14 de fevereiro de 2025

Breve história da aurora da filosofia: Sócrates e Platão


1. História da filosofia

É fundamental estudar a história da filosofia porque ninguém pode se dizer “culto” sem sabê-la. Trata-se de estudar as grandes criações mentais do espírito humano e formar um juízo correto a respeito delas, seja evitando condenar o que não se disse, seja repetindo erros já cometidos no passado.

A história da filosofia é a história da luta do intelecto humano para atingir a verdade por meio da razão discursiva. Como tomista, Copleston acredita que há uma philosophia perennis atemporal que permiea a história e que tal filosofia é uma espécie de “tomismo amplo”.

2. Pré-socráticos (um vs. múltiplo)

A Jônia logrou preservar o espírito das civilizações mais antigas, enquanto no restante da Grécia reinava a barbárie e o caos político. Foi ali, em Mileto, na atual Didim (costa turca do Mar Egeu), que surgiu a filosofia, o exercício da reflexão racional. Egípcios e babilônios empreenderam cálculos práticos e astrológicos, mas a ciência e o pensamento enquanto tal foram criação do gênio grego.

Copleston acredita que a percepção da mudança, aliada à intuição de que “algo” permanece, levou os jônios aos primeiros passos da filosofia cosmológica. Esse “elemento primitivo”, essa “unidade”, foi sua busca principal: os jônicos estavam convencidos de que há um império da lei no universo. Suas soluções ainda eram muito simplistas pois não eram capazes de distinguir matéria de espírito, ou seja, ora o “elemento primitivo” era material, ora ideal.

Para Tales, considerado o “pai da filosofia”, o “elemento primitivo” era a água, enquanto para Anaxímenes, o ar (mediante condensações tende a solidificar-se e mediante rarefações tende ao fogo, o que de qualquer forma reduz a qualidade à quantidade). Para Anaximandro, trata-se da uma “substância sem limites”, do apeiron. De qualquer forma, todas as doutrinas são “materialistas” no sentido de que apontam algum elemento material como primitivo, mas não são materialistas stricto sensu porque não eram capazes de distinguir matéria e espírito. Estavam, segundo Copleston, “cheios da naiveté do espanto e da alegria da descoberta”.

Quanto a Pitágoras e a escola pitagórica, houve uma combinação de espírito científico com espírito ascético-religioso. Sua devoção à matemática, em especial em encontrar, como nas escalas musicais, uma proporção em números à totalidade da natureza, é marcante. E não só isso: para os pitagóricos, as coisas são números. É claro que disso surgiu uma miríade de caprichos e devaneios. No entanto, seu cuidado para com a alma foi a maior influência que Platão colheu dos pitagóricos.

Ainda no contexto do movimento e do problema do um e do múltiplo, Heráclito proclamava a irrealidade da realidade, ou seja, nada permanece, nada é estável. Em outras palavras, a unidade está na diversidade, ou seja, o um só existe na tensão dos opostos. Então, que não se diga que Heráclito ensinava que não há um “algo” que mude. Esse um, para ele, é o fogo, que se alimenta de matéria heterogênea e é feito da tensão, da luta, da dissipação, da ardência e do desaparecimento das coisas. O mundo é um fogo eterno, e as diferenças do mundo são o próprio um. Estamos diante, claro, de um panteísmo filosófico, e os estoicos herdariam de Heráclito esta cosmologia panteísta (uma razão universal que tudo ordena). O um-fogo é chamado de Deus, e cabe ao homem manter sua alma o mais “seca” possível, ou seja, esforçar-se para que sua razão e consciência, que lhe são “ígneos”, vençam o prazer e ascendam à vigília, sob pena de o mundo do “sono” lhe tornar úmido e apagar sua “igniedade”.

Algo em contraste a Heráclito, Parmênides ensinava que o um é, ou seja, que o devir, a mudança, é ilusão. Ora, se algo vem a ser, então vem do ser ou do não-ser. Se veio do ser, então já era. Se veio do não-ser, então não é, já que do nada nada vem. Note que a rejeição do movimento implica em “ver” o que não é sensível, ou seja, é introduzir uma distinção entre razão e sensação. Essa distinção será fundamental para Platão. Mas mesmo aqui, Parmênides ainda é materialista porque a realidade que a razão apreende é material, inclusive atribuindo-lhe finitude espacial esférica. Portanto, não estamos no campo do idealismo dentro do qual Platão se inserirá, mas podemos dizer que foi Parmênides uma espécie de “pai do idealismo”.

Um de seus discípulos, Zenão defendeu Parmênides dos ataques pitagóricos mediante engenhosas reductiones ad absurdum. Por exemplo, imagine uma linha. Ou ela tem magnitude, ou não tem. Se tem magnitude, será infinitamente divisível. Se não tem magnitude, não existe. Zenão mostra, assim, que os que zombam de Parmênides são também dignos de serem zombados. O mesmo tipo de raciocínio absurdo pode ser feito quanto ao som, ao espaço, ao movimento etc. No final das contas, o que indicou Zenão é que as quantidades precisam ser contínuas para dar cabo dos absurdos que ele apresentou.

Empédocles pode, portanto, ser visto como um intermediador entre Heráclito e Parmênides. Os objetos são uma mistura dos quatro elementos (terra, água, ar, fogo), os quais não vêm a ser nem desaparecem. Antes há forças físicas e materiais ativas (amor/harmonia, ódio/discórdia) que os unem. Leucipo e Demócrito, notórios atomistas, levaram o pensamento de Empédocles adiante concebendo infinitos e indivisíveis átomos, que se movem no vácuo. Os atomistas nunca explicaram o que moviam os átomos e que força os unia. Tal explicação puramente mecânica da realidade ressurgiu na era moderna no âmbito da física-matemática. Em particular, Demócrito ensinava que as sensações têm natureza mecânica, isto é, os objetos emitem “eflúvios” ou “imagens” compostas de átomos que se imprimem na alma, ela também composta de átomos. As diferenças qualitativas não estariam nas coisas, mas nas imagens (não há qualidades secundárias, portanto). Por conseguinte, todas as sensações são falsas, já que nada nelas corresponde à realidade. Curiosamente, Demócrito advogava a felicidade como o acúmulo de gozo e a minimização de problemas, alcançando-se assim uma “alegria” da alma que corresponde à saúde do corpo. Ora, mas se os objetos e almas são um conjunto de átomos, como é possível postular a liberdade ética com tal determinismo atomista? Anaxágoras, por sua vez, não concorda com Empédocles e diz que os elementos últimos não são os famosos quatro supracitados, mas são os materiais cujas partes são qualitativamente iguais ao todo (p.ex. ouro). Os objetos do cotidiano são compostos de “uma porção de tudo”, ou seja, todos os elementos primordiais estão nos objetos, apenas que um deles predomina em relação aos demais nos diversos objetos. A grama se transforma em carne porque as partículas de carne passaram a predominar sobre as partículas de grama. E a força que mantêm os elementos unidos é o nous ou mente, um princípio infinito e autogovernado, que não se mistura com nada, embora ocupe espaço. Eis o princípio espiritual e intelectual, embora ainda tímido e confuso.

3. Sócrates e o período socrático

Do foco no objeto, cujos frutos foram incertos – além de prolongado convívio com outros povos –, os filósofos gregos voltaram-se ao sujeito. Por isso o sofismo é caracterizado pela civilização e costumes humanos, ou seja, pelo microcosmo, por temas menos especulativos e mais práticos, em especial a retórica, ou, jocosamente falando, “a arte de ensinar os homens a fazer o injusto parecer justo”. Protágoras ficou conhecido pelo dito “o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são o que são, daquelas que não são o que não são”; em outras palavras, todos os homens têm a mesma tendência ética, mas os Estados comportam variedades específicas da lei de acordo com as circunstâncias vigentes. Não há aqui um clamor ao relativismo, mas, pelo contrário, à tradição e à autoridade. Pródico ensinava que na origem da religião os homens adoravam o sol, a lua, os rios, lagos etc. como deuses. Hípias, um polímata, ensinava que a lei frequentemente forçava o homem a agir contra a natureza. Ao contrário de Protágoras, Górgias sustentava que tudo é falso porque ou é eterno (o que é impossível) ou teria vindo-a-ser (o que também é impossível, acreditava ele). Ademais, o conhecimento também é uma ilusão porque se o ser está em duas pessoas ao mesmo tempo, como é possível se elas são diferentes uma da outra? Admitindo a absurdidade da filosofia, dedicou-se à retórica.

Quanto a Sócrates, Copleston admite como mais verossímil a versão de que Platão pôs em sua boa a teoria das ideias. De qualquer forma, Sócrates foi inegavelmente o pai do uso dos argumentos indutivos e das definições universais, ou seja, da busca dos conceitos fixos. Não que ela tenha teorizado a própria indução lógica, mas fez uso da dialética (ou simplesmente “conversa”, ou, tecnicamente falando, “maiêutica”, ou seja, como uma “mãe” que gera ideias verdadeiras na mente alheia), que partia de definições menos adequados às mais adequadas e universais (é a indução). Mas não nos enganemos: Sócrates não buscava apenas a verdade em si, o que certamente já é algo louvável, mas também a “vida reta”.

A sua “ironia”, pois, a sua profissão de ignorância, era sincera; ele não sabia, mas queria descobrir, e queria induzir os outros a refletir por si próprios e dedicar verdadeira meditação à obra supremamente importante de cuidar de suas almas. Sócrates estava profundamente convencido do valor da alma, no sentido do sujeito pensante e volitivo, e viu claramente a importância do conhecimento, da verdadeira sabedoria, caso se quisesse dar a atenção devida à alma.

Copleston aponta em Sócrates uma tendência à superintelectualidade, isto é, uma tendência a acreditar que o homem, quando sabe o que é certo, certamente irá fazer o que é certo, como se conhecimento e virtude fossem uma e a mesma coisa. Bem, isso é falso, como bem apontou Aristóteles em sua crítica a Sócrates. O médico aprendeu medicina, mas não necessariamente o justo aprendeu o que é justiça. [Martín Echavarría acusa os adeptosda REBT/CBT de assumirem tal postura socrática robótica]. A alma obviamente conta com partes irracionais, e o consentimento da vontade sofre influência não somente do intelecto, mas dos apetites sensíveis da alma. De qualquer forma, Copleston não deixa de notar que a ética de Sócrates permanece uma das glórias perenes da filosofia grega.

Por fim, cabe comentar acerca de alguns filósofos que, influenciados pessoalmente por Sócrates, continuaram seu pensamento em uma direção muito particular. São, por isso, chamados de socráticos menores. Euclides de Mégara (não confundir com o famoso matemático) concebia o um com o bem, identificando-o com Deus e a razão. Diodoro Crono identificava o atual e o possível, e disso extraía uma curiosa conclusão: só o atual é possível; então, por exemplo, se dissemos que é impossível que o mundo não exista, então jamais foi possível que o mundo não existisse. Antístenes, um dos filósofos cínicos (Copleston os inclui entre os socráticos menores), foi discípulo de Górgias antes de voltar-se a Sócrates. O traço que herdou de Sócrates foi sua independência da opinião pública vigente, seu desprendimento do aplauso alheio. Isso estaria muito bem não fosse por um detalhe: a ânsia de Antístenes por independência o fez desprezar a ciência e a arte, dedicando-se exclusivamente ao desprendimento dos desejos e à libertação das carências. Sócrates também zombava da opinião popular, mas não o fazia por ostentação, mas por fidelidade à verdade. Diógenes de Sinope, famoso cínico, chamava-se de “cachorro” (daí o nome “cínico”) e defendia a vida dos animais como um modelo a ser seguido, inclusive partilhando esposas e filhos e pregando o amor livre, zombando das convenções. Aristipo de Cirene defendia a ideia de que somente as sensações dão conhecimento certo e, portanto, o objetivo da vida é obter sensações prazerosas. Sócrates de fato ensinava que a felicidade é o motivo da virtude, mas não que o prazer seja o caminho exclusivo à felicidade.

4. Platão

a. Epistemologia. Conhecimento não é simplesmente percepção pelo simples motivo que o conhecimento usa termos e expressões que não são de maneira alguma perceptíveis (por exemplo, uma miragem, objetos matemáticos, o caráter de uma pessoa etc.). Ademais, a percepção sensível necessita da reflexão e do juízo para que faça sentido (por exemplo, os trilhos de uma via ferroviária perceptualmente convergem, mas mediante a reflexão sabemos que não). A percepção sensível capta somente aquilo que vem a ser, não aquilo que é. É por isso que um juízo pode ser verdadeiro sem que tal verdade dependa de alguém que forme o juízo. Por outro lado, analisar as partes de uma crença não a transforma em conhecimento (p.ex. enumerar exaustivamente as partes de uma carroça não significa conhecê-la). O conhecimento verdadeiro tem de ser estável, permanente, fixo, capaz de ser apreendido por uma definição clara e científica, por uma definição universal.

Os famosos níveis de conhecimento de Platão, elencados na República, são esquematicamente os seguintes:


No lado esquerda da linha central estão os estados da mente, enquanto no lado direito estão os objetos que lhes correspondentem. Ao mesmo tempo, na parte superior temos o estado de episteme (conhecimento), que se preocupa com arquétipos, enquanto na parte inferior temos a doxa (opinião), que se preocupa com imagens. Por exemplo, se alguém diz o que é a justiça com base em casos particulares então estará em estado de doxa, ao passo que se explica com base na apreensão da justiça em si mesma, se erguendo à forma, à ideia, ao universal, então estará em estado de episteme (ou gnosis). Mas há duas subdivisões em cada estado: a eikasia se refere à imagem do que é, enquanto a pistis se refere aos objetos reais, aos “animais ao nosso redor, e todo o mundo da natureza e da arte”. A dianoia é o pensamento empreendido com a ajuda da imitação dos segmentos inferiores e que começa por hipóteses e termina numa conclusão (é claro que aqui Platão se refere à matemática e à geometria quando, por exemplo, fala de dois círculos que se interseccionam, que evidentemente são círculos inteligíveis, não sensíveis). Por fim, a noesis usa as hipóteses da dianoia para dialeticamente (ou seja, sem imagens) ascender aos primeiros princípios e, por conseguinte, “destruir as hipóteses”. Toda esta ascensão, desde as imagens até os primeiros princípios, Platão a ilustra no famosíssimo mito da caverna (leia-o aqui)

b. As formas platônicas

Platão explica na República que toda pluralidade de coisas individuais implica em uma ideia ou forma correspondente, que é a natureza captada pelo conceito. A realidade, portanto, não é captada propriamente pelos sentidos, mas pelo pensamento. As formas são descobertas, não inventadas, e mais: todas as formas, ideias, essências, têm de ter uma essência genérica suprema. De qualquer forma, Copleston entende que Platão, embora tenha usado uma linguagem espacial para referir-se às formas, não queria dizer que elas existissem num espaço separado das coisas. Platão, aliás, frequentemente faz isso: usa uma linguagem “mítica” por meio da qual não pretende que seja tomada com absoluta exatidão.

Como bem observou Constantine Cavarnos em seu Orthodoxy and Philosophy, Platão não indicava que as formas existam na mente divina, mas no Timeu lemos que tampouco existem no Demiurgo. Eis porque apontar em Platão algum teísmo seria temerário.

Na República o bem é comparado ao sol, cuja luz torna os objetos visíveis, lhes conferindo excelência, valor e beleza. Assim também é o bem, que não é apenas um princípio epistemológico, mas ontológico, um princípio do ser. O bem na República é idêntico à beleza do Banquete. Portanto, o absoluto é ao mesmo tempo imanente (pois as coisas o materializam, o “copiam”, o manifestam) e transcendente até o próprio ser. As metáforas de participação (methesis) e imitação (mimesis) precisamente indicam essa distinção entre absoluto e relativo, mas ao mesmo lhes conferem certa comunicação. Mas como explicar que algo transcenda absolutamente os objetos de conhecimento e ao mesmo tempo “esteja” neles? Platão não escreveu nada sobre a doutrina integral do Um. Os neoplatônicos mais tarde introduzirão a emanação como explicação (a “centelha divina”), mas é inaceitável deduzir que tal doutrina encontrava-se originalmente em Platão. O mais provável, raciocina Copleston, é que Platão tinha em mente que os ideais de justiça, temperança etc. estejam fundados no princípio absoluto do bem, mas não parece possível afirmar que a razão divina é o “lugar” das ideias.

Resta tratar de um assunto espinhoso: a relação das formas com os números. Copleston – e estou plenamente de acordo com ele nisso – não esconde seu aborrecimento em lidar com isso porque se trata do “tema mais infeliz” da filosofia de Platão. Em suma, o motivo de Platão para identificar as formas com números parecer ser o de encontrar o princípio de ordem do misterioso e transcendental mundo das formas. É como se houvesse um esquema por trás da inteligência dos corpos naturais. Os corpos não “são” números, mas “participam” dos números porque, claro, comportam um elemento contingente que não tem nada de “matematizável”. Platão explica, de maneira um tanto críptica, que há uma tríade de números que provê a proporção dos triângulos que compõem o mundo corporal: no caso do triângulo isósceles é  1, 1 e √2, e no caso do triângulo escaleno é 1, √3 e 2. Observe que há em ambos um elemento irracional que precisamente expressa a contingência nos objetos naturais. A “ilimitação” da irracionalidade parece se identificar com o elemento material, o elemento de não-ser, presente em tudo o que vem a ser. Copleston identifica certo casamento entre o idealismo e a pan-matematização platônicos: ambos se apoiam no sentido de que a matemática ajuda a “elevar” o pensador para encontrar a verdadeira realidade e ser da natureza no mundo ideal.

c. A psicologia platônica

Platão é claramente um dualista: a alma é distinta do corpo, embora ambos se comuniquem. Em seus diálogos, por exemplo, encontramos a admoestação a rejeitar certos tipos de música para que não prejudiquem a alma, a afastar-se de hábitos corporais viciosos para que não escravizem a alma.

A alma seria tripartite: partes racional, irascível e apetitiva, essas duas perecíveis. Embora no Fedro e na República se diga que a alma como um todo sobrevive, parece provável que só a

racional sobreviva efetivamente (as demais partes permanecem como potencialidades).

Por que Platão afirma a natureza tripartite da alma? Principalmente em razão do fato evidente do conflito interno da alma. No Fedro ocorre a célebre comparação na qual o elemento racional é relacionado a um cocheiro, e os elementos irascível e apetitivo a dois cavalos. Um cavalo é bom (o elemento irascível, que é o aliado natural da razão e “ama a honra com temperança e modéstia”), o outro é mau (o elemento apetitivo, que é “amigo de toda revolta e insolência”); e, enquanto o cavalo bom é facilmente dirigido de acordo com os comando do cocheiro, o cavalo mau é indisciplinado e tende a obedecer à voz da paixão sensual, de maneira que precisa ser detido com o chicote.

d. Ética

Platão é eudemonista, ou seja, sua ética é voltada à busca do mais alto bem, isto é, da felicidade. E em que consiste a felicidade para Platão? Consiste no desenvolvimento da personalidade enquanto ser racional, no correto cultivo da alma, no bem-estar geral e harmonioso da vida. Platão admite, claro, que a satisfação do desejo, desde que sejam desejos inocentes e usufruídos com moderação, é parte da felicidade. No entanto, os mais elevados prazeres são aqueles que não são antecedidos de dor, ou seja, dos prazeres intelectuais.

O summum bonum ou felicidade do homem inclui, claro, o conhecimento de Deus – o que é óbvio, já que as formas são as ideias de Deus; contudo, se o Timeu for tomado de maneira literal e se supor que Deus está separado das formas e as contempla, a contemplação das formas pelo próprio homem, que é um componente integral de sua felicidade, o tornará similar a Deus. Mais ainda, homem algum poderá ser feliz a menos que reconheça a ação divina no mundo. Platão pode dizer, por conseguinte, que a felicidade divina é o padrão da felicidade do homem.

Diz Platão, portanto, que “os deuses devotam cuidado àquele cujo desejo é se tornar justo e ser como Deus, tanto quanto pode o homem alcançar a semelhança divina através da busca da virtude”. No entanto, somente o filósofo pode ser virtuoso porque somente ele detém o conhecimento necessário do que é o bem para o homem. É ele, o filósofo, que possui o conhecimento exato para nos guiar à virtude. Por isso o homem vulgar escolhe o mau: ele não sabe que o mau lhe prejudica e, assim, eleva determinado aspecto do mau, mesmo sabendo que em si é mau, à condição de bem e a ela se apega.

e. Política

Platão ensina que não há uma “moral estatal” acima da moral individual. O homem, por ser um animal social, se organiza socialmente e tal sociedade, portanto, é uma instituição “natural”. Ora, se é assim, as “morais” estatal e individual são uma e mesma moral: a moral humana. Eis por que Platão entendia que era coisa imperativa determinar a verdadeira natureza e função do Estado.

Na República, em suma, Platão estabelece três classes no Estado ideal: artesãos na base, a classe auxiliar ou militar logo acima e os guardiões (ou guardião) no topo. A família e a propriedade privada devem ser abolidas nas duas classes mais altas para o bem do Estado. Dada a evidente dificuldade em organizar tal Estado, “Sócrates” propõe como medida mínima investir o rei-filósofo de poder: é ele, que conhece o mundo das formas, que poderá tomá-las como modelo para a formação do Estado. A educação daqueles escolhidos como governantes terá por base a harmonia musical, a ginástica, a matemática e a astronomia. A matemática em especial, como já dissemos acima, terá a função de atrair o educando à verdade para aque adquira o espírito da filosofia. Contudo, a matemática é um mero prelúdio à dialética, cujo fim será alcançar a visão intelectual com o auxílio exclusivo da razão. O Estado, vê-se, não serve a uma classe, mas para o guiamento da vida reta: diz Platão que “todo o ouro que está sob e sobre a terra não é bastante para trocar pela virtude”. Até mesmo a classe escrava, inferior às três classes que mencionamos, deve ser tratada com ainda mais justiça e, explica Platão mui inteligentemente, pois quem reverencia a justiça e odeia a injustiça descobre que a essa classe se pode ser facilmente injusto.

Fonte: Frederick Copleston, Uma história da filosofia, Editora Ecclesiae, Campinas, SP, Brasil, 2021.