou o sacrifício de Cristo na Cruz não como uma expressão de amor pela humanidade, mas como a expiação da justiça por Deus Pai. Esse sistema, aliado ao destino absoluto, engendrou enormes problemas no mundo ocidental – problemas pessoais e sociais, conforme analisados por Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Estes dois exemplos, um do Oriente e outro do Ocidente, indicam de onde Feuerbach formulou seu slogan “a religião é o ópio do povo”. Naturalmente, nós, ortodoxos, também cremos que se dermos à religião este tipo de definição, isto é, uma definição metafísica, então fatalmente ela se tornará o ópio do povo, pois destruirá toda vida pessoal, eliminará a liberdade pessoal, e desintegrará a vida social, transformando o homem de pessoa em unidade.

Porém, o Cristianismo surgiu na história da humanidade para acabar com a religião, e para instituir a Igreja. A palavra “Igreja” é um antigo termo grego que insinua uma comunidade, uma congregação populacional – uma municipalidade – que resolve seus próprios problemas. Naturalmente, com o termo “Igreja” não implicamos algo somente exterior; implica a comunhão pessoal da humanidade com Deus e seus concidadãos, conforme verificado nos profetas do Velho Testamento, nos apóstolos do Novo Testamento, nos Atos dos Apóstolos, onde todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum; e vendiam suas propriedades e bens, e repartiam com todos, segundo cada um havia de mister (Atos 2:44-45). Observamos esse fato nas comunas de monges, nos ensinamentos dos principais Padres da Igreja, e alcança até nosso tempo, conforme verificamos nas comunidades eclesiásticas narradas por Papadiamantis e nas memórias de Makriyannis. E sabemos muito bem, a partir de vários estudos, que tanto Papadiamantis quanto Makriyannis não eram pessoas religiosas, mas eclesiásticas, e não se inspiraram no puritanismo ocidental, mas na tradição hesicástico-néptica ortodoxa.

O maior problema dos cristãos ocidentais – e de muitos ortodoxos –, de acordo com Christos Yannaras, é a religionização do Cristianismo, transformando-o de Igreja em religião. Dessa maneira, eles cultivaram fundamentalismos, ódios, divisões, uma relação mágica com Deus, uma disposição competitiva entre si, uma visão autocentrada da vida, uma percepção utilitária e egoísta da sociedade, uma interpretação imaginária de tudo, uma abordagem sentimental da vida e, de maneira geral, a percepção de que os outros consistem – e são – uma ameaça à nossa existência.

Assim sendo, dadas estas circunstâncias, as belas árvores de Natal, as melodias sentimentais, as análises moralistas: tudo isso oculta criminosamente uma nudez existencial, transformando o homem num ser trágico.

Se os intelectuais contemporâneos investigassem o sentido do Natal de Cristo, concluiriam que, com Sua Natividade, Cristo aboliu a doença da religião e transformou-a em uma Igreja viva – com todos os sentidos autênticos que aí se consolidam. Tal é a carência do homem contemporâneo, que sofre da trindade trágica de Victor Frankl, a saber: sofrimento, culpa e morte, na medida em que percebe sua vida como sendo uma experiência pré-morte, uma morte existencial e eterna, e não apenas busca a experiência do prazer, mas, quiçá, através do prazer, busca a sobrevivência da existência.

Nota:

[1] O título original, em português, seria "A doença da religião". No entanto, a título de objetividade, decidi alterá-lo para "O sentido do Natal". Ademais, já há um ensaio do Pe. João Romanides cujo título é semelhante.