23 de novembro de 2022

As características fundamentais da vida adulta


É certo que cada pessoa tem suas próprias características, seus próprios valores e suas próprias atitudes. Mas aqui do que vamos tratar são as características fundamentais que marcam a passagem da vida infanto-juvenil para a vida adulta. Não me refiro às características físicas, sobre as quais um bom manual de anatomia basta para delineá-las: diferenças em tamanho, musculatura, desenvolvimento cerebral, produção hormonal etc., são visíveis e, dadas as condições mínimas de cuidado e alimentação, inevitáveis. Por outro lado, tampouco me refiro às características sociais, como levar uma vida independente e produtiva, mesmo porque tais traços também são de certa forma visíveis e sobre as quais restam poucas dúvidas. Me refiro às características psicológicas, por definição invisíveis, que devem estar presentes para que uma "criança grande" possa adentrar à vida adulta e buscar sua realização pessoal.

Tais características não surgem naturalmente, como é o caso das características físicas. A simples passagem do tempo não basta para que se desenvolvam. É necessário o emprego da intenção consciente, de um esforço pessoal e contínuo, para que possam estabelecer-se como hábitos mentais e, por conseguinte, como parte de uma identidade adulta, saudável e sensata.

As diversas terapias cognitivo-comportamentais listam alguns comportamentos e valores que habitualmente se encontram em adultos saudáveis e mnimamente desenvlvidos. Aqui tomaremos as características listadas pela psicóloga espanhola Leonor Lega, embora pequenas variações possam ser encontradas em outras obras.

(1) Responsabilidade emocional vs. irresponsabilidade emocional

As pessoas saudáveis tendem a aceitar a resposabilidade por sua própria existência em vez de culpar o passado, os outros ou as condições sociais por seus pensamentos, sentimentos e comportamentos disfuncionais. Elas são capazesde escolher com liberdade suas própria emoções, comportamentos e estilo de vida.

As pessoas saudáveis sabem que elas mesmas são as principais responsáveis por seus próprios transtornos. Elas não dizem "Ele me ofendeu", mas "Eu me ofendi". Isso significa que não é "ele" (seja esse "ele" quem seja) que é injusto, que lhe causa malestar, que não é razoável, que lhe prejudica, que não tem direito de fazer o que fez etc., mas apenas que ele está louco, que ele está muito perturbado, que ele tem direito a estar enganado, que sua conduta é má etc. Observe que em lugar de sentir raiva, que não apenas é um sentimento negativo mas insalubre, sentimos aborrecimento, pesar e decepção, que são sentimentos negativos mas saudáveis.

(2) Autointeresse vs. interesse social

As pessoas sensatas e emocionalmente saudáveis tendem a estar interessadas prioritária e fudamentalmente em si mesmas, e a colocar ligeiramente à frente seus próprios intereses em relação aos interesses dos outros. Elas se sacrificam a si mesmas por aquelas que estimam, mas só até certo ponto, nunca de forma completa ou totalmente entregada. Os seres humanos se preocupam sobretudo de si mesmos, se interessam, basicamente, por seu próprio bem-estar e por sua própria sobrevivência.

A ideia aqui não é ser egoísta, ou seja, usar o próximo para seu próprio benefício, mas tampouco permitir que o próximo seja um elemento que promova sua destruição, não importa se o faça consciente ou inconscientemente. O interesse social (familiar, laboral, escolar, comunitário, religioso, não importa) é racional, pois escolhemos viver em comunidade, mas passa a ser insensato se tal convivio implica em sacrificar-se enquanto pessoa, enquanto ser humano, enquanto adulto.

(3) Autodireção vs. dependência

As pessoas adultas, ao assumirem responsabilidades e compromissos, tendem a tomar as rédeas de suas próprias vidas e podem cooperar, apoiar e colaborar com os demais. Mas não precisam ou exigem um apoio ou socorro constantes dos outros.

A autodireção ensina às pessoas a saberem o que querem fazer de suas vidas, a seguirem seus caminhos e a tomarem suas próprias decisões, mesmo que fracassem ou se enganem, e a não a seguirem cegamente o que dizem seus pais ou outras pessoas. O adulto controla sua vida, pensa por si mesmo e é autônomo em suas decisões. Ele escolhe suas próprias metas, persegue ativamente seus próprios objetivos, toma suas próprias decisões e supera as dificuldades que surgem pelo caminho.

(4) Flexibilidade vs. rigidez

Os indivíduos adultos, sãos e maduros tendem a ser flexíveis em sua forma de pensar, abertos à mudança, tolerantes e pluralistas em sua visão das coisas e das pessoas. Não estabelecem regras rígidas e inamovíveis acerca de si mesmos e dos demais. O pensamento flexível permite ajustar-se, gerenciar melhor o tempo, romper a monotonia e adaptar-se às novas circunstânias que requerem novas formas de pensar e agir. Um visão extremista das coisas, um visão "8 ou 80", resultará em problemas.

Mas exatamente o quê devemos flexibilizar? Precisamente os valores que se situam abaixo dos valores que aqui elencamos. Os valores devem ser encarados como preferências, não como normas rígidas. Se aparece uma nova informação que põe em xeque uma visão que temos sobre determinado assunto ou mesmo sobre a vida como um todo, convém que a adaptemos. Os valores não somos nós. Nós temos valores, não os valores a nós. Portanto, para um adulto, a mudança é um desafio, não uma ameaça. 

(5) Incerteza vs. certeza absoluta

Os adultos tendem a reconhecer e aceitar a ideia de que vivem em um mundo de incertezas e probabilidades, onde não existem as certezas absolutas. Se dão conta, inclusive, que viver nesta vida incerta é às vezes fascinante e divertido, não algo terrível. Importante: a incerteza aqui refere-se ao futuro, ou seja, viver com certo grau de ordem e organização é, sim, benéfico, desde que não se exija saber exatamente o que acontecerá no futuro.

A vida é como uma roleta de cassino: nunca se sabe se, e quando, vai sair o prêmio para você. Melhor que a segurança e a certeza é a aceitação de que não podemos controlar o futuro.

(6) Interesse vital vs. desinteresse vital

A maoria das pessoas tende a sentir-se mais sãs e felizes quando estão vitalmente ocupadas em um projeto alheio a si mesmas, seja em um tema de interesse coletivo, seja algum comprmisso humano, ao qual outorgam tanta importância que planejam boa parte de sua vida diária em função desse interesse ou compromisso.

Uma vida com pouco ou nenhum compromisso acarreta em aborrecimento, insatisfação e mesmo depressão. O próprio indivíduo escolhe seus interesses, seja a educação física, intelectual ou espiritual, seja alguma atividade extra-laboral, seja costurar etc. Esas metas são especialmente importantes conforme envelhecemos e os objetivos meramente laborais perdem sua relevância e interesse e criar os filhos perde o sentido.

(7) Pensamento científico vs. pensamento mágico

Os adultos tendem a ser mais objetivos, racionais e científicos. São capazes de sentir profundamente e agir de maneira concentrada, e tendem a regular suas emoções e ações refletindo sobre elas e avaliando as consequências de suas condutas a curto e longo prazo.

A perspectiva religiosa ou mística não deve ser a base da vida adulta, e sim a evidência científica. Qualquer traço de fanatismo ou visão sectária e preconceituosa deve ser recusada in limine. Assim também uma teoria científica, para ser levada a sério, deve ser comprovada cientificamente.

Infelizmente parece que o ser humano tende a pensar de forma mágica, criando neuroses e transtornos emocionais a partir de pensamentos completamente ilógicos. Qualquer hipótese que não se demonstre empiricamente deve ser vista como mágica.

(8) Risco vs. controle

Uma vida perfeitamente predizível e segura em geral resulta insatisfatória, monótona e aborrecida. As pessoas adultas e, portanto, emocionalmente saudáveis, tendem a assumir riscos, aprender coisas novas, levar a cabo ações nas quais não se tem garantia de sucesso, iniciam novas relações pessoais etc. mesmo que existam muitas possibilidades de fracassar. 

E por que assumir riscos é importante? Porque essa é a forma de se conhecer nossos limites pessoais, expandir nossos interesses, resolver problemas e desenvolver habilidades. Em suma, é mediante as experiências que arriscamos viver que expandimos nossa personalidade e testamos nosso caráter.

A propósito, a palavra "risco" é equívoca aqui. Ora, só existe "risco" quando imaginamos que algo possa dar errado. Mas se não pensamos que tudo tem que funcionar perfeitamente, então não há "risco" propriamente. A ansiedade é a predição de um horror futuro que está na cabeça do indivíduo. Claro que "errado" é quando as coisas não funcionam como queremos, mas nada disso é terrivel ou espantoso.

(9) Felicidade vs. contentamento

Os adultos saudáveis sabem trocar os prazeres imediatos pela felicidade futura. Em outras palavras, aprendem que desenvolver-se como pessoa e ampliar sua consciência vale mais do que a obtenção dos pequenos contentamentos de curto prazo. Comer é gostoso, mas ter um corpo bonito e saudável é melhor. A experiência de comer é boa, mas a experiência de ser capaz de educar e direcionar o próprio corpo é muitíssimo melhor. Idem para bebida, álcool, drogas, dinheiro, sexo, bens móveis e imóveis, compras etc.

Os prazeres imediatos têm, sim, seu papel na vida adulta, mas eles são inseridos de maneira racional, de maneira que façam parte da experiência total de longo prazo do indivíduo, não que sejam elas mesmas a experiência principal da vida.

Conclusão

A vida adulta não é uma vida consciente, da qual até mesmo os animais disfrutam, mas uma vida autoconsciente, ou seja, uma vida na qual a consciência superior (noûs) não esteja dispersa nas correntes e movimentos da alma inferior (desejos, imaginações, devaneios, sensações, memórias, subconsciente) e do corpo, mas conduza todos esses elementos e os alinhe de acordo com aquilo que seja condigno para a vida da alma superior (noûs, logos, pneuma). As características aqui indicadas são as balizas dentro das quais o homem adulto deve viver, mas elas mesmas não fornecem os valores e os sentidos para a vida de cada um.

Quem sabe assim o noûs, liberto dos devaneios da vida infanto-juvenil do ego, possa estar preparado para abraçar uma nova identidade, uma nova dimensão, digamos, dada por aqueles que se encontram ontologicamente acima dele: os anjos, os logoi das coisas criadas, os santos e o próprio Espírito. Mas isso é uma nova aventura, um capítulo completamente novo e fresco na vida de nossa raça.

Fonte: Leonor Lega,  Terapia Racional Emotiva Conductual, Ediciones Paidós, Barcelona, Espanha, 2017.

Imagem: Mulher com frutas, pintura de 1931 do artista eslovaco Martin Benka.