27 de janeiro de 2017

O caminho da felicidade


Introdução

Chamamos de “asceticismo” a prática constante de boas obras, e quem se esforça na prática de boas obras chamamos de “asceta”.

O treinamento espiritual consiste em esforçar-se para a realização de boas obras e refrear os maus hábitos e aspirações da alma que se opõem a esse treinamento. Não é uma tarefa fácil visto que vem sempre acompanhada de esforços árduos e quase sempre por uma batalha digna de martírio, a qual os Santos Padres e ascetas chamam, não sem razão, de autocrucificação, de acordo com as palavras de São Paulo: E os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências. (Gálatas 5:24)

O ponto aqui não são as obras, mas a disposição interior do homem, a vontade boa ou má de sua alma e a condição virtuosa ou depravada de seu coração, do qual as boas e más obras brotam naturalmente. O próprio Cristo Salvador se manifestou a respeito disso: Mas, o que sai da boca, procede do coração, e isso contamina o homem. Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, fornicação, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias. (Mateus 15:18-19)

É óbvio, portanto, que o centro de gravidade da vida espiritual não está nas obras em si, mas nas disposições da alma e no estado interior do homem das quais elas resultam. “Tema os maus hábitos”, disse um dos maiores professores do asceticismo, Santo Isaque, o Sírio, “mais do que os demônios”.

“Esforço” [podvig] é uma palavra tipicamente russa e que corresponde perfeitamente ao espírito da palavra grega “asceticismo” [askesis].

Mas será que todos os cristãos deveriam ser ascetas?

Fazer essa pergunta é a mesma coisa que perguntar se todas as pessoas criadas por Deus estão destinadas à comunhão espiritual com seu Criador. Ora, o asceticismo é para todos, e não apenas para monges.

Pois a felicidade, conforme a experiência da vida demonstra, não está fora do homem, onde ele inutilmente a procura, mas dentro dele: a felicidade está na disposição pacífica da alma, na paz interior serena proveniente da profunda satisfação interior que provém da conquista do mal após desarraigar os maus hábitos que tiranizam a alma.

Quem se abstém do asceticismo é inimigo de si mesmo, privando-se do maior dos bens: a paz de consciência e a comunhão abençoada com Deus.

O discernimento espiritual

Normalmente as pessoas afirmam que o órgão responsável pelos sentimentos é o coração humano. Isso acontece porque todas as emoções – alegria ou tristeza, desalento ou prazer, gostos ou desgostos, raiva ou disposição pacífica do espírito, calma ou agitação – sempre ressoam no coração, seja agregando-lhe energia ou diminuindo sua atividade. O coração registra aquilo que dá prazer ou desprazer. Dado que as pessoas naturalmente buscam aquilo que dá prazer e desejam evitar aquilo que é desagradável, o coração se torna o centro de nossas vidas, o lugar onde tudo o que entra de fora fica contido e do qual advém tudo o que está no interior.

A vontade controla os desejos da pessoa e não está localizada em nenhum órgão específico. A vontade age em todas as partes do corpo, e são essas partes que põem o corpo em movimento, ou seja, é a decisão da vontade que age nos músculos e nervos.

O homem moderno no mais das vezes não é capaz de diferenciar as ações do corpo, da alma e da vida espiritual, e acaba misturando tudo, gerando uma grande confusão. É por isso que hoje em dia absolutamente qualquer coisa é associada à expressão “vida espiritual”, menos o que é autenticamente vida espiritual. A ciência, bem como todo tipo de descoberta e invenção – cinema, teatro, balé, e até o circo – são hoje em dia tidos como elementos da área da espiritualidade. Em outras palavras, tudo aquilo que é emocional ou natural é tido como espiritual, e tudo o que está totalmente relacionado à vida secular é confundido com “vida espiritual”.

Contudo, não importa o quanto tentemos suprimir de nosso interior as necessidades do espírito, essas necessidades vão exigir seus direitos. O espírito aspira por Deus, mas, incapaz de encontrar um meio de realizar suas aspirações sob a pressão violenta da pesada opressão do orgulho humano, o espírito se satisfaz com seus substitutos, os quais são inventados pelo próprio orgulho humano com o intuito de acalmá-lo. No lugar da autêntica religião, o espírito se embebe de doutrinas filosóficas nebulosas, seja a teosofia, seja o espiritismo, seja o que for. No lugar da Igreja, o espírito busca o “templo” da ciência, do teatro, do balé etc. – ou seja, qualquer coisa da vida mundana que seja capaz de cativar a pessoa. Esse tipo de falsificação, ou seja, a substituição da espiritualidade por elementos emocionais, é o traço característico de nossos tempos.

Por exemplo, muitos de nós, russos, no passado e no presente, vão à igreja com o intuito de desfrutar de sentimentos estéticos, de ouvir belas canções. Não há dúvida de que os sentimentos estéticos sejam, evidentemente, uma sensação exaltada, o senso do belo na alma, o reflexo de uma Beleza divina superior. Porém, na medida em que essa sensação permaneça inconsciente, ou seja, desconectada de uma consciência de atração por Deus, ela permanecerá no âmbito do mundanismo e alheia à verdadeira espiritualidade.

O homem moderno acha que as coisas “emotivas” são “espirituais”. A genuína vida espiritual está sempre totalmente desprovida de paixões, tão exaltada que chega ao ponto de elevar a pessoa acima da terra, sem lhe oferecer quaisquer sensações mundanas. Por outro lado, todo estado mundano e natural, por mais elevado que seja, irá, sem dúvida alguma, despertar sensações mundanas e carnais – por exemplo, batimentos cardíacos acelerados, agradáveis cintilações nervosas, arrepios – os quais sempre surgem quando a pessoa ouve belas músicas e canções. Esse amplo predomínio do emocionalismo no homem contemporâneo explica porque o canto eclesiástico genuíno, que satisfaz apenas a espiritualidade, é atordoante e tedioso para a grande maioria das pessoas, mesmo para aquelas que frequentemente vão à igreja.

Todos os entretenimentos modernos agem como álcool e cocaína no homem contemporâneo. Os entretenimentos de hoje em dia anestesiam a vida espiritual do homem, paralisam os impulsos espirituais e suprimem a voz da consciência e das normas morais.

Amor evangélico e altruísmo humanista

Sem fé em Jesus Cristo como Filho de Deus não há verdadeiro amor a Deus ou ao próximo. O verdadeiro, puro e desinteressado amor a Deus e aos homens é impossível exceto sob a ação da fé na divindade do Cristo Salvador – fé no fato de que Ele é o Filho de Deus encarnado, o qual desceu à terra para salvar a humanidade.

Pois somente esse tipo de fé no Filho de Deus – uma fé ardente e viva nAquele que se humilhou por nós homens e se entregou a uma morte desgraçada e tortuosa – é capaz de despertar em nós uma grata resposta de amor a Deus. Esse amor nos inspira a um desejo ardente de viver segundo Sua vontade e a nunca ofendê-Lo e, consequentemente, a amar o próximo como semelhante e filho de Deus, como nosso irmão em Cristo para o qual Cristo nosso Salvador também derramou seu puro e precioso sangue.

Além disso tudo, nossa natureza encontra-se tão quebrantada pelo pecado que, sem essa fé na salvífica graça de Deus a nós dada pelo sofrimento do Filho de Deus na cruz, sem essa santificação e iluminação cheia de graça, somos incapazes de fazer qualquer coisa realmente boa; somos incapazes de amar pura e desinteressadamente a Deus e ao próximo. Sem a santificação e a iluminação que vêm do alto, nosso amor – se é que realmente está dentro de nós – permanecerá desprovido da pureza e da santidade do Evangelho. Nosso amor estará envenenado de amor próprio e egoísmo, o qual é tão sutil e difícil de identificar que nem mesmo conseguimos notá-lo. Pensamos que verdadeiramente amamos a Deus e ao próximo, quando na verdade tudo isso não passa de amor próprio, não de amor a Deus e ao próximo.

Os defensores da moralidade autônoma atacam a moralidade cristã como se esta fosse motivada por princípios morais primitivos: medo dos futuros tormentos no inferno e desejo de ser recompensado na vida futura. Ora, já passou da hora de rejeitarmos essa ideia católica romana de que Deus nos recompensa por boas obras e nos pune pelas más ações.

A única motivação da moralidade  cristã é o amor, isto é, amor a Deus como nosso Pai e Benfeitor.

Se Deus não existe e não somos todos irmãos, então qual o propósito de fazer o bem ao próximo? Não seria melhor que cada um de nós vivesse única e exclusivamente para nosso próprio prazer, a buscar nossos próprios objetivos e interesses?

Outro aspecto da moralidade irreligiosa que frequentemente nos passa despercebido é a vaidade. Este sentimento de vaidade é quase sempre a motivação por trás dos fundadores e administradores das sociedades filantrópicas, das pessoas ricas que doam uma parte insignificante de suas riquezas para boas ações, ou seja, para se mostrarem como pessoas boas. Muito frequentemente a vaidade é a força que compele as pessoas sentimentais, aquelas pessoas que sinceramente se consideram pessoas decentes, que fazem o bem e choram por causa de suas ações benevolentes. Muita gente pensa, com toda a sinceridade, que essas pessoas estão fazendo o bem pelo bem quando, na verdade, estão apenas alimentando suas próprias vaidades.

É absurdo sustentar que alguém possa ser realmente virtuoso – no sentido cristão da palavra – sem fé em Deus, sem amor a Deus. Pois qual é o propósito e em nome de quem a pessoa restringirá seus próprios impulsos egoísticos?

Dostoyevsky dizia que “se Deus não existe então tudo é permitido”. Isso acontece não apenas quando não há medo de castigo pelos pecados, mas acima de tudo quando não há um estímulo poderoso para a vida moral, ou seja, o amor a Deus.

Não é raro o caso em que as pessoas que aceitam os frutos das ações sociais não apenas não experimentarem nenhum calor humano, mas frequentemente certa degradação moral.

Adquirindo o amor evangélico

Muitas pessoas que pensam amar a Deus na verdade amam apenas suas próprias fantasias, amam a si mesmas, deleitam-se em suas próprias emoções e sentimentos.

Para adquirirmos o amor evangélico devemos suprimir de nós quaisquer manifestações de orgulho, pois é imperativo termos um coração humilde e um espírito contrito. A pessoa orgulhosa não ama a Deus, mas ama seu amor a Deus, admirando-o, deleitando-se em suas experiências emocionais e em seus nervos excitados. Imaginando que ama a Deus, a pessoa orgulhosa ama apenas a si mesma e as suas sensações emocionais, as quais ela preza acima da fé genuína e da devoção a Deus.

Na realidade, quem verdadeiramente ama a Deus, não apenas em palavras e ações, é aquele que luta com todas as suas forças para cumprir os mandamentos de Deus, os mandamentos do Santo Evangelho.

Mesmo que o desejo inato pelo verdadeiro amor evangélico resida em nossos corações, é difícil alcançá-lo. “Não pensem vocês, amados irmãos”, disse o Bispo Ignácio, “que o mandamento de amar o próximo esteja próximo de nosso coração caído. O mandamento é espiritual; nosso coração é comandado pela carne e pelo sangue. O mandamento é novo, mas nosso coração é velho”.

“Nosso amor natural foi ferido pela queda”, diz o Bispo Ignácio. Está envenenado pelo egoísmo. Quem ama as pessoas que lhe são próximas – seja família ou amigos – com amor natural, os ama em maior ou menor grau egoisticamente.

Por esta razão o Evangelho não tem em alta conta aquilo que é da carne e puramente emocional e que advém dos sentimentos do coração natural. É sobre isto que diz o Cristo Salvador: Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do homem serão os seus familiares. (Mateus 10:34-36).

A muitos estas palavras soam difíceis de entender, às vezes até mesmo duvidam delas. O ponto essencial aqui é que o amor carnal-natural, o amor egoístico, interfere com o verdadeiro amor espiritual do Evangelho. Por esta razão é necessário minimizar a importância deste amor corporal inferior, considerá-lo digno de desprezo, a fim de adquirirmos o amor evangélico superior. Ame ao próximo com amor santo, sem qualquer mescla de egoísmo, e puramente, sem quaisquer sensualidades ou paixões.

O que é inaceitável, e especialmente ruim para a vida espiritual, é o fato de o amor natural estar sempre acoplado a certo viés e injustiça para com o próximo. Quem ama com amor natural o faz com parcialidade prejudicial para com o amado, idealizando a pessoa, incapaz de enxergar defeitos, pronto a prover todas as suas falhas, a machucar e ofender as pessoas por sua causa, e mesmo a cometer maldades se isso agradar ao amado. Em outras palavras, o amor natural é cego, injusto e escraviza a quem o possui.

O amor espiritual não conhece nenhuma parcialidade injusta; é razoável e estrito, desejando ao amado não tesouros terrenos e enganosos – e frequentemente danosos –, mas os tesouros verdadeiros e espirituais. O amor espiritual – puro, santo, livre, completamente dedicado a Deus – é o Espírito Santo agindo na alma. Quem ama ao próximo com amor santo, espiritual, deseja acima de tudo ajudá-lo naquilo que é mais importante: na salvação de sua alma, no seu progresso espiritual, na aproximação a Deus.

A liberdade cristã

Por que Deus criou o homem com livre arbítrio? Isso é fácil de entender: a única e exclusiva motivação de Deus ao criar o homem foi Seu amor. E o amor sempre deseja o maior bem ao seu amado. Ademais, o amor deseja uma resposta livre – amor por amor – que de forma alguma seja forçado. Apenas esse tipo de amor é digno: o amor que flui de um coração amoroso, sem compulsão ou coerção.

Daí conclui-se que a verdadeira liberdade é a capacidade de viver segundo a vontade de Deus, sem impedimentos. Aquele em quem o pecado não excita, sobre quem o pecado não tem poder, que progride corajosamente em direção ao ideal de perfeição moral, eis a verdadeira pessoa livre.

Aquele que se entrega às paixões e vícios começa a experimentar, já nesta vida, a força plena dos tormentos do inferno que aguardam o pecador na vida após a morte.

Ocorre que a concepção de liberdade do homem moderno é completamente diferente. Ele entende a liberdade como sendo o direito e a oportunidade de fazer o que quiser. Ninguém pode impedir o homem-deus no exercício de sua liberdade. “Eu quero, eu tenho o direito” se tornou o slogan do homem moderno. E em verdade a vida se tornou uma batalha: uma batalha feroz pela existência, ou melhor, pelo senhorio, pela predominância, pela posse exclusiva de todos os bens terrenos.

Tudo isso deriva de um entendimento incorreto da liberdade. Ao invés de liberdade de cometer pecados, as pessoas começaram a lutar pela liberdade para cometer pecados. A verdadeira liberdade, a liberdade do espírito, a liberdade cristã, começou a ser vista como “despotismo”, “coerção”, como opressão da Igreja, enquanto a devassidão da vontade pecaminosa, a qual leva à escravização do espírito, tornou-se um ideal de vida.

Hoje vislumbramos o que a realização dessas “liberdades” resultou. Ao invés da esperada liberdade, do paraíso na terra, o que colhemos é crueldade, escravidão, não apenas espiritual, mas também física. Ao invés de liberdade do mal, o que existe hoje é a liberdade para o mal.

Guiando o coração em meio às distrações da vida

Por que as distrações são tão prejudiciais? A resposta é óbvia: a pessoa distraída é incapaz de vigiar a si mesma. Ela está constantemente preocupada com as coisas que estão fora de si. Como conseguirá ela observar seu próprio coração quando o principal objeto de sua atenção não está em sua vida interior, mas nos eventos do mundo exterior. Ela não está preocupada em reduzir o influxo de impressões externas, mas, ao contrário, vive totalmente voltada a essas impressões externas. Ver, cheirar, sentir e provar tudo o que se lhe apresentar, eis o sentido e o propósito de sua vida.

“Como a borboleta que voa de uma flor a outra, a pessoa distraída voa de um prazer terreno a outro, de uma preocupação vã a outra”, diz Santo Ignácio. “A pessoa distraída é como uma casa sem portas e trancas: nenhum tesouro pode ser guardado em uma casa assim, pois está aberta a ladrões e prostitutas”.

O orgulho autoconfiante que prevalece na sociedade contemporânea não almeja a purificação do coração, mas o acúmulo do máximo de benefícios e proveitos para o ego, e esses desejos todos são considerados legítimos e dignos de serem imediatamente satisfeitos. É como se o homem moderno tivesse medo de omitir algo, de deixar de aproveitar um único conforto desta vida terrena e carnal. Podemos dizer com segurança que a vida do homem moderno não passa de uma busca frenética por todo tipo de conforto e prazer terreno.

Resistindo ao mal

Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes. (Mateus 5:38-42)

Nós, cristãos, jamais podemos ficar indiferentes ao mal, não importa quando e como ele surja. É necessário apenas que a batalha contra o mal seja livre de componentes pessoais. A batalha contra o mal deve sempre ser baseada puramente em princípios, não sob o ponto de vista pessoal. Ademais, nossa batalha, que é uma batalha de princípios contra o mal, deve ser livre de sentimentos de vingança, de desejo de nos vingarmos contra quem nos desagradou ou contra quem seja nosso inimigo. As palavras mencionadas acima pelo Salvador devem ser entendidas desta forma. Sem se referir a batalha contra o mal em geral, essas palavras apenas nos alertam contra o espírito de vingança, contra a tendência de querermos nos vingar contra alguma ofensa pessoal que nos é lançada.

Em primeiro lugar, devemos eliminar/superar o sentimento de vingança, que é natural em função de nossa natureza ferida pelo pecado.

Porém, não é verdade que toda e qualquer paz seja agradável a Deus, nem é necessário cultivar toda e qualquer paz. Os Santos Padres, os instrutores da vida espiritual, afirmam que pode, sim, existir uma “discórdia gloriosa” assim como “unanimidade desastrosa”. Devemos amar apenas a boa paz, aquela que tem o bom propósito de nos unir a Deus. O próprio Mestre do Amor, nosso Senhor Jesus Cristo, afirma que nem toda paz é agradável a Deus e que não é necessário louvar toda e qualquer paz: Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. (Mateus 10:34) Esta “paz de Cristo”, que sobrepuja todo entendimento, é uma paz muito específica, uma paz que não tem nada em comum com a paz humana. Esta é precisamente a “boa paz” que, segundo a expressão dos Padres, “tem bom propósito e nos conecta a Deus”. Qualquer outro tipo de paz, por mais atrativa que seja, deve ser considerada sedução satânica.

É necessário lembrarmos constantemente que quando o Evangelho fala de perdoar pecados e ofensas o que se tem em mente são os pecados pessoais e ofensas pessoais. Porém, o que nós normalmente entendemos é o contrário. O orgulho humano autoconfiante perdoa qualquer coisa, exceto as ofensas pessoais.

O direito à vingança pertence a Deus, não a você.

Travando a guerra invisível

O cristão deve lutar contra todo tipo de mal, onde quer que surja, mas esta batalha, antes de qualquer coisa, deve ser uma batalha travada em sua própria alma. A batalha contra o mal deve começar dentro de si, e somente aí é que a batalha será correta, razoável e sólida. Quem lutou e conseguiu extirpar o mal de sua alma lutará com muito mais facilidade contra o mal na alma das outras pessoas; quanto menos mal restar na alma do soldado de Cristo, mais bem sucedida será esta batalha.

No entanto, a “batalha visível” tomou o lugar da “batalha invisível” na vida do homem moderno. E a batalha contra o mal que o homem moderno trava não é bem sucedida porque as pessoas não lutam exatamente contra o mal, mas contra as outras pessoas, ao mesmo tempo em que conservam esses mesmos males em suas almas.

Eis porque uma vasta e ilimitada avenida está aberta para que laboremos contra o mal que está em nossas almas e semeemos a virtude que nelas faltam.

Nas palavras dos Santos Padres, quem se engajar nesta batalha invisível estará lutando contra si mesmo, ou melhor, contra seu amor próprio, seu amor auto-centrado, ou em linguagem secular, contra o egoísmo que está enraizado no orgulho humano autoconfiante.

Portanto, os Santos Padres dizem que quem deseja a vitória na batalha invisível deve estabelecer em seu coração as seguintes quatro disposições ou inclinações: (1) nunca, jamais, confiar em si mesmo, (2) sempre preservar em seu coração uma esperança resoluta e inabalável no Deus único, (3) laborar sem cessar e (4) estar sempre em oração.

Desde os tempos da queda de nossos antepassados, apesar da evidente fraqueza de nossos poderes espirituais e morais, em geral nós pensamos que somos grande coisa. Embora a experiência do dia-a-dia não canse de nos convencer da falsidade desse tipo de pensamento, continuamos a acreditar, num incompreensível autoengano, que somos “alguma coisa” ou mesmo “pessoas especiais”. Essa opinião auto-exaltada que nutrimos sobre nós mesmos impede que a graça de Deus entre e habite em nós.

Os Santos Padres indicam as seguintes quatro disposições:

(1) Tente perceber sua fraqueza observando todas as experiências de sua vida, e mantenha constantemente a consciência do fato de que você não pode fazer nada de bom sem a ajuda de Deus. São Pedro Damasceno diz o seguinte: “Não há nada melhor do que perceber sua fraqueza e sua ignorância, e não há nada pior do que não estar consciente delas”. São Máximo, o Confessor, ensina que “o fundamento de toda virtude é perceber a fraqueza humana”. São João Crisóstomo confirma: “Somente aquele que sabe que não é nada sabe de alguma coisa”.

(2)  Peça a Deus em oração para que Ele lhe dê a percepção da sua fraqueza e insignificância, mas antes consolide em você a convicção de que você não tem essa consciência e que ela só pode ser adquirida como um dom de Deus.

(3)   Sempre desconfie de si mesmo e seja cauteloso com respeito às ardilosas armadilhas de Satanás, contra quem é impossível lutar sem a ajuda de Deus.

(4) Se acontecer de você cometer algum pecado, reconheça imediatamente sua fraqueza e total impotência. Convença-se do fato de que Deus permitiu esta queda para que você perceba sua debilidade e insignificância ante Deus e aprenda a desdenhar de si mesmo.

Portanto, o que é mais necessário para o sucesso na batalha invisível é o reconhecimento de sua própria fraqueza e total insignificância sem a ajuda de Deus. A consciência disso é tão necessária que Deus, em Sua providência, permite que as pessoas cometam pecados, especialmente os pecados contra os quais se consideravam fortes o suficiente para evitar.

Mas como conseguimos saber se estamos realmente livres de confiar em nós mesmos e esperar completamente em Deus?

Eis como. Algumas pessoas imaginam que não confiam em si mesmas e que depositam toda sua esperança em Deus. Bem, quando cometem algum pecado, elas se desesperam e entram em um estado de melancolia; sua alma se torna lúgubre. Esta tristeza excessiva, lúgubre, é um sinal de que elas esperavam não em Deus, mas em si mesmas, e que portanto a traição de sua autoconfiança, através do pecado, é algo particularmente difícil e tortuoso de aguantar, o que as leva ao desespero. Mas quem realmente não confia em si mesmo, quem não confia em seus próprios poderes, não vai ficar muito surpreso pelo pecado que cometeu e, portanto, não vai se deixar cair em tristeza excessiva; ele sabe e entende que isso aconteceu por causa de sua fraqueza e que nada de bom pode-se esperar dele.

A batalha cristã

Ao forçar-se a fazer o bem, o fiel demonstra que busca a virtude. Eis o que realmente atrai a poderosa graça de Deus, a qual, em conjunto com o esforço humano, torna a pessoa vitoriosa sobre o mal em sua alma. Eis o propósito supremo da batalha invisível.

O asceticismo é o único caminho para a tão desejada felicidade que as pessoas buscam. A experiência da vida mostra que a felicidade não está fora do homem, onde ele inutilmente a busca, mas dentro. A felicidade está no estado pacífico da alma, na serenidade e calma interiores, que advêm da satisfação interior em vencer o mal e a erradicação dos maus hábitos que tiranizam a alma. Os hábitos pecaminosos criam caos e confusão. As inclinações malignas jamais serão pacíficas, calmas e alegres. A única maneira de pacificar a alma é suprimir e erradicar os maus hábitos por meio do asceticismo, de um estilo de vida ascético.

Os pecados são cometidos segundo um padrão bem consistente. O primeiro estágio do pecado é o estágio da “sugestão”, quando pensamentos e sugestões pecaminosas entram de maneira não-intencional, por acaso, contrariamente à vontade, na alma da pessoa, seja  através dos sentidos, das emoções ou da imaginação. Nesta fase ainda não há pecado, mas apenas um prelúdio de pecado. O “aceite” é a recepção da “sugestão”, ou seja, é prestar atenção àquilo que foi sugerido, o que nem sempre ocorre sem pecado. O “consentimento” é quando a alma se deleita no pensamento ou na imagem que lhe foi apresentada; nesta altura é grande o perigo de realmente cometer o pecado com ação. O próximo estágio é o “cativeiro”, ou seja, quando a alma se sente tão fortemente atraída pelo pecado que o estado pacífico da alma se perde. Por fim vem a “paixão”, que nada mais é do que o deleite habitual e prolongado dos pensamentos e sentimentos pecaminosos, chegando ao ponto de cometer o pecado com ações. Eis a completa escravidão ao pecado, e aquele que não se arrepende e não expulsa sua paixão estará sujeito a tormentos eternos. Porém, aquele que está possuído por uma ou outra paixão começa a experimentar, ainda nesta vida, uma prefiguração do que será o tormento eterno na vida futura. Nesta altura, somente uma batalha intensa e persistente, aliada à graça de Deus, será capaz de extirpar o pecado que se tornou a segunda natureza da alma.

O que essencialmente precisamos nos lembrar na batalha contra as paixões? “Toda resistência às demandas da paixão a enfraquece; a constante resistência à paixão a destrona. Por outro lado, o apego à paixão a fortalece; o apego constante à paixão escraviza a pessoa que por ela se afeiçoou” (Santo Ignácio (Brianchaninov)).


Fonte: Archbishop Averky (Taushev), The Struggle for Virtue, Holy Trinity Publications, Jordanville, EUA, 2014, trechos selecionados.