[...]
Já que o espírito do homem, infelizmente,
perdeu os sentimentos das delícias interiores, dissipou-se nas exteriores,
esforçando-se para reter, ao menos pelos sentidos corporais, que são os mais
baixos e mais grosseiros de suas potências, aquele prazer celeste que o
abandonou, ou de recompensar a perda do prazer celeste com outros prazeres. [...]
E assim este movimento desordenado forma nuvens em nosso espírito, não nos
capacitando a julgar senão de modo incerto, já que é a necessidade que temos de
nossos sentidos que nos conduz ou o encantamento enganador da volúpia que nos
arrasta. A alma que é carnal se favorece nesta incerteza, a fim de que
satisfaça a paixão pelo prazer somente sob a aparência especial da necessidade.
[...]
É a esta curiosidade sempre inquieta, que
foi chamada por este nome devido ao vão desejo que ela tem de saber, que dissimulamos
com o nome de ciência. [...] [A] volúpia carnal não tem por fim senão as
coisas agradáveis, ao passo que a curiosidade encaminha-se na direção
daquelas que não o são, comprazendo-se em procurar, experimentar e conhecer
tudo aquilo que ignora. [...] Disto veio o circo, o anfiteatro e toda a
vaidade das tragédias e comédias; disto veio a investigação dos segredos da
natureza, que não nos dizem respeito de modo algum, que é inútil de conhecer e
que os homens só os querem saber unicamente para sabê-los. Disto veio aquela
execrável curiosidade da arte mágica, da qual provêm aqueles movimentos de
tentar Deus dentro da religião cristã, com os quais o diabo inspira os homens,
levando, mesmo as pessoas santas, a solicitar de Deus milagres somente pelo
desejo de vê-los e não pela utilidade que deles deve nascer.
[...]
[O orgulho] acontece pelo fato de o homem comprazer-se
em triunfar antes do tempo, com se a tivesse vencido plenamente, ao passo
que não há nada que possa dissipar suas últimas sombras senão a luz do dia da
eternidade. [...] A razão [do orgulho ser o último vício que a alma vence]
é que há um desejo de independência gravado no fundo da alma e escondido nos
recônditos mais ocultos da vontade, pelo qual ela se compraz de só existir
para si e não estar submetida a nenhum outro, nem mesmo a Deus. [...] Sendo
visível que [o homem] não desejou outra coisa ao pecar exceto não ser mais
dominado por ninguém, já que a única proibição de Deus, que tinha a dominação
sobre ele, devia impedi-lo de cometer o crime que cometeu. [...] E assim como
os romanos quiseram libertar sua pátria, isto é, libertarem-se de si mesmos da
dominação de seus primeiros reis e, em seguida, tornarem-se senhores de outros
povos, não considerando ser nada tão vergonhoso quanto obedecer nem tão
glorioso quanto comandar, do mesmo modo todos os homens em geral, tendo
sacudido o jugo desta verdade e deta vontade onipotente, comprazem-se
inicialmente de serem senhores de si mesmos e cada um deles deseja em seguida,
se possível, ser o único senhor de todos. [...] É por isso também que Deus
permite àqueles que se esforçam para servi-lo humildemente que não tenham
sempre o poder de executar, fazer ou cumprir uma boa obra, porém,
encontrando-se tanto na luz quanto nas trevas, no prazer ou no desgosto, no
ardor ou no resfriamento, saibam que o conhecimento e a força que eles têm nas
ações virtuosas não são um efeito de seu próprio poder, mas um dom da
liberalidade de Deus, e que pela vicissitude perturbadora e pela calma do
espírito eles se curem da doença da vã glória. [...]
[I]sso fez o Apóstolo dizer, com grande
razão: Com dificuldade o justo será salvo. [...] O engano e o abatimento
que lhes deixam as dificuldades que sentem no combate lhes servem para aspirar
com mais ardor em direção à graça.