14 de novembro de 2022

Alguns conceitos filosóficos de Józef Bochenski


Filosofar é preciso. É até mesmo inevitável. Embora o uso da autoconsciência (noûs) seja algo que exija esforço intencional, um certo distanciamento do turbilhão de impressões e pensamentos que trafegam pela consciência, há momentos na vida de todos os homens que questões alheias aos interesses imediatos, laborais, familiares e sociais se apresentam de maneira imperiosa, que demandam respostas sem as quais perdemos a capacidade de nos orientar. São questões ou "problemas" cuja resolução é necessária como uma bússola é necessária a um navegante. Navegar é preciso, e orientar-se nessa navegação é ainda mais preciso. 

Assim que seria interessante conhecermos como o filósofo polonês Józef Maria Bochenski apresenta e pensa sobre alguns desses assuntos. De uma adolescência dissoluta e anarquista, Bochenski decidiu tomar as rédeas de seus pensamentos e sentimentos e empreendeu uma longa e frutífera carreira intelectual no seio da filosofia, em especial da lógica e da teologia.

(1) Onde ficam as leis do mundo?

A lei entra profudamente em nossa vida. Ela é o elemento de clareza e racionalidade em nossa visão de mundo. Se pensarmos, por exemplo, em uma lei da física ou sobre as relações matemáticas, constatamos que a lei, a despeito dos demais entes da realidade, não se encontra em um lugar específica (espaço), não começou nem terminará num tempo determinado, não está submetida a mudanças e não se aplica a indivíduos ou situações particulares, mas é de caráter geral. Mas, acima de tudo, e talvez o mais importante de tudo, a lei é necessária, ou seja, ela não pode ser de outro modo a não ser da maneira como se enuncia.

Porém tudo isso e estranho. O mundo é muito diferente das leis. O mundo se nos apresenta como familiar, temporal, espacial, perecível, individual e contingente. Eis o problema filosófico: todas as ciências dão por bem a existência das leis. As ciências enunciam leis, as buscam e investigam, mas nenhuma dessas ciências se interessa por dizer o quê, afinal, é uma lei.

Aimensa maioria dos filósofos afirma que as leis são algo que não depende de nosso espírito nem de nosso pensamento. Nós, homens, só podemos conhecê-las melhor ou pior, mas não criá-las, assim como não podemos criar, pela "força do pensamento", uma pedra, uma árvore ou um animal. Isso supõe que as leis contituem uma segunda espécie de ente, algo que é inteiramente outra. Diz-se que as leis pertencem ao ser ideal. Em outras palavras, há dois tipos de ente: o real e o ideal.

Há distintas escolas de pensamento segundo a maneira de conceber esse ideal. A primeira diz que o ideal existe independentemente do real. Tudo no mundo ideal é puro, eterno, imutável e necessário. Platão é o grande representante dessa teoria. A segunda diz que o ideal existe no real, ou seja, como que "junto" do real. As fórmulas das leis possuem um fundamento nas coisas, e por aí regem o mundo. Aristoteles é o mais famoso expoente dessa teoria. A terceira afirma que o ideal se dá no pensamento, ou seja, as leis se originam por uma projeção das leis do pensamento. Kant defendia essa solução.

(2) O que é filosofia?

Bochenski acredita que a filosofia não pode ser identificada com as ciências especiais nem limitada a apenas um terreno. Pode ocorrer, e de fato ocorre, que a filosofia trate dos mesmos objetos dos quais se ocupam as outras ciências. Mas qual a diferença?

A filosofia se distingue por seu método porque ao filósofo não se lhe veda nenhum dos métodos de conhecer. O filósofo não tem por que limitar-se a um método empírico e reducionista. Pode valer-se da intuição dos dados, por exemplo. O ponto de vista que adota também é diferente, no sentido de que a filosofia mira sempre e exclusivamente desde o ponto de vista do limite, dos aspectos fundamentais, das questões que trata. As ciências conhecem, a filosofia estuda o que é conhecer. As ciências estabelecem leis, a filosofia estuda o que é uma lei. O homem fala de sentido da vida, a filosofia estuda o que é sentido e finalidade.

(3) Chegamos a realmente conhecer alguma coisa?

Um físico, um botânico, um historiador e qualquer um de nós, na vida diária, supomos que existem coisase que podemos conhecê-las. Mas os céticos duvidam disso. Dizem eles que nda pode ser conhecido. Mas se é assim, como essa mesma afirmação se sustentaria? Por outro lado, se realmente existem coisas e podemos conhecê-las, essa hipótese se harmoniza com quase tudo o que eperimentamos. A diferença entre o que chamamos realidade e a aparêcia cosiste em que a realidade está ordenada, nela mandam leis, enquanto que a aparência não se rege por nenhuma ordem. Ora, essa ordem, no mundo de nossa experiência, reina quase que por toda parte. Bochenski se deixa levar pelo bom senso: é "evidente" que existem coisas e que podemos conhecê-las.

(4) O que é verdade?

Há dois conceitos gerais de verdade. A verdade ontológica, ou seja, aquela em que uma coisa corresponde a uma ideia/juízo/proposição ("este metal é feito de ouro de verdade", o que está em jogo é se a coisa é verdadeira), e a verdade lógica, ou seja, aquela em que uma ideia/juízo/proposição corresponde a uma coisa ("o sol está brilhando hoje", o que está em jogo é se ojuízo é verdadeiro). Bochenski se limita a este segundo caso. 

Ele explica que há duas possíveis interpretações da realidade: 

(a) O idealismo, segundo o qual o conhecimento cria seus próprios objetos. Aqui há um problema: é evidente que nosso pensamento pessoal e individual pode criar muito pouco, basicamente entes de razão, imaginações ou fantasmas, e mesmo esse pouco é feito de elementos que não criamos, mas apenas combinamos. Daí que os idealistas se veem forçados a supor um duplo sujeito, o "eu empírico" (um eu "menor") e o "eu absoluto" (um eu "maior"). É este eu absoluto, transcendente, que cria os objetos.

(b) O realismo, segundo o qual o conhecimento é apreendido pelo conhecedor. Os realistas veem o idelismo como problemático, quase supersticioso. Por sua vez, os realistas explicam as dificuldades de sua própria interpretação explicando que a fronteira entre o conhecedor e o mundo exterior não precisa estar na pele do homem, mas onde se dá o trânsito entre os processos físicos e psíquicos. É como se os óculos, ou os olhos, os responsáveis pelo efeito ou resultado do que experimentamos.

A despeito de qual interpretação seja a correta -- Bochenski acredita ser o realismo --, a decisão tem que ser total, ou seja, ou não existe em absoluto o mundo exterior e nosso espírito cria tudo, ou que ele não cria nada, a não ser a combinação de conteúdos, e que tudo o que conhecemos há de existir de alguma maneira fora do espírito.

(5) O que é pensamento científico?

De modo muito geral, se chama "pensamento" todo movimento em nossas ideias, imaginações, conceitos etc. O pensamento científico é um pensamento sério, disciplinado. Um homem que pensa com seriedade não deixa que suas ideias e conceitos flutuem livremente diante dele, mas os endireita e organiza rigorosamente para um fim determinado: para o saber.

Há somente dois casos possíveis para que se dê o pensamento: o objeto de pensamento é dado ou não é dado. Se é dado, então há somente uma possibilidade de saber algo sobre ele: por dedução e conclusão. Não existe uma terceira via de conhecimento. É verdade que se pode acreditar em algo, mas crear não é saber. O saber somente vem da observação do objeto dado ou da dedução e conclusão.

Para realizar uma concluão é fundamental sempre, sem exceção, que tenhamos como pressupostos duas coisas: de uma lado, certas premissas, ou seja, juízos, proposições que se dão por conhecidas e verdadeiras ou de algum modo se admitem; por outro lado, certas regras lógicas segundo as quais se tire uma conclusão.

As regras lógicas são infalíveis. No entanto, há muitas regras que são falíveis. E o delicado aqui é que na vida e nas ciências tais regras falíveis desempenham um papel muito mais frequente que as regras infalíveis. Por exemplo, na indução temos como premissa que alguns indivíduos se comportam assim ou assado. Por outro lado, sabemos pela lógica que, se todos os indivíduos se comportam de um modo determinado, também se comportarão assim alguns. Ora, do comportamento de alguns cocluímos que é o comportamento de todos. Em suma: se todos, logo alguns; portanto, se alguns, logo todos. Sim, claro,a ciência moderna desenvolveu métodos sofisticados para confirmar suas conclusões falíveis. No entanto, isso não altera o fato de que a ciência avança mediante regras falíveis. O resultado é que as torias científicas não são nunca verdades inteiramente certas. Tudo o que a ciência pode alcançar são probabilidades. Que razão temos para crer que o sol nascerá amanhã? Dizer que sempre tem sido assim não é razão suficiente.

A ciência é falível, e se nos encontramos uma evidência que vá de encontro ao que afirma a ciência, temos de estar do lado da evidência, e não das teorias científicas. Infelizmente acontece de cientistas pontificarem sobre temas dos quais pouco ou nada têm a ver com sua especialidade. O que tentam fazer é preencher o enorme vazio do saber científico com suas opiniões filosóficas amadoras e, o mais das vezes, grosseiramente ingênuas e falsas. Que a população em geral o faça é natural, mas quando esse comportamento vem de cientistas, que hoje em dia gozam de grande prestígio, o poder de enganar os incautos é multiplicado por mil. Daí vem boa parte da exaltação e do desvario contemporâneos.

(6) Como atribuímos valor âs coisas?

Contemplar a realidade não é apenas vê-la, mas atribuir-lhe valor ou "estima". O homem sente a realidade como bela ou feia, como boa ou má, como agradável ou penosa, como nobre ou vil, como santa ou condenável etc. Aqui é importante distinguirmos três coisa completamente distintas: o portador do valor (pessoa ou objeto), o valor mesmo e a reação humana ante o valor. 

Quanto ao valor em si mesmo, em geral identificamos três tipos: os valores morais (dever-fazer), os valores estéticos (dever-ser) e os valores religiosos (dever-fazer e dever-ser).

Bochenski acredita, como os idealistas, que os valores são independentes da valoração. As valorações são relativas,mas os valores são eternos e imutáveis. Assim como há homens cegos para as cores, há homens cegos para os valores. Os positivistas reduzem os valores à valoração, ou seja, à sua utilidade imediata. Os idealistas, embora admitam certa relativamente, não deixam de admitar que os valores exercem um efeito atrativo sobre si. Em suma: há certa relatividade imanente que gravita em torno da imutabilidade dos valores em si. Qaundo Cristo diz que ninguém é bom fora de Deus isso significa que o valor da bondade é algo que se esgota soment em Deus, mas não quer dizer que fora de Deus a bondade não exista de maneira parcial, relativa, fragmentária. Somente um espírito plenamente santo pode plenamente compreender um valor. 

Aqui é importante salientar que ver ou compreender um valor tem menos a ver com a inteligência e mais com a vontade. Um homem decente vê ou compreende melhor a retidão (ou falta dela) que um homem pouco decente. Daí que homens cultos e eruditos podem, em determinadas ordens de valores, se mostrarem incrivelmente bárbaros e subdesenvolvidos. É o caso, por exemplo, de "pessoas formadas" que se aborrecem ouvindo a Nona Sinfonia de Beethoven.

Bochenski acredita que os valores se fundam no mundo, mais especificamente na relação entre os homen e entre os homens e as coisas. Ainda mais especificamente, é na constituição espiritual e física da raça humana que se fundam a estética e a moral. É nesta constituição que está gravada, por exemplo, que fazer-se homem a criança deve amar e obedecer seus pais. Claro, há homens que são, ou se tornam, cegos para determnados valores (basta imaginar por exemplo um filho que mata sua própria mãe por motivo torpe).

(7) Como pensar sobre o homem?

O homem, e somente o homem, ostenta uma série de qualidades completamente distintas. As mais notáveis são as seguintes:

(a) A técnica, ou seja, o homem se erve de certos instrumentos produzids por ele mesmo.

(b) A tradição, ou seja, o elemento que ensina ao homem mediante uma linguagem complicada a viver em sociedade, já que essa capacidade não lhe é ingênita, ou seja, não se desenvolve por instinto.

(c) O progresso, ou seja, o efeito de aprender mais e mais, não apenas como indivíduo, mas como sociedade também. Biologicamente não somos diferentes dos antigos gregos, mas sem dúvida sabemos muito mais que eles.

(d) A abstração, ou seja, a capacidade de pensar universalmente, e não apena mirar o particular e concreto. E mais: a abstração permite não apenas pensar sobre universais, mas em objetos ideais também: como números, valores morais e estéticos etc. A abstração nos livra da teleologia que domina os animais: os homens são capazes de pensar e desenvolver um saber puro, ou seja, o saber pelo saber, e não apenas um saber para um fim ou objetivo útil. A ciência e a religião apresentam aspectos típicos desse tipo de qualidade humana. 

(e) A reflexão, ou seja, a capacidade de mirar não apenas ao mundo exterior, mas ocupar-se de si mesmo, de perguntar-se qual o sentido da vida, a consciência da morte etc.

Se nota no homem uma curiosa inquetude: por um lado, almeja o ilimitado, ao progresso, ao acúmulo material e espiritual, à insatisfação de seu estado atual; por outro lado, a morte e a limitação existencial o aprisiona. Essa tensão, esse "enigma trágico", como o chama Bochenski, só pode ser aliviar alcançando-se o infinito. Não é possível alcançá-lo nesta vida, mas no além, no além-túmulo. Como? Não é a filosofia quem vai responder a essa pergunta, mas a religião.

Fonte: Józef Maria Bochenski, Introducción al Pensamiento Filosófico, Herder Editorial, Barcelona, Espanha, 1992.