Como vimos em uma postagem anterior, Tomás
de Aquino ensinava que o ser é o actus essendi (ato de ser) participado
aos entes pelo Ato Puro, ou seja, o Ipsum Esse Subsistens (Próprio Ser
Subsistente, isto é, Deus). Importante notar que o ser não é coisa ou ente,
mas é ato. O ser, na verdade, é o que há de mais atual no ente. A
essência dos entes é atuada por um ser que não lhes é essencial, ou seja, o ser
não faz parte da essência dos entes. Por isso insistem os tomistas na famosa
distinção real (e não apenas lógica/mental) entre ser e essência.
No entanto, se esta distinção for
esquecida, isso significa que o ser “volta” a fazer parte da essência do ente.
Em outras palavras, o ser do ente é atuado por ele mesmo, e a distinção entre
ser e essência “volta” a ser meramente gnosiológica (lógica/mental). E mais: como o
ser não é mais participado, é forçoso concluirmos que o ser é unívoco (e não
mais análogo, como na analogia entis), o que deixa a noção de Ser no
mínimo altamente comprometida. Se o ser dos entes é atribuído mentalmente, será
igualmente forçoso concluir que o conhecimento dos entes se dará puramente pela
atividade mental. A distinção dos entes, embora nominal, reduz-se a apenas e
tão-somente mental. Realidade e razão tornam-se codependentes.
Despojar a realidade do ser e torná-lo algo
meramente mental tem consequências muito mais profundas do que se poderia
supor. Uma delas, e é a consequência que mais interessa ao liberalismo, é o
fato de que não há um padrão axiológico (de valores) real. Em outras palavras,
a “concepção de vida boa” perde seu contato com a realidade (pois o ser agora é
unívoco, e portanto os entes adquirem uma “planicidade” radical entre si). Assim,
quem agora estará no centro da personalidade humana não será mais a
inteligência, mas a vontade. O bom e o mau, o comportamento adequado ou
inadequado, não será mais contrastado pela inteligência com o mundo real nem assentado
pela vontade mediante a prática das virtudes, mas será determinado pela
vontade. A noesis passa a não mais orientar a praxis.
Em suma, sem a distinção entre ens per
participationem e Ens per essentiam o pensamento escorregará cedo ou
tarde para algum tipo de imanentismo. Pois note: as essências não comportam
gradações entre si. Um cavalo não é “mais” ou “menos” equino, assim como um
homem não é “mais” ou “menos” humano. Não faz sentido compararmos as essências de
homem e cavalo. Mas faz sim todo o sentido compararmos homem e cavalo quanto
ao ser: o homem tem mais ser que o cavalo, que por sua vez tem mais
ser que a água que bebe, e assim por diante. A essência é aquilo que diferencia
as espécies, enquanto o ser é aquilo que lhes confere comunidade (mesmo que em
graus de perfeição variáveis). E não é somente isso: há a comunicação da essência
às coisas naturais, que não pode ser empreendida pelas próprias coisas. Pois,
nas palavras de Scherer:
O obrar das coisas naturais não se explica completamente sem o obrar divino. A essência das coisas naturais, comunicada por geração, não é causada por elas mesmas, exclusivamente, porque nenhuma delas é causa de sua própria essência, ou seja, nenhuma delas explica por que ela própria tem tal essência. Antes, as essências são causadas por Deus por meio das coisas criadas, atuando estas últimas como que instrumentalmente. E, depois, comunicadas universalmente, as formas específicas são ainda sustentadas ou conservadas por Deus no ser. Deus, portanto, também conserva a capacidade causal das coisas criadas. As coisas criadas são, então, causas segundas, cuja própria causalidade, real e verdadeira, depende, nada obstante, da Causa Primeira. [...] A ideia divina dos vários entes é a causa exemplar das coisas criadas, e também sua causa eficiente e final, porque a operação das coisas criadas é dirigida (finaliter) e conformada (efficienter) pela operação divina.
Alguns filósofos tentam minimizar o risco
de imanentismo lançando mão da ideia da criação ex nihilo. Sim, a doutrina
da criação do nada efetivamente distingue o Ser dos seres criados, mas não é
capaz de evitar a planicidade do ser que citamos acima.
No final das contas, a relação ato-potência
é invertida porque as essências criadas passam a ser “sumas atualidades” (não
são causadas por nada) e Deus é rebaixado de Puro Ato a Pura Potência, ou até a
“Não-Ser”, tornando o homem uma espécie de substituto de Deus. A realidade
deixa de ser simbólica, ou seja, deixa de representar intrinsecamente
a realidade, e passa a ser diabólica, ou seja, passa a imitar extrinsecamente
a realidade. O símbolo como que contém o simbolizado em si mesmo (não é mera
alegoria, portanto), enquanto o diabólico como que imita uma realidade fora de
si mesmo. O diabólico depende da realidade que imita, mas ao mesmo tempo
destrói as condições para obtê-la. Ele promete tudo, mas não entrega nada.
Vê-se, portanto, que é a vontade quem
assume o papel de atualizar as essências das coisas. Literalmente, a vontade
passa a produzir a atualidade, e não mais recebê-la. A bondade não está mais intrínseca
ao objeto, mas agora é a própria vontade que escolhe a bondade do objeto. Mas é
claro que a vontade não produz coisa nenhuma: ela tem a total liberdade de
determinar o sentido da existência e do universo desde que, obviamente, esse
sentido não resulte em absolutamente nada. Invente o sentido que quiser
para sua vida, para o universo, para a existência: nenhuma mudança real será
produzida na vida de ninguém, nem mesmo na sua. A "pegadinha" fica claríssima quando
nos damos conta que não podemos determinar o sentido de um alfinete ou de uma migalha de pão, mas achamos que podemos determinar o sentido de tudo.
Está inclusa na metafísica imanentista a
ideia do panenteísmo, ou seja, a ideia de que tudo está em Deus e Deus é mais
do que tudo. Embora atraente, o panenteísmo (por mais difuso que seja o
conceito) costuma incluir a ideia da centelha divina, da unidade do intelecto e
que tais. Os entes não passam de modos, manifestações ou expressões da
Realidade Única e Última. É evidente a relação entre panenteísmo e gnosticismo:
a ideia de um conhecimento direto e autotransformador (de “alma” a “espírito”) da
essência divina. Por outro lado, a tendência a divinizar a matéria, no sentido
de atribuir-lhe toda a existência que há no mundo, redunda em panteísmo.
Panteísmo ou gnosticismo, ambos são vertentes da mesma metafísica do
imanentismo, do antropoteísmo.
Fonte: Daniel Scherer, A metafísica da revolução, Edições Santo Tomás, Formosa, Brasil, 2021.