20 de novembro de 2017

Breve introdução à fenomenologia


1.    O que Husserl entende por fenômeno? Antes de tudo, fenômeno não significa os estados mentais, esses estados reais que constituem meu psiquismo. Também não se trata de fenômenos no sentido de que sejam o aparente de uma coisa que está para além de sua própria aparência. Para Husserl, fenômeno é simplesmente o que é manifesto enquanto é manifesto. Em virtude disso, todo fenômeno envolve necessariamente aquele diante do qual é fenômeno; todo “manifestar-se” é necessariamente manifestar-se para alguém. Desde já é claro para Husserl que fenômeno e consciência são dois termos correlativos: toda consciência é consciência de algo, e este algo é o fenômeno que se dá naquela consciência. Pois bem: o ego, quando fica a sós consigo mesmo, reduz toda realidade à condição de fenômeno.

2.    Como se trata de uma redução de tudo a puro fenômeno, Husserl a chama de redução fenomenológica.

a.    A posição de Husserl é clara: a redução atua sobre a totalidade do mundo enquanto tal. Para o homem que vive em atitude natural, mundo é a totalidade das coisas reais dentro das quais eu mesmo me encontro como uma realidade entre elas. A vida natural, portanto, é suportada por uma “protocrença” na realidade de tudo; toda crença ulterior está montada sobre a protocrença. Pois bem: a redução opera sobre essa protocrença, quer dizer, sobre o mundo inteiro, e consiste em deixá-la em suspenso.

b.    Não se trata de abandonar pura e simplesmente esse mundo real – quer dizer, não se trata de crer que ele não tem existência. Trata-se, pelo contrário, de continuar a vivê-lo e a viver nele, mas de adotar, enquanto o vivo, uma atitude especial: pôr em suspenso a validez da crença em sua realidade. Não abandono, portanto, a vida real; permaneço nela, em toda a sua riqueza e detalhe, nas variedades de cada vivência. Mas sem crer em sua realidade. A redução consiste, portanto, em reduzir o mundo real inteiro a algo que não é a realidade; por essa operação, tenho um mundo reduzido. Não perco nada do que é real: perco apenas seu caráter de realidade. A que, então, o mundo fica reduzido? Justamente a ser apenas aquilo que aparece em minha consciência e enquanto me aparece – quer dizer, fica reduzido a puro fenômeno. A redução, portanto, é fenomenológica.

Essa redução tem duas dimensões. Em primeiro lugar, em vez do puro fato, temos o eîdos. Se neste vermelho de fato prescindo de que seja “de fato” vermelho, fico apenas com “o” vermelho. Este eîdos não é pura e simplesmente um “conceito” geral. Não entremos, neste momento, na exposição do que seja a concepção husserliana de eîdos e de sua visão. Basta o já dito para dar a entender que a redução fenomenológica é, antes de tudo e sobretudo, uma redução eidética – uma redução do fáctido ao eidético.

Mas não é só isso. O mais importante é que a realidade é reduzida em seu próprio caráter de realidade. Com isso, o mundo reduzido a fenômeno se mostra perfeitamente irreal. Mas irreal não significa fictício ou coisa parecida. Significa apenas que prescinde, por epoché, de toda alusão à realidade. Para Husserl, isso não é uma perda, e sim, como veremos a seguir, um conseguimento definitivo, porque sabendo o que é “o” vermelho em si mesmo, irrealmente, tenho com isso o “metro” segundo o qual são, não são ou são em parte vermelhas todas as coisas vermelhas que há ou pode haver no mundo. Nesta dimensão, a redução não é apenas eidética, mas é transcendental. E isso em duplo sentido.  Em primeiro lugar, aquele metro da realidade se manifesta apenas em e por uma consciência subjetiva. Enquanto é esta subjetividade o que constitui as condições das coisas, é uma subjetividade transcendental. Em segundo lugar, a redução é transcendental porque desde os tempos mais remotos se chama transcendental àquilo que constitui a “propriedade” em que tudo coincide pelo mero fato de ser. Pois bem: pela redução, tudo é e somente é fenômeno. Daí que a fenomenalidade seja o caráter transcendental supremo.

A metafísica clássica tinha falado até a exaustão de transcendência. Mas entendia que transcender é ir da realidade do mundo a uma causa transcendente que o explique. Pois bem: essa causa transcendente, se algo havemos de saber dela, precisaria se manifestar em uma consciência. E, ainda que fosse assim, a função da fenomenologia não consiste em “explicar” o mundo com essa causa, mas tão somente em “compreender” o que é. A fenomenologia não explica nada pela simples razão de que toda explicação é interna ao mundo, e a fenomenologia transcende o mundo inteiro não para sair dele, senão justamente o contrário, para permanecer nele, mas de outra maneira: vendo como ele se manifesta para nós.

A nova atitude que Husserl defende se traduz, portanto, em um único conceito: redução a fenômeno puro. Reduzido o mundo inteiro a mero fenômeno, qual é o campo de investigação filosófica que essa atitude nos abre, quer dizer, em que consiste mais precisamente o objeto da filosofia?

3.    Consideremos esta pasta verde. Naturalmente, sempre é discutível se esta pasta é verde ou até que ponto não é. Já não sabemos se a pasta é verde. Ficamos somente com o fenômeno “verde”. O que é que sabemos então? Não sabemos se a pasta é verde, mas sabemos o que é o verde, o que é ser verde. Pois bem: o que desde o tempo dos primeiros gregos até nossos dias constitui o “que” de algo é que se chamou de sua “essência”. E a essência é aquilo que uma coisa “é”. Essência é o ser das coisas. Por isso o resultado da redução fenomenológica é a descoberta da essência do ser. Em sua dupla dimensão eidética e transcendental, o fenômeno puro é essência, é ser: ser homem, ser pedra, ser cavalo, ser astro, ser verde, etc. Em troca de haver colocado entre parênteses a realidade das coisas sustentada pela crença fundamental, o que ganhamos é nada menos que o próprio ser das coisas: sua essência. E este é o objeto da filosofia.

O possível caráter alucinatório ou real do objeto da percepção é perfeitamente indiferente. O que “é” o verde é indiferente a que a coisa seja ou não realmente verde. A consciência em redução basta a si mesma; é o único ente que não precisa de nenhum outro para ser. É, portanto, o único ser absoluto.

Mas isto é ainda uma afirmação vaga. Ter descoberto esse objeto absoluto que é a essência ainda não é o mesmo que ter demonstrado como é possível um saber absoluto a respeito dela.

4.    Consequentemente, a primeira coisa que Husserl nos há dizer é o que ele entende por isso que chama de consciência.

Antes de tudo: não se trata da consciência no sentido da psicologia. Para a psicologia, a consciência é uma atividade mental que tem seus momentos e mecanismos próprios. A atividade mental quer, pensa, sente, recorda, percebe, tem paixões, emoções etc. Esses mecanismos envolvem também componentes somáticos da mais diversa ordem: receptores, como hoje diríamos, processos cerebrais etc. Tudo isso, com efeito, são os “mecanismos” da consciência, mas não a própria consciência. O que é a consciência que com esses mecanismos consegui ter é algo que a psicologia como ciência natural sempre eludiu. Pois bem: sejam quais forem os mecanismos psicofisiológicos que produzem a consciência, esta é, em sua pureza primária, um mero “dar-se conta”, precisamente enquanto puro dar-se conta de algo. Daí o erro fundamental que neste ponto Husserl reprocha ao psicologismo: a naturalização da consciência, o haver transformado o simples momento de me dar conta de algo em um sistema de mecanismos que no máximo poderão explicar como chego a me dar conta. Reduzida a atividade mental a esse momento de puro dar-me conta, encontro-me instalado na consciência pura.

5.    A consciência pura, a “consciência-de”, é algo que só é consciência enquanto o é “de” algo. Toda consciência está dirigida para algo. E esse “dirigir-se para algo” é o que desde tempos imemoriais se vinha chamando de intencionalidade.

a.    Antes de tudo, a intencionalidade é esse momento segundo o qual a consciência é algo que só o é “de” outro algo. Neste aspecto, a consciência é uma intentio, ou, como diz Husserl, é uma noese. Não se trata de que a consciência como intentio seja algo concluso como ato meu que é, e que depois se estabelecesse uma relação com algo que não é ela mesma, e que está para além dela, relação que se expressaria no “de”. Dito em outras palavras: o “de” não é uma relação da intentio ao objeto, mas a própria estrutura da intentio.

Mas, apesar de verdadeiro, isso não é suficiente para Husserl. Mais ainda (e isto é o essencial), a consciência é o que faz com que haja objeto intencional para ela; a consciência não só tem um objeto, mas faz com que haja objeto intencional para ela, e o faz a partir dela mesma. Não é que a intentio produza desde si mesma o conteúdo do objeto – seria um subjetivismo que Husserl rechaça energicamente. Mas o que a intentio, e só a intentio, faz é fundar a possibilidade da manifestação do objeto intencional tal como ele é em si mesmo. Esta é a criação de Husserl: a intencionalidade não é apenas “intrínseca” à consciência, mas um a priori com respeito a seu objeto, onde a priori significa que a consciência funda desde si mesma a manifestação de seu objeto. E este fenômeno de intencionalidade é o que tematicamente Husserl chama de vivência.

b.    Precisamente porque a consciência é intencionalidade, ela tem como termo seu um objeto que é seu intentum próprio, o que Husserl chama de noema. O noema não é “conteúdo”, mas mero “termo” intencional da consciência, algo que é manifesto nela, mas que não é ela mesma nem parte dela. Esse termo intencional tem três características. Antes de tudo, o que acabamos de dizer: é algo “independente” da consciência. Na consciência, seu noema se manifesta a nós tal como é em si mesmo, quer dizer, com plena objetividade. Objetividade não é realidade: toda realidade ficou entre parênteses em seu caráter de realidade, mas permaneceu intacta no que é em si mesma. Esse permanecer intacto é o que constitui a objetividade. Mas, em segundo lugar, o noema, objetivamente manifesto à noese da consciência, só pode dar-se nela. Posta a realidade entre parênteses, o fenômeno só pode ser o que é como termo objetivo da consciência. Finalmente, como dissemos antes, o noema não só se dá na minha consciência, mas se dá em virtude da própria consciência, fundado nela.

c.    Como não se dão um sem o outro, esses dois momentos de noese e noema têm uma unidade intrínseca peculiar. Precisamente porque a consciência é intentio, vai “dirigida” para seu noema, o que constitui, portanto, o “sentido” de tal intenção para mim. A unidade noético-noemática tem, assim, um caráter extremamente preciso: é unidade de “sentido”. A intentio é o que abre a área do sentido objetivo do noema, o qual é, então, o sentido objetivo da intentio. O sentido no noema não depende da consciência, mas do próprio noema. Mas que o objeto seja sentido noemático, isso se deve à consciência. A unidade de sentido objetivo do noema é justamente o que, segundo Husserl, é o “ser”. Ao dizermos que o que nos é manifesto é de uma maneira ou de outra, o que estamos dizendo é que esse e não outro é seu sentido objetivo. Ser é unidade de sentido objetivo. Vimos antes que o noema, o puro fenômeno, é ser como essência. Pois bem: a essência da essência é “ser” como sentido objetivo. Como tal, o ser se funda na própria consciência.

Essa é, delineada em traços gerais, a estrutura da consciência pura, segundo Husserl.

6.    Mas Husserl não pode por deter-se aqui: ele precisa buscar nessa consciência pura a possibilidade de um saber absoluto. Para isso, precisa entrar nos modos de consciência em que se pode constituir esse saber. Há intenções muito diferentes. Há intenções vazias, intenções em que seu objeto não está dado presentemente à consciência; por exemplo, o simples “mencionar” um objeto ou aludir a ele. Outras vezes, o objeto está presentemente dado à consciência, mas pode estar de diversas maneiras. Se reconheço um amigo em uma fotografia, tenho presentemente dado o amigo. Mas, neste caso, o termo do “de” é “mediato”: minha intenção vai in modo recto ao amigo, mas através da própria fotografia. Outras vezes, o objeto está “imediatamente” presente – por exemplo, quando recordo um objeto que vi antes. Mas essa imediatez não é o fundamental. Há vezes, de fato, em que o objeto está imediatamente dado, mas “originalmente”; é o objeto presente “em carne e osso” por assim dizer. Pois bem, a intenção de um objeto imediata e originalmente dado à consciência é o que Husserl chama de intuição.

Mas para Husserl não se trata da intuição como simpatia ou simbiose da consciência com as coisas. Para Husserl, essa intuição seria “mundanal”, porque é a simpatia real com objetos igualmente reais. Husserl pôs “entre parênteses” todo o mundo real. A intenção é então pura e simplesmente o ver o manifesto originalmente manifestado, e tão somente enquanto manifestado, quer dizer, como mero correlato intencional da consciência pura.

Como fato mundano, a visão de um amigo me dá apenas esse amigo. Mas, reduzida a fenômeno, essa visão me dá algo mais: dá-me a visão, por exemplo, do humano, assim como a visão desta cor vermelha, reduzida a fenômeno, me dá não apenas “este” vermelho, mas o vermelho, etc. É uma intuição “ideacional”, porque me dá o eîdos do objeto. Essa intuição é imediata. É verdade que para isso preciso também intuir “esta” cor vermelha, mas nela vejo não só “este” vermelho, mas também o vermelho.

Todas essas intenções não se encontram apenas justapostas. Pois as intenções que não são intuitivas podem, no entanto, ser preenchidas com uma intuição. É o ato que Husserl chama de “repleção”. Pois bem: a repleção de uma intenção intuitiva com a intuição correspondente é justamente a “evidência”. E, justamente por isso, o correlato intencional da evidência é a verdade: na intenção intuitivamente evidenciada, o ser e a intenção coincidem. A evidência não é para Husserl – como não tinha sido para o racionalismo – uma propriedade exclusiva dos atos “lógicos”; não é apenas a inclusão de um predicado em um sujeito. A evidência é a repleção de uma intenção em seu objeto intuitivamente dado. A evidência lógica é apenas um minúsculo caso particular da evidência intencional. Todo ato de consciência, da índole que seja, se está repleto por uma intuição, é evidente; há assim uma evidência dos valores, etc. A evidência é um momento estrutural da consciência e não apenas do pensamento lógico.

Suposto isto, Husserl já tem nas mãos todos os elementos de que necessita para chegar a uma ciência estrita e rigorosa da essência, isto é, do ser das coisas – essa ciência é o saber absoluto em que consiste a filosofia para Husserl.

7.    Pois bem, a filosofia não é uma intuição passiva do que tenho dado em um momento na consciência. Muito pelo contrário, é esforço ativíssimo. Precisamente porque a intuição recai sobre objetos não transcendentes, mas intencionalmente imanentes à consciência pura, “eu posso” sempre executar livremente sobre eles toda classe de atos; posso variá-los intencionalmente. Toda consciência, além de manifestar seu objeto, é um “eu posso” torná-lo mais manifesto. A consciência não apenas manifesta, mas faz manifestar-se o objeto. Esse “poder” é de índole intencional. Não é o poder ter intenções, mas o ter a intenção de poder tê-las. O “poder” intencional é essencial ao eu; todo eu é não apenas um “eu intuo”, mas um “eu posso intuir”. É que todo objeto, além de nos dar o que atualmente nos dá, é algo que por sua própria índole prefixa suas possíveis manifestações ulteriores. Dito em outras palavras: junto às intenções “atuais”, há as intenções “potenciais”, que prefixam os sentidos implícitos que competem a cada tipo de objeto determinado. A intenção potencial não é a possibilidade de uma intenção qualquer, mas a intenção de possibilidades determinadas pela índole do objeto. Cada intenção atual prefixa as intenções possíveis, e por sua vez cada intenção possível prefixa o curso de sua repleção em ulteriores intenções atuais. Dessa maneira, cada intenção e cada intuição é ao mesmo tempo o correlato de um “eu posso”. O correlato objetivo do “eu posso” é o que Husserl chama de horizonte. Todo objeto, além de nos dar o que nos dá em um momento, abre um horizonte próprio de possibilidades de manifestação. Com isso, abre-se diante de nossa consciência um campo infinito de investigação, de esforço intuitivo ativo. E, como, dentro desse horizonte, se prefixa o âmbito das ulteriores intenções atuais do próprio objeto, sucede que as intenções constituem um sistema e não um caos arbitrário. O caráter sistemático das vivências intencionais tem como correlato objetivo a estrutura sistemática do objeto e de sua conexão com outros objetos. E esse sistema objetivo é o que propriamente constitui a essência, o ser do objeto.

Dessa maneira, abre-se diante de mim um campo infinito de saber absoluto, em que vou adquirindo progressiva e dificultosamente a versão de toda intenção à sua forma intuitiva e ao enriquecimento da própria intuição. O conseguimento de evidências absolutas e cada vez mais adequadas é um esforço penoso. É uma verdadeira experiência: a experiência fenomenológica.

Nela consiste a filosofia. A filosofia não é um sistema racional e lógico de proposições e demonstrações: é evidenciação intuitiva, uma evidenciação que não se fundamenta em pontos de vista pessoais, mas em um apelo objetivo à intuição, no qual nosso saber encontra sua última e estrita verdade absoluta. Esta ciência absoluta dos fenômenos em seu sistema é a filosofia. A filosofia é sempre e apenas “fenomenologia transcendental”. Aí está o que Husserl buscava.

Fonte: Xavier Zubiri, Cinco Lições de Filosofia, É Realizações, São Paulo, 2012.pág. 213-230, trechos selecionados.