Segundo Tomás de Aquino, o ente e a
essência são as primeiras coisas que são captadas pelo intelecto. Assim, em sua
obra seminal Do ente e da essência, Tomás discorrerá sobre a distinção
entre estes dois conceitos e, mais ainda, demonstrará a distinção real entre o
ser e a essência.
“Ente” é aquilo a que atribuímos as dez
categorias. “Essência” é o que é comum a todos os entes que são colocados nos
diversos gêneros e espécies. (Humanidade é a essência de homem, por exemplo). A
essência é aquilo pelo qual o ente tem o ser que é. É como se o ente
“derivasse” seu ser da essência (forma/natureza). O ente, cabe lembrar, está
propriamente nas substâncias, enquanto nos acidentes está apenas “de certo modo”
e “sob certo aspecto”.
Substâncias compostas
Chamamos algumas substâncias de “compostas”
porque há nelas forma e matéria. As definições das sustâncias compostas, que apontam
(“significam”) as essências dessas substâncias, têm de conter tanto a forma
quanto a matéria. Mas aqui Tomás faz uma observação importante: a essência não
é uma relação entre forma e matéria, pois isso nos forçaria a concluir que a
essência, sendo uma relação, se reduziria a um mero acidente.
No entanto, e aqui cabe uma reflexão importante,
sabemos que o princípio de individuação, segundo Tomás de Aquino, é a matéria
designada, ou seja, não a matéria como princípio, mas a matéria já devidamente
designada por uma quantidade. Isso já sabemos dos inúmeros estudos de tomistas
dos mais variados tipos. Ora, na definição de homem – ou seja, em sua essência –,
não há obviamente nada que indique que “homem” é este osso e esta
carne. Que homens tenham ossos e carne é óbvio, mas também é óbvio que
estamos falando de homens em geral, não deste ou daquele homem em particular.
Em outras palavras, na essência do homem há um corpo cuja essência contém, entre
outros aspectos, a capacidade de designar-se (materializar-se
quantitativamente) em três dimensões. Mas o corpo não contém somente esta
capacidade (“perfeição”). Ele também contém a capacidade(“perfeição”) da vida.
Vejamos o que diz Tomás (grifos meus) e deduzamos em seguida algumas suspeitas:
Acontece, porém, que na própria realidade aquilo que possui uma só perfeição alcance também uma outra perfeição além daquela, como é claro no caso do homem, que possui tanto a natureza sensitiva quanto, além dela, a intelectiva. Do mesmo modo, sobre esta perfeição de possuir tal forma que nela possam designar-se três dimensões pode advir alguma outra perfeição, como a vida ou alguma outra coisa. [...] Mas pode também o nome “corpo” significar certa coisa que tem uma forma a partir da qual possam designar-se na coisa três dimensões, qualquer que seja esta forma, podendo a partir dela provir alguma outra perfeição ou não.
Tomás chega a propor que “corpo” é gênero de
“animal”. A meu ver isso abre espaço para entendermos que, depois da morte – ou
seja, depois que a potência vegetativa da alma perde ação sobre a “matéria
designada nas três dimensões” – do corpo, presente na essência do homem, “pode
advir alguma outra perfeição” que não seja a matéria designada. Em outras
palavras, o que morre com o “corpo” não é o corpo, mas a matéria designada, já
que o corpo necessariamente – pois é da essência do homem – terá de advir de
outra maneira. Claro que isso precisa ser mais bem esclarecido pois, uma vez
perdido o princípio de individuação com a morte da matéria designada, o que
individuaria os seres humanos no pós-morte? Tomás não aprofunda o tema aqui,
mas é notório que haja uma abertura para “outra perfeição”, a qual genericamente
podemos chamar, à moda do próprio Tomás, de “vida”.
Onde “está” a essência?
Tomás critica os platônicos por situarem a
essência fora dos singulares porque, se fosse assim, não poderíamos declarar
sobre os (“predicar dos”) singulares nenhum gênero ou espécie. Por outro lado,
obviamente não podemos dizer que a essência esteja em algum (ou apenas alguns)
singulares, sob pena de não ser essência de todos os singulares significados.
A solução? A essência, afirma Tomás, é uma imagem
particular inteligida, à exemplo de uma estátua que por semelhança
representasse os seres humanos. A partir dos acidentes de uma coisa inteligimos
sua natureza (essência).
As puras inteligências (substâncias simples)
No caso das puras inteligências, que estão
mais próximas do primeiro princípio, não há matéria designada e, portanto, suas
essências coincidem com suas formas. Não há “forma e matéria”, como nos homens,
mas somente forma. No entanto, Tomás toma o cuidado ao não atribuir-lhes “ato puro” porque, embora
não tenham matéria, têm potência.
O ser e a essência
Tomás claramente distingue “ser” de “essência”.
Posso inteligir o que é homem ou a fênix, mas isso não significa que por isso
homem e fênix tenham ser nas coisas. Mas de onde vem o ser das coisas? Não pode
vir da forma ou da essência porque teríamos de concluir que o homem, por
exemplo, é causa de si mesmo, o que é impossível. Assim, tem de haver um “Ente
Primeiro” que é apenas ser. Estamos falando, claro, de Deus. Eis que
descobrimos, de quebra, que a potência das puras inteligências está precisamente
na forma (que coincide com a essência, lembre-se), que está em potência para o
ser.
Mas qual a diferença entre uma pura
inteligência e outra? Tomás confessa que a desconhece. As puras inteligências
têm seu gênero a partir de sua imaterialidade, a diferença é tomada de seus
graus de perfeição, mas o que é precisamente essa diferença não sabemos.
Fonte: Santo Tomás de Aquino, O ente e a essência, Ecclesiae Editora, Campinas, SP, Brasil, 2022.