Introdução
Chamamos de “asceticismo” a prática constante de boas obras,
e quem se esforça na prática de boas obras chamamos de “asceta”.
O treinamento espiritual consiste em esforçar-se para a
realização de boas obras e refrear os maus hábitos e aspirações da alma que se
opõem a esse treinamento. Não é uma tarefa fácil visto que vem sempre
acompanhada de esforços árduos e quase sempre por uma batalha digna de
martírio, a qual os Santos Padres e ascetas chamam, não sem razão, de
autocrucificação, de acordo com as palavras de São Paulo: E os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e
concupiscências. (Gálatas 5:24)
O ponto aqui não são as obras, mas a disposição interior do
homem, a vontade boa ou má de sua alma e a condição virtuosa ou depravada de
seu coração, do qual as boas e más obras brotam naturalmente. O próprio Cristo
Salvador se manifestou a respeito disso: Mas,
o que sai da boca, procede do coração, e isso contamina o homem. Porque do coração
procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, fornicação, furtos, falsos
testemunhos e blasfêmias. (Mateus 15:18-19)
É óbvio, portanto, que o centro de gravidade da vida
espiritual não está nas obras em si, mas nas disposições da alma e no estado
interior do homem das quais elas resultam. “Tema os maus hábitos”, disse um dos
maiores professores do asceticismo, Santo Isaque, o Sírio, “mais do que os demônios”.
“Esforço” [podvig] é uma palavra tipicamente russa e que
corresponde perfeitamente ao espírito da palavra grega “asceticismo” [askesis].
Mas será que todos os cristãos deveriam ser ascetas?
Fazer essa pergunta é a mesma coisa que perguntar se todas
as pessoas criadas por Deus estão destinadas à comunhão espiritual com seu
Criador. Ora, o asceticismo é para todos, e não apenas para monges.
Pois a felicidade, conforme a experiência da vida demonstra,
não está fora do homem, onde ele inutilmente a procura, mas dentro dele: a felicidade está na
disposição pacífica da alma, na paz interior serena proveniente da profunda
satisfação interior que provém da conquista do mal após desarraigar os maus
hábitos que tiranizam a alma.
Quem se abstém do asceticismo é inimigo de si mesmo,
privando-se do maior dos bens: a paz de consciência e a comunhão abençoada com
Deus.
O discernimento
espiritual
Normalmente as pessoas afirmam que o órgão responsável pelos
sentimentos é o coração humano. Isso acontece porque todas as emoções – alegria
ou tristeza, desalento ou prazer, gostos ou desgostos, raiva ou disposição pacífica
do espírito, calma ou agitação – sempre ressoam no coração, seja agregando-lhe
energia ou diminuindo sua atividade. O coração registra aquilo que dá prazer ou
desprazer. Dado que as pessoas naturalmente buscam aquilo que dá prazer e
desejam evitar aquilo que é desagradável, o coração se torna o centro de nossas
vidas, o lugar onde tudo o que entra de fora fica contido e do qual advém tudo
o que está no interior.
A vontade controla os desejos da pessoa e não está localizada
em nenhum órgão específico. A vontade age em todas as partes do corpo, e são
essas partes que põem o corpo em movimento, ou seja, é a decisão da vontade que
age nos músculos e nervos.
O homem moderno no mais das vezes não é capaz de diferenciar
as ações do corpo, da alma e da vida espiritual, e acaba misturando tudo,
gerando uma grande confusão. É por isso que hoje em dia absolutamente qualquer
coisa é associada à expressão “vida espiritual”, menos o que é autenticamente
vida espiritual. A ciência, bem como todo tipo de descoberta e invenção –
cinema, teatro, balé, e até o circo – são hoje em dia tidos como elementos da
área da espiritualidade. Em outras palavras, tudo aquilo que é emocional ou
natural é tido como espiritual, e tudo o que está totalmente relacionado à vida
secular é confundido com “vida espiritual”.
Contudo, não importa o quanto tentemos suprimir de nosso
interior as necessidades do espírito, essas necessidades vão exigir seus
direitos. O espírito aspira por Deus, mas, incapaz de encontrar um meio de
realizar suas aspirações sob a pressão violenta da pesada opressão do orgulho
humano, o espírito se satisfaz com seus substitutos, os quais são inventados
pelo próprio orgulho humano com o intuito de acalmá-lo. No lugar da autêntica
religião, o espírito se embebe de doutrinas filosóficas nebulosas, seja a
teosofia, seja o espiritismo, seja o que for. No lugar da Igreja, o espírito
busca o “templo” da ciência, do teatro, do balé etc. – ou seja, qualquer coisa
da vida mundana que seja capaz de cativar a pessoa. Esse tipo de falsificação,
ou seja, a substituição da espiritualidade por elementos emocionais, é o traço
característico de nossos tempos.
Por exemplo, muitos de nós, russos, no passado e no
presente, vão à igreja com o intuito de desfrutar de sentimentos estéticos, de
ouvir belas canções. Não há dúvida de que os sentimentos estéticos sejam,
evidentemente, uma sensação exaltada, o senso do belo na alma, o reflexo de uma
Beleza divina superior. Porém, na medida em que essa sensação permaneça
inconsciente, ou seja, desconectada de uma consciência de atração por Deus, ela
permanecerá no âmbito do mundanismo e alheia à verdadeira espiritualidade.
O homem moderno acha que as coisas “emotivas” são
“espirituais”. A genuína vida espiritual está sempre totalmente desprovida de
paixões, tão exaltada que chega ao ponto de elevar a pessoa acima da terra, sem
lhe oferecer quaisquer sensações mundanas. Por outro lado, todo estado mundano
e natural, por mais elevado que seja, irá, sem dúvida alguma, despertar
sensações mundanas e carnais – por exemplo, batimentos cardíacos acelerados, agradáveis
cintilações nervosas, arrepios – os quais sempre surgem quando a pessoa ouve
belas músicas e canções. Esse amplo predomínio do emocionalismo no homem
contemporâneo explica porque o canto eclesiástico genuíno, que satisfaz apenas
a espiritualidade, é atordoante e tedioso para a grande maioria das pessoas,
mesmo para aquelas que frequentemente vão à igreja.
Todos os entretenimentos modernos agem como álcool e cocaína
no homem contemporâneo. Os entretenimentos de hoje em dia anestesiam a vida
espiritual do homem, paralisam os impulsos espirituais e suprimem a voz da
consciência e das normas morais.
Amor evangélico e
altruísmo humanista
Sem fé em Jesus Cristo como Filho de Deus não há verdadeiro
amor a Deus ou ao próximo. O verdadeiro, puro e desinteressado amor a Deus e
aos homens é impossível exceto sob a ação da fé na divindade do Cristo Salvador
– fé no fato de que Ele é o Filho de Deus encarnado, o qual desceu à terra para
salvar a humanidade.
Pois somente esse tipo de fé no Filho de Deus – uma fé
ardente e viva nAquele que se humilhou por nós homens e se entregou a uma morte
desgraçada e tortuosa – é capaz de despertar em nós uma grata resposta de amor
a Deus. Esse amor nos inspira a um desejo ardente de viver segundo Sua vontade
e a nunca ofendê-Lo e, consequentemente, a amar o próximo como semelhante e filho
de Deus, como nosso irmão em Cristo para o qual Cristo nosso Salvador também
derramou seu puro e precioso sangue.
Além disso tudo, nossa natureza encontra-se tão quebrantada
pelo pecado que, sem essa fé na salvífica graça de Deus a nós dada pelo
sofrimento do Filho de Deus na cruz, sem essa santificação e iluminação cheia
de graça, somos incapazes de fazer qualquer coisa realmente boa; somos
incapazes de amar pura e desinteressadamente a Deus e ao próximo. Sem a
santificação e a iluminação que vêm do alto, nosso amor – se é que realmente
está dentro de nós – permanecerá desprovido da pureza e da santidade do
Evangelho. Nosso amor estará envenenado de amor próprio e egoísmo, o qual é tão
sutil e difícil de identificar que nem mesmo conseguimos notá-lo. Pensamos que
verdadeiramente amamos a Deus e ao próximo, quando na verdade tudo isso não
passa de amor próprio, não de amor a Deus e ao próximo.
Os defensores da moralidade autônoma atacam a moralidade
cristã como se esta fosse motivada por princípios morais primitivos: medo dos
futuros tormentos no inferno e desejo de ser recompensado na vida futura. Ora,
já passou da hora de rejeitarmos essa ideia católica romana de que Deus nos
recompensa por boas obras e nos pune pelas más ações.
A única motivação da moralidade cristã é o amor, isto é, amor a Deus como
nosso Pai e Benfeitor.
Se Deus não existe e não somos todos irmãos, então qual o
propósito de fazer o bem ao próximo? Não seria melhor que cada um de nós
vivesse única e exclusivamente para nosso próprio prazer, a buscar nossos
próprios objetivos e interesses?
Outro aspecto da moralidade irreligiosa que frequentemente
nos passa despercebido é a vaidade. Este sentimento de vaidade é quase sempre a
motivação por trás dos fundadores e administradores das sociedades
filantrópicas, das pessoas ricas que doam uma parte insignificante de suas
riquezas para boas ações, ou seja, para se mostrarem como pessoas boas. Muito
frequentemente a vaidade é a força que compele as pessoas sentimentais, aquelas
pessoas que sinceramente se consideram pessoas decentes, que fazem o bem e
choram por causa de suas ações benevolentes. Muita gente pensa, com toda a sinceridade,
que essas pessoas estão fazendo o bem pelo bem quando, na verdade, estão apenas
alimentando suas próprias vaidades.
É absurdo sustentar que alguém possa ser realmente virtuoso –
no sentido cristão da palavra – sem fé em Deus, sem amor a Deus. Pois qual é o
propósito e em nome de quem a pessoa restringirá seus próprios impulsos
egoísticos?
Dostoyevsky dizia que “se Deus não existe então tudo é
permitido”. Isso acontece não apenas quando não há medo de castigo pelos
pecados, mas acima de tudo quando não há um estímulo poderoso para a vida
moral, ou seja, o amor a Deus.
Não é raro o caso em que as pessoas que aceitam os frutos
das ações sociais não apenas não experimentarem nenhum calor humano, mas
frequentemente certa degradação moral.
Adquirindo o amor
evangélico
Muitas pessoas que pensam amar a Deus na verdade amam apenas
suas próprias fantasias, amam a si mesmas, deleitam-se em suas próprias emoções
e sentimentos.
Para adquirirmos o amor evangélico devemos suprimir de nós
quaisquer manifestações de orgulho, pois é imperativo termos um coração humilde
e um espírito contrito. A pessoa orgulhosa não ama a Deus, mas ama seu amor a
Deus, admirando-o, deleitando-se em suas experiências emocionais e em seus
nervos excitados. Imaginando que ama a Deus, a pessoa orgulhosa ama apenas a si
mesma e as suas sensações emocionais, as quais ela preza acima da fé genuína e
da devoção a Deus.
Na realidade, quem verdadeiramente ama a Deus, não apenas em
palavras e ações, é aquele que luta com todas as suas forças para cumprir os
mandamentos de Deus, os mandamentos do Santo Evangelho.
Mesmo que o desejo inato pelo verdadeiro amor evangélico
resida em nossos corações, é difícil alcançá-lo. “Não pensem vocês, amados
irmãos”, disse o Bispo Ignácio, “que o mandamento de amar o próximo esteja
próximo de nosso coração caído. O mandamento é espiritual; nosso coração é
comandado pela carne e pelo sangue. O mandamento é novo, mas nosso coração é
velho”.
“Nosso amor natural foi ferido pela queda”, diz o Bispo Ignácio.
Está envenenado pelo egoísmo. Quem ama as pessoas que lhe são próximas – seja
família ou amigos – com amor natural, os ama em maior ou menor grau
egoisticamente.
Por esta razão o Evangelho não tem em alta conta aquilo que
é da carne e puramente emocional e que advém dos sentimentos do coração
natural. É sobre isto que diz o Cristo Salvador: Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas
espada; porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra
sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do homem serão os seus
familiares. (Mateus 10:34-36).
A muitos estas palavras soam difíceis de entender, às vezes
até mesmo duvidam delas. O ponto essencial aqui é que o amor carnal-natural, o
amor egoístico, interfere com o verdadeiro amor espiritual do Evangelho. Por
esta razão é necessário minimizar a importância deste amor corporal inferior, considerá-lo
digno de desprezo, a fim de adquirirmos o amor evangélico superior. Ame ao
próximo com amor santo, sem qualquer mescla de egoísmo, e puramente, sem
quaisquer sensualidades ou paixões.
O que é inaceitável, e especialmente ruim para a vida
espiritual, é o fato de o amor natural estar sempre acoplado a certo viés e
injustiça para com o próximo. Quem ama com amor natural o faz com parcialidade prejudicial
para com o amado, idealizando a pessoa, incapaz de enxergar defeitos, pronto a
prover todas as suas falhas, a machucar e ofender as pessoas por sua causa, e
mesmo a cometer maldades se isso agradar ao amado. Em outras palavras, o amor
natural é cego, injusto e escraviza a quem o possui.
O amor espiritual não conhece nenhuma parcialidade injusta;
é razoável e estrito, desejando ao amado não tesouros terrenos e enganosos – e
frequentemente danosos –, mas os tesouros verdadeiros e espirituais. O amor
espiritual – puro, santo, livre, completamente dedicado a Deus – é o Espírito
Santo agindo na alma. Quem ama ao próximo com amor santo, espiritual, deseja
acima de tudo ajudá-lo naquilo que é mais importante: na salvação de sua alma,
no seu progresso espiritual, na aproximação a Deus.
A liberdade cristã
Por que Deus criou o homem com livre arbítrio? Isso é fácil
de entender: a única e exclusiva motivação de Deus ao criar o homem foi Seu
amor. E o amor sempre deseja o maior bem ao seu amado. Ademais, o amor deseja
uma resposta livre – amor por amor – que de forma alguma seja forçado. Apenas
esse tipo de amor é digno: o amor que flui de um coração amoroso, sem compulsão
ou coerção.
Daí conclui-se que a verdadeira liberdade é a capacidade de
viver segundo a vontade de Deus, sem impedimentos. Aquele em quem o pecado não
excita, sobre quem o pecado não tem poder, que progride corajosamente em
direção ao ideal de perfeição moral, eis a verdadeira pessoa livre.
Aquele que se entrega às paixões e vícios começa a
experimentar, já nesta vida, a força plena dos tormentos do inferno que
aguardam o pecador na vida após a morte.
Ocorre que a concepção de liberdade do homem moderno é
completamente diferente. Ele entende a liberdade como sendo o direito e a
oportunidade de fazer o que quiser. Ninguém pode impedir o homem-deus no
exercício de sua liberdade. “Eu quero, eu tenho o direito” se tornou o slogan
do homem moderno. E em verdade a vida se tornou uma batalha: uma batalha feroz pela existência, ou melhor, pelo
senhorio, pela predominância, pela posse exclusiva de todos os bens terrenos.
Tudo isso deriva de um entendimento incorreto da liberdade.
Ao invés de liberdade de cometer
pecados, as pessoas começaram a lutar pela liberdade para cometer pecados. A verdadeira liberdade, a liberdade do
espírito, a liberdade cristã, começou a ser vista como “despotismo”, “coerção”,
como opressão da Igreja, enquanto a devassidão da vontade pecaminosa, a qual
leva à escravização do espírito, tornou-se um ideal de vida.
Hoje vislumbramos o que a realização dessas “liberdades” resultou.
Ao invés da esperada liberdade, do paraíso na terra, o que colhemos é
crueldade, escravidão, não apenas espiritual, mas também física. Ao invés de
liberdade do mal, o que existe hoje é
a liberdade para o mal.
Guiando o coração em
meio às distrações da vida
Por que as distrações são tão prejudiciais? A resposta é
óbvia: a pessoa distraída é incapaz de vigiar a si mesma. Ela está
constantemente preocupada com as coisas que estão fora de si. Como conseguirá ela
observar seu próprio coração quando o principal objeto de sua atenção não está
em sua vida interior, mas nos eventos do mundo exterior. Ela não está
preocupada em reduzir o influxo de impressões externas, mas, ao contrário, vive
totalmente voltada a essas impressões externas. Ver, cheirar, sentir e provar
tudo o que se lhe apresentar, eis o sentido e o propósito de sua vida.
“Como a borboleta que voa de uma flor a outra, a pessoa
distraída voa de um prazer terreno a outro, de uma preocupação vã a outra”, diz
Santo Ignácio. “A pessoa distraída é como uma casa sem portas e trancas: nenhum
tesouro pode ser guardado em uma casa assim, pois está aberta a ladrões e
prostitutas”.
O orgulho autoconfiante que prevalece na sociedade
contemporânea não almeja a purificação do coração, mas o acúmulo do máximo de
benefícios e proveitos para o ego, e esses desejos todos são considerados
legítimos e dignos de serem imediatamente satisfeitos. É como se o homem
moderno tivesse medo de omitir algo, de deixar de aproveitar um único conforto
desta vida terrena e carnal. Podemos dizer com segurança que a vida do homem
moderno não passa de uma busca frenética por todo tipo de conforto e prazer
terreno.
Resistindo ao mal
Ouvistes que foi dito:
Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau;
mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e, ao
que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e,
se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te
pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes. (Mateus
5:38-42)
Nós, cristãos, jamais podemos ficar indiferentes ao mal, não
importa quando e como ele surja. É necessário apenas que a batalha contra o mal
seja livre de componentes pessoais. A batalha contra o mal deve sempre ser
baseada puramente em princípios, não sob o ponto de vista pessoal. Ademais,
nossa batalha, que é uma batalha de princípios contra o mal, deve ser livre de
sentimentos de vingança, de desejo de nos vingarmos contra quem nos desagradou
ou contra quem seja nosso inimigo. As palavras mencionadas acima pelo Salvador
devem ser entendidas desta forma. Sem se referir a batalha contra o mal em
geral, essas palavras apenas nos alertam contra o espírito de vingança, contra
a tendência de querermos nos vingar contra alguma ofensa pessoal que nos é
lançada.
Em primeiro lugar, devemos eliminar/superar o sentimento de
vingança, que é natural em função de nossa natureza ferida pelo pecado.
Porém, não é verdade que toda e qualquer paz seja agradável
a Deus, nem é necessário cultivar toda e qualquer paz. Os Santos Padres, os instrutores
da vida espiritual, afirmam que pode, sim, existir uma “discórdia gloriosa”
assim como “unanimidade desastrosa”. Devemos amar apenas a boa paz, aquela que
tem o bom propósito de nos unir a Deus. O próprio Mestre do Amor, nosso Senhor
Jesus Cristo, afirma que nem toda paz é agradável a Deus e que não é necessário
louvar toda e qualquer paz: Não cuideis
que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. (Mateus
10:34) Esta “paz de Cristo”, que sobrepuja todo entendimento, é uma paz muito
específica, uma paz que não tem nada em comum com a paz humana. Esta é
precisamente a “boa paz” que, segundo a expressão dos Padres, “tem bom
propósito e nos conecta a Deus”. Qualquer outro tipo de paz, por mais atrativa
que seja, deve ser considerada sedução satânica.
É necessário lembrarmos constantemente que quando o
Evangelho fala de perdoar pecados e ofensas o que se tem em mente são os
pecados pessoais e ofensas pessoais. Porém, o que nós normalmente entendemos é
o contrário. O orgulho humano autoconfiante perdoa qualquer coisa, exceto as
ofensas pessoais.
O direito à vingança pertence a Deus, não a você.
Travando a guerra
invisível
O cristão deve lutar contra todo tipo de mal, onde quer que
surja, mas esta batalha, antes de qualquer coisa, deve ser uma batalha travada
em sua própria alma. A batalha contra o mal deve começar dentro de si, e
somente aí é que a batalha será correta, razoável e sólida. Quem lutou e
conseguiu extirpar o mal de sua alma lutará com muito mais facilidade contra o
mal na alma das outras pessoas; quanto menos mal restar na alma do soldado de
Cristo, mais bem sucedida será esta batalha.
No entanto, a “batalha visível” tomou o lugar da “batalha
invisível” na vida do homem moderno. E a batalha contra o mal que o homem
moderno trava não é bem sucedida porque as pessoas não lutam exatamente contra
o mal, mas contra as outras pessoas, ao mesmo tempo em que conservam esses
mesmos males em suas almas.
Eis porque uma vasta e ilimitada avenida está aberta para
que laboremos contra o mal que está em nossas almas e semeemos a virtude que
nelas faltam.
Nas palavras dos Santos Padres, quem se engajar nesta
batalha invisível estará lutando contra si mesmo, ou melhor, contra seu amor
próprio, seu amor auto-centrado, ou em linguagem secular, contra o egoísmo que
está enraizado no orgulho humano autoconfiante.
Portanto, os Santos Padres dizem que quem deseja a vitória
na batalha invisível deve estabelecer em seu coração as seguintes quatro
disposições ou inclinações: (1) nunca, jamais, confiar em si mesmo, (2) sempre
preservar em seu coração uma esperança resoluta e inabalável no Deus único, (3)
laborar sem cessar e (4) estar sempre em oração.
Desde os tempos da queda de nossos antepassados, apesar da
evidente fraqueza de nossos poderes espirituais e morais, em geral nós pensamos
que somos grande coisa. Embora a experiência do dia-a-dia não canse de nos
convencer da falsidade desse tipo de pensamento, continuamos a acreditar, num
incompreensível autoengano, que somos “alguma coisa” ou mesmo “pessoas
especiais”. Essa opinião auto-exaltada que nutrimos sobre nós mesmos impede que
a graça de Deus entre e habite em nós.
Os Santos Padres indicam as seguintes quatro disposições:
(1) Tente perceber sua fraqueza observando todas as
experiências de sua vida, e mantenha constantemente a consciência do fato de
que você não pode fazer nada de bom sem a ajuda de Deus. São Pedro Damasceno
diz o seguinte: “Não há nada melhor do que perceber sua fraqueza e sua
ignorância, e não há nada pior do que não estar consciente delas”. São Máximo,
o Confessor, ensina que “o fundamento de toda virtude é perceber a fraqueza
humana”. São João Crisóstomo confirma: “Somente aquele que sabe que não é nada
sabe de alguma coisa”.
(2) Peça a Deus em oração para que Ele lhe dê a
percepção da sua fraqueza e insignificância, mas antes consolide em você a
convicção de que você não tem essa consciência e que ela só pode ser adquirida
como um dom de Deus.
(3) Sempre desconfie de si mesmo e seja cauteloso com
respeito às ardilosas armadilhas de Satanás, contra quem é impossível lutar sem
a ajuda de Deus.
(4) Se acontecer de você cometer algum pecado,
reconheça imediatamente sua fraqueza e total impotência. Convença-se do fato de
que Deus permitiu esta queda para que você perceba sua debilidade e
insignificância ante Deus e aprenda a desdenhar de si mesmo.
Portanto, o que é mais necessário para o sucesso na batalha
invisível é o reconhecimento de sua própria fraqueza e total insignificância
sem a ajuda de Deus. A consciência disso é tão necessária que Deus, em Sua
providência, permite que as pessoas cometam pecados, especialmente os pecados
contra os quais se consideravam fortes o suficiente para evitar.
Mas como conseguimos saber se estamos realmente livres de
confiar em nós mesmos e esperar completamente em Deus?
Eis como. Algumas pessoas imaginam que não confiam em si
mesmas e que depositam toda sua esperança em Deus. Bem, quando cometem algum
pecado, elas se desesperam e entram em um estado de melancolia; sua alma se
torna lúgubre. Esta tristeza excessiva, lúgubre, é um sinal de que elas
esperavam não em Deus, mas em si mesmas, e que portanto a traição de sua
autoconfiança, através do pecado, é algo particularmente difícil e tortuoso de
aguantar, o que as leva ao desespero. Mas quem realmente não confia em si mesmo,
quem não confia em seus próprios poderes, não vai ficar muito surpreso pelo
pecado que cometeu e, portanto, não vai se deixar cair em tristeza excessiva;
ele sabe e entende que isso aconteceu por causa de sua fraqueza e que nada de
bom pode-se esperar dele.
A batalha cristã
Ao forçar-se a fazer o bem, o fiel demonstra que busca a
virtude. Eis o que realmente atrai a poderosa graça de Deus, a qual, em
conjunto com o esforço humano, torna a pessoa vitoriosa sobre o mal em sua
alma. Eis o propósito supremo da batalha invisível.
O asceticismo é o único caminho para a tão desejada felicidade
que as pessoas buscam. A experiência da vida mostra que a felicidade não está
fora do homem, onde ele inutilmente a busca, mas dentro. A felicidade está no
estado pacífico da alma, na serenidade e calma interiores, que advêm da
satisfação interior em vencer o mal e a erradicação dos maus hábitos que
tiranizam a alma. Os hábitos pecaminosos criam caos e confusão. As inclinações
malignas jamais serão pacíficas, calmas e alegres. A única maneira de pacificar
a alma é suprimir e erradicar os maus hábitos por meio do asceticismo, de um
estilo de vida ascético.
Os pecados são cometidos segundo um padrão bem consistente.
O primeiro estágio do pecado é o estágio da “sugestão”, quando pensamentos e
sugestões pecaminosas entram de maneira não-intencional, por acaso, contrariamente
à vontade, na alma da pessoa, seja
através dos sentidos, das emoções ou da imaginação. Nesta fase ainda não
há pecado, mas apenas um prelúdio de pecado. O “aceite” é a recepção da “sugestão”,
ou seja, é prestar atenção àquilo que foi sugerido, o que nem sempre ocorre sem
pecado. O “consentimento” é quando a alma se deleita no pensamento ou na imagem
que lhe foi apresentada; nesta altura é grande o perigo de realmente cometer o
pecado com ação. O próximo estágio é o “cativeiro”, ou seja, quando a alma se
sente tão fortemente atraída pelo pecado que o estado pacífico da alma se
perde. Por fim vem a “paixão”, que nada mais é do que o deleite habitual e
prolongado dos pensamentos e sentimentos pecaminosos, chegando ao ponto de
cometer o pecado com ações. Eis a completa escravidão ao pecado, e aquele que
não se arrepende e não expulsa sua paixão estará sujeito a tormentos eternos.
Porém, aquele que está possuído por uma ou outra paixão começa a experimentar,
ainda nesta vida, uma prefiguração do que será o tormento eterno na vida
futura. Nesta altura, somente uma batalha intensa e persistente, aliada à graça
de Deus, será capaz de extirpar o pecado que se tornou a segunda natureza da
alma.
O que essencialmente precisamos nos lembrar na batalha
contra as paixões? “Toda resistência às demandas da paixão a enfraquece; a constante
resistência à paixão a destrona. Por outro lado, o apego à paixão a fortalece;
o apego constante à paixão escraviza a pessoa que por ela se afeiçoou” (Santo
Ignácio (Brianchaninov)).
Fonte:
Archbishop Averky (Taushev), The Struggle
for Virtue, Holy Trinity Publications, Jordanville, EUA, 2014, trechos
selecionados.