6 de fevereiro de 2015

Confissões: trechos selecionados


Livro I – Do nascimento aos quinze anos

Tu amas e não Te apaixonas; Tu és cioso, porém tranquilo; Tu Te arrependes sem sofrer; entras em ira, mas és calmo; mudas as coisas sem mudar o Teu plano; recuperas o que encontras sem nunca teres perdido; nunca estás pobre, mas Te alegras com os lucros; não és avaro e exiges os juros; nós Te damos em excesso, para que sejas nosso devedor. Mas, quem possui alguma coisa que não seja Tua? Pagas as dívidas, sempre sem que devas a ninguém, e perdoas o que Te é devido, sem nada perderes.

Mas, que estamos dizendo, meu Deus, vida da minha vida, minha divina delícia? Que consegue dizer alguém quando fala de Ti? Mas ai dos que não querem falar de Ti, pois são mudos que falam.

* * *

Eu mesmo nada lembro daquele tempo [de criança pequena]. Pouco a pouco ia reconhecendo o lugar onde me encontrava, e queria manifestar meus desejos às pessoas que deviam satisfazê-los, mas não conseguia, porque eles estavam dentro de minha alma e elas estavam fora, e através de nenhuma percepção teriam podido penetrar no âmago de minha alma. E assim eu me debatia e gritava, exprimindo uns poucos sinais proporcionais aos meus desejos, como eu podia e de maneira inadequada. Se não me obedeciam, ou porque não me entendiam ou por medo de me fazerem mal, eu me indignava com essas pessoas grandes e insubmissas que, sendo livres, recusavam ser minhas escravas, chorando, eu me vingava delas. Assim são as crianças, como depois pude observar.

Quem me poderá lembrar os pecados cometidos na infância, já que ninguém há que diante de Ti seja imune ao pecado, nem mesmo o recém-nascido com um dia apenas de vida sobre a terra?

Ou seria justo, mesmo tendo em conta a idade, exigir chorando o que seria prejudicial, indignar-se com violência contra homens adultos e de condição livre, e contra os pais e outras pessoas sensatas que não aceitavam satisfazer a certos desejos? Seria justo fazer todo o possível para prejudicá-los, porque eles não se prestavam a obedecer a ordens que seriam nocivas? Portanto, a inocência das crianças reside na fragilidade dos membros, não na alma. Vi e observei bem uma criança dominada pela inveja: não falava ainda, mas olhava, pálida e incitada para seu irmão de leite. Sem dúvida não é inocente a criança que, diante da fonte generosa e abundante de leite, não admite dividi-la com um irmão, embora muito necessitado desse alimento para sustentar a vida. No entanto, tais fatos são tolerados com indulgência, não por serem de pouca ou nenhuma importância, mas porque desaparecerão ao correr dos anos. Prova disso é que nos irritamos contra tal procedimento quando o surpreendemos em pessoa de mais idade.

* * *

Rogo-Te, meu Deus, que me mostres por qual desígnio foi adiado o meu batismo: as rédeas do pecado me foram soltas, por assim dizer, para o meu bem, ou não? Por esse motivo é que ainda hoje ouvimos dizer deste ou daquele: “Deixe que ele faça o que quiser: ainda não foi batizado”! Mas, em relação à saúde do corpo, não dizemos: “Deixe que se fira mais, pois ainda não foi curado”! Quanto teria sido preferível ser logo curado e esforçar-me para conservar intacta a saúde da minha alma, sob a proteção que me terias dado! Sem dúvida teria sido melhor.

Eu não Te amava. Prevaricava longe de Ti. E, enquanto prevaricava, de toda parte ressoavam aplausos: Muito bem! Coragem! A amizade a este mundo é de fato adultério, prevaricação e infidelidade a Ti, e as palavras “Muito bem! Coragem” são proferidas para que o homem se envergonhe se não for como os outros. Eu era terra que tenha para a terra.

* * *

Nada é tão digno de censura como o vício; no entanto, para não ser censurado, eu mergulhava ainda mais no vício; quando não me podia igualar a meus companheiros corruptos, fingia ter praticado o que não praticara, para não parecer desprezível pela inocência ou ridículo por ser casto.

Livro II – Os dezesseis anos

E a ambição, o que procura senão honras e glórias, enquanto somente Tu és digno de ser honrado e glorificado eternamente?

A crueldade dos poderosos deseja ser temida; mas, quem deve ser temido, senão Tu, meu Deus? Ao Teu domínio nada pode fugir: quem o poderia fazer, e como, e quando?

Os carinhos dos voluptuosos buscam a reciprocidade do amor, mas nada é mais acariciante do que Tua caridade, e nada mais salutar para ser amado, que a Tua verdade, a mais bela e resplandecente de todas as coisas.

A curiosidade quer aparentar interesse pela ciência, mas só Tu conheces plenamente tudo.

Até a ignorância e insipiência cobrem-se com o manto da simplicidade e da inocência; mas nada é mais simples, nada é mais inocente do que Tu. As próprias obras que prejudicam os malvados.

A preguiça parece desejar apenas a tranquilidade, mas que repouso seguro existe fora de Ti, Senhor?

A luxúria quer ser chamada de saciedade e abundância; mas, só Tu és a plenitude, Tu és a fonte da suavidade inexaurível e incorruptível.

A prodigalidade cobre-se com a sombra da liberalidade; porém, és Tu o mais generoso doador de todos os bens.

A avareza quer possuir muito, mas Tu possuis todas as coisas.

A inveja pleiteia a primazia, mas quem mais excelente do que Tu?

A cólera procura a vingança; qual a vingança mais justa que a Tua?

O temor, enquanto zela pela segurança, detesta os acontecimentos insólitos e inesperados, que ameaçam os objetos amados; mas, para Ti, que há de insólito ou inesperado? Quem pode separar-Te daquilo que amas? Onde se encontra segurança, senão a Teu lado?

A tristeza definha na perda dos bens, nos quais a cobiça se satisfaz, porque desejaria que nada, como a Ti, se lhe pudesse tirar.

É assim que o homem peca, quando se afasta de Ti e busca fora de Ti a pureza e a limpidez, que ele não pode encontrar senão voltando para Ti.

Todos aqueles que se afastam de Ti e contra Ti se rebelam, a Ti estão imitando de forma pervertida. Ainda que imitando-Te desse modo, mostram que és o criador do universo e, portanto, que não há para onde nos posamos afastar totalmente de Ti.

Livro III – Jovem estudante

Por que o homem procura no teatro o sofrimento, assistindo a acontecimentos trágicos e tristes, cuja experiência não desejaria sofrer na vida real? No entanto, o espectador busca aí o sofrimento dessas situações que, afinal, para ele constitui o seu prazer.

Que é isso senão deplorável loucura?

Com efeito, quanto mais alguém se comove com tais cenas, tanto menos imune se encontra das paixões apresentadas. Todavia, enquanto habitualmente chamamos de desgraça o sofrimento em si, a participação na dor alheia se chama compaixão. Mas, afinal, que compaixão é essa das cenas fictícias do teatro? O espectador não é solicitado a prestar auxilio, mas apenas convidado a afligir-se; e tanto mais aplaude o ator, quanto mais é levado a sofrer. E se essas tragédias humanas, remotas ou fictícias, são representadas de modo a não suscitar compaixão, o espectador retira-se aborrecido e cheio de críticas, se, pelo contrário, fazem sofrer, ele se mantém atento e chora de satisfação.

* * *

Eu, miserável, gostava de sofrer e buscava motivos de dor; no sofrimento alheio, imaginário, teatral, os gestos do ator, quanto mais me faziam chorar, mais me agradavam e mais me seduziam. Portanto, não é de admirar que eu, ovelha infeliz, erando longe do Teu rebanho e me opondo à Tua guarda, fosse atingido por essa tão vergonhosa corrupção. Daí o meu amor pelos sofrimentos, mas não pelos que me atingissem profundamente, pois eu não desejava suportar as dores que amava contemplar; as ficções que eu via e ouvia tocavam-me a superfície da alma.

* * *

Há certos atos que se assemelham a pecados e crimes; contudo, não o são, porque não ofendem nem a Ti, Senhor nosso Deus, nem à sociedade humana. Tal é o caso de quem procura alcançar algum bem para usá-lo na vida em tempo oportuno, sem que se possa afirmar se é por desejo desregrado de possuir; ou o caso de legítima autoridade, quando pune com intuito de corrigir o culpado, e não se sabe se ela sentiu prazer em fazê-lo sofrer. Portanto, muitas ações que aos homens pareciam reprováveis, na realidade são aprovadas por Ti, enquanto outras que os homens elogiam, Tu as condenas. De fato, sucede muitas vezes que a aparência de um ato não corresponde à intenção de quem o pratica ou às circunstâncias desconhecidas no momento.

Livro IV – O professor

Perguntei-lhe [a um homem sagaz, ótimo e famoso médico, que abandonara o estudo dos livros de horóscopo] por qual motivo muitos presságios se realizavam. Respondeu-me, como pôde, que era pela força do acaso, presente por toda parte na natureza. Se alguém, explicava ele, consultando por acaso qualquer poeta que canta e pensa uma coisa totalmente diversa, muitas vezes depara um verso extraordinariamente adequado à preocupação do momento. Assim, não é para admirar que, em virtude de alguma inspiração superior, venha a soar, na alma humana, embora inconsciente do que lhe está acontecendo, alguma palavra que se harmonize, não por arte, mas por acaso, com a situação e os atos da pessoa que interroga.

* * *

Na época em que eu começava a ensinar na cidade em que nasci, travei relações com um amigo que, tendo os mesmos interesses de estudo, veio a ser muito querido. Era da minha idade e estava, como eu, na flor da juventude. Crescemos juntos desde meninos, fomos colegas de escola e de folguedos; mas só então tornou-se verdadeiramente meu amigo, embora não fosse essa a verdadeira amizade, pois a amizade só é verdadeira quando une pessoas ligadas a Ti pelo “amor derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. [Rm 5,5]

* * *

Eu era infeliz, como infeliz é o espírito subjugado pelo amor às coisas mortais, cuja perda o dilacera, e então deixa perceber a extensão da infelicidade que já o oprimia antes de perdê-las. Parecia-me estranho que a vida continuasse para os outros mortais, já que estava morta a pessoa que eu tinha amado como se ela não devesse morrer nunca [Santo Agostinho refere-se a um grande amigo]. Que loucura não saber amar os homens como eles são! Tolo de quem não sabe suportar a condição humana. Assim eram meus sentimentos de então, e por isso me inquietava, gemia, chorava e me agitava, sem encontrar paz, sem saber o que fazer. Como poderia tão facilmente ter atingido o mais íntimo do meu ser aquele sofrimento, senão por haver eu derramado a alma na areia, amando uma criatura mortal, como se imortal fosse?

As conversas e risadas em comum, a troca de afetuosas gentilezas, a leitura em comum de livros agradáveis, o desempenho de tarefas em conjunto, ora insignificantes, ora importantes, contradições passageiras, sem rancor, como acontece a cada um até consigo mesmo, e com tais contradições, assim mesmo bastante raras, tornar mais agradável a habitual concordância de pontos de vista, o ensino recíproco de novidades, o sentir intensamente a nostalgia dos ausentes e o alegre acolhimento no retorno: eis o que amamos nos amigos, o que amamos de tal modo que sentimos a consciência culpada quando não pagamos amor com amor, sem nada esperar de outro senão sinais de afeto. Daí o luto quando morre um amigo, daí as trevas da dor, a doçura que se transforma em amargura, o coração inundado de pranto e a morte dos vivos pela vida perdida dos que morrem.

Feliz aquele que Te ama, e que, por Teu amor, ama o amigo e o inimigo! Somente não perde nenhum ente querido aquele para quem todos são queridos, aquele que nunca perdemos. E quem é ele senão o nosso Deus, o Deus que criou o céu e a terra e que lhe confere plenitude, pois foi plenificando-os que os fez?

Para qualquer parte que se volte a alma humana, se não se fixa em Ti, se agarra À dor, ainda que se detenha nas belezas que estão fora de Ti e fora de si mesma. Estas nada teriam de belo, se não proviessem de Ti. Nascem e morrem: nascendo, começam a existir e a crescer para chegar à maturidade; porém, uma vez maduras, decaem e morrem.

Que minha alma te louve por tudo isso, ó meu Deus, criador de todas as coisas, mas a elas não se deixe apegar por amor aos sentidos. Elas caminham para o seu destino, para deixarem de existir e dilaceram a alma com paixões pestilentas, porque o desejo da alma é existir e repousar no objeto que ama. Mas ele não encontra lugar de repouso nas coisas, porque não são estáveis: fogem.

* * *

Mas sendo escravo das piores paixões, de que me servia ter lido e compreendido por mim mesmo todos os livros que pude ler sobre as artes chamadas liberais? Tu sabes, Senhor meu Deus, quantas noções de arte e dialética, de geometria e aritmética eu aprendi sem grande dificuldade e sem auxílio humano, já que a agilidade da inteligência e a perspicácia crítica são dons Teus. No entanto, eu não os oferecia a Ti. E assim, longe de me serem úteis, causavam-me dano ainda maior.

Que me adiantava então possuir talento tão ágil para entender as ciências humanas, e deslindar, sem ajuda de ensino humano, tantos livros intrincados, se depois errava de modo tão monstruoso e sacrílego na doutrina religiosa? E que prejuízo sofriam Teus humildes filhos por terem menos inteligência, se de Ti não se afastavam, se no ninho da Tua Igreja lhe cresciam as penas, nutrindo as asas da caridade com o alimento de uma fé sadia?

Livro V – Da África à Itália

Investigando esses mistérios [das ciências mais nobres] com a inteligência e a perspicácia de Ti recebidas, fizeram [os filósofos] muitas descobertas: predisseram com antecipação de muitos anos os eclipses do sol e da lua, precisando o dia, a hora e o modo de cada evento, sem erro de cálculo. E tudo sucedeu conforme tinham previsto. De suas descobertas resultaram as leis até hoje consultadas e usadas para predizer o ano, o mês, o dia, a hora dos eclipses totais ou parciais do sol e da lua; e o fenômeno se realiza segundo as previsões. O povo se admira, os ignorantes ficam estupefatos, os sábios cientistas exultam e se orgulham, mas, afastados e eclipsados de tua luz por sua vã soberba, preveem com tanta antecipação o eclipse do sol e enxergam o seu próprio, já presente, porque não procuram indagar, com espírito religioso, Aquele de quem receberam a inteligência que usam em tais pesquisas. Como se fossem seus próprios criadores, não se oferecem a Ti; não sacrificam as próprias ambições, como se abatem os pássaros que voam; não sufocam as próprias curiosidades que, como peixes do mar, perscrutam os segredos do abismo; nem extirpam as luxúrias como se caçam os animais do campo, a fim de que Tu, meu Deus, fogo devorador, possas recriar suas pessoas para uma vida nova, destruindo nelas os desejos mortais.

Perdem-se em vãs reflexões. Proclamam-se sábios, atribuindo a si dons que são Teus; e se empenham, cegos e perversos, em atribuir-Te o que propriamente pertence a eles: transferem suas falsidades a Ti, que és a Verdade, e assim “trocam a glória de Deus incorruptível por imagens do homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis; trocam a verdade de Deus pela mentira, e adoram e servem a criatura em lugar do Criador”. (Rm 1,23ss.)

Senhor, Deus da verdade, será suficiente conhecer essas coisas para Te agradar? Infeliz o homem que conhece tudo isso e não Te conhece. Feliz aquele que Te conhece, ainda que ignore o resto. De fato, aquele que se reconhece possuidor de uma árvore e Te é grato pelo uso que dela pode fazer, ainda que não saiba qual a altura ou largura dela, é melhor do que aquele que a mede, lhe conta os galhos, mas não a possui e não conhece nem ama o criador dela. Do mesmo modo, a pessoa de fé possui todas as riquezas do mundo e, mesmo que nada tenha, é como quem tudo possui, pois está unida a Ti, Senhor, de todas as coisas, pouco importando se nada sabe sobre o percurso da Ursa Maior!

Eu já havia aprendido de Ti que uma coisa não deve ser aceita como verdade apenas pelo fato de ser afirmada em belo estilo, e não deve ser tida por falsa porque as palavras saem dos lábios de modo confuso; por outro lado, não deve ser julgada verdadeira porque expressa sem cuidado, ou falsa porque apresentada com elegância. A sabedoria e a ignorância são mais ou menos como os alimentos úteis ou nocivos: podem ser apresentadas através de palavras polidas ou rudes, como os bons e maus alimentos podem ser servidos em pratos finos ou grosseiros.

Livro VI – Agostinho aos trinta anos

Mas, assim como acontece muitas vezes, depois de experimentar um médico mau, receia-se confiar num bom, o mesmo acontecia à saúde de minha alma, que somente poderia curar-se pela fé, mas, para não acabar novamente acreditando em coisas falsas, recusava a cura, resistindo a Ti que fabricaste o remédio da fé e, dotando-o de tão grande poder, o derramaste sobre todas as enfermidades da terra.

Eu aspirava às honras, à riqueza, ao matrimônio, e Tu rias de mim. Nesses desejos amargos eu sofria dissabores, e Tu me querias tanto mais bem quanto menos consentias que eu experimentasse consolação naquilo que não eras Tu.

Pereça tudo isso, abandonemos todas essas vãs frivolidades. Dediquemo-nos à busca da verdade. A vida é infelicidade, a hora da morte é incerta. Esta surge de repente: e eu, em que condições deixarei este mundo? Onde poderei aprender o que nesta vida negligenciei saber? Não terei antes que pagar com duras penas essa negligência?

E me indagava: se fôssemos imortais e vivêssemos num perpétuo prazer do corpo, sem temor de perdê-lo, por que não seríamos felizes? Que coisa mais seria preciso procurar? Eu não percebia que nisso consistia a minha miséria. Imerso no vício e cego como estava, não conseguia pensar no esplendor da luz e da beleza, desejáveis por si mesmas, invisíveis aos olhos do corpo e só percebidas no íntimo da alma.

Livro VII – A busca da verdade

Observando as outras coisas que estão abaixo de Ti, compreendi que absolutamente não existem, nem totalmente deixam de existir. Por um lado existem, pois provém de Ti; por outro não existem, pois não são aquilo que és. Só existe realmente aquilo que permanece imutável. “Bom para mim é apegar-me a Deus” (Sl 72,28), porque, se eu não permanecer nele, tampouco poderei permanecer em mim mesmo. “Ele, imutável em si mesmo, renova todas as coisas (Sb 7,27). Tu és o meu Senhor, porque não tens necessidade de meus bens” (Sl 16,2).

* * *

Depois de ter lido os livros dos platônicos, que me estimularam a procurar a verdade incorpórea, aprendi a descobrir Teus atributos invisíveis através das coisas criadas, e compreendi, à custa de derrotas, qual a verdade que eu, imerso nas trevas, não tinha conseguido contemplar.

Interiormente cheio do meu castigo, comecei a desejar que me considerassem como sábio. Eu não chorava: ao contrário, estava orgulhoso da minha ciência. Onde estava aquela caridade que edifica quando fundada sobre a humildade, isto é, sobre Jesus Cristo? Poderia acaso tê-la aprendido naqueles livros? No entanto, creio que tenhas desejado que eles [os livros platônicos] viessem cair em minhas mãos, antes de aplicar-me à meditação de Tuas Escrituras, para que se imprimissem na minha memória os sentimentos que nelas experimentei. Desse modo, quando Teus Livros me tivessem tornado humilde e as feridas me fossem curadas por Tuas mãos benfazejas, eu conseguiria finalmente notar e distinguir a diferença entre confiar em mim mesmo e confessar meus próprios limites entre aqueles que veem a meta a atingir, mas não enxergam o caminho que dá a ela acesso nem o caminho que leva à pátria bem-aventurada, que precisa ser não apenas contemplada, mas também habitada.

Começando a leitura, descobri que tudo o que de verdade tinha encontrado nos livros platônicos, aqui [na Bíblia] é dito com a garantia da Tua graça, para que não se ensoberbeça quem consegue ver, como se não tivesse recebido, não só aquilo que vê, mas até a própria faculdade de ver. De fato, que possui o homem que não tenha recebido? Além disso, ele não só é induzido a ver-Te, a Ti que és sempre o mesmo, mas também a curar-se para poder possuir-Te.

Nada disso é mencionado nos livros platônicos. Suas páginas não contêm a imagem de um amor tão grande, as lágrimas de confissão, o Teu sacrifício, “a alma abatida, o coração contrito e humilhado”, a salvação do povo, a cidade desposada, o penhor do Espírito Santo, o cálice da nossa redenção.

Livro VIII – A conversão

Ainda hesitava em converter-me. Dirigi-me portanto a Simpliciano, pai do bispo Ambrósio [Santo Ambrósio de Milão], segundo a graça. Na verdade, este o amava como a um pai. Narrei-lhe os labirintos do meu erro. Quando lhe contei ter lido alguns livros de filósofos platônicos traduzidos para o latim por Vitorino – outrora retórico em Roma e de quem ouvira dizer que tinha morrido cristão – ele me felicitou por não ter caído nos escritos de outros filósofos, cheios de erros e de mentiras “segundo os elementos do mundo” [Cl 2,8]. As obras platônicas insinuavam, de todos os modos, a ideia de Deus e de Seu Verbo.

Da vontade pervertida nasce a paixão; servindo à paixão, adquire-se o hábito e, não resistindo ao hábito, cria-se a necessidade. Com essa espécie de anéis entrelaçados, mantinha-me ligado à dura escravidão. Não podia mais invocar a desculpa habitual para me persuadir de que, se ainda não desprezava o mundo e não me decidia a servir-Te, era porque para mim a verdade ainda não estava clara. Pois agora ela era bem conhecida. Sentindo-me ainda ligado à terra, recusava combater em Tuas fileiras, e temia desligar-me dos laços, enquanto o que devia recear era permanecer preso a eles.

Os pensamentos e reflexões sobre Ti eram como os esforços daqueles que desejam despertar, mas, vencidos pela profundeza do sono, nele tornam a mergulhar. Eu não sabia como responder quando me dizias: “Ó tu que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará” [Ef 5,14]. Tu me mostravas que estavas dizendo a verdade, e eu, que já estava convencido, nada tinha a responder senão palavras preguiçosas e sonolentas: “Um momento”, “daqui a pouco”, “espera um instante”. Mas esses “momentos” não tinham fim. Aquele “espera um instante” se prolongava. Quem me libertará deste corpo de morte, senão a Tua graça, mediante o Senhor nosso, Jesus Cristo?

Por que razão a vontade é ineficaz? A alma comanda o corpo, e este lhe obedece imediatamente; comanda-se a si mesma, e esta resiste. A alma ordena à mão que se mova, e a obediência é tão fácil, que mal se distingue a ordem da execução. No entanto, a alma é espírito, e a mão é matéria. A alma ordena que a alma queira; e, ainda que se trate da mesma alma, ela não obedece. Qual a origem dessa monstruosidade, e qual a sua razão? A alma ordena o querer; não ordenaria se não o quisesse; no entanto, não executa aquilo que ela mesma ordena. Mas, como ela não quer totalmente, também não ordena totalmente. Ela ordena na proporção do querer. De fato, não é a vontade plena que ordena, por isso ela não é o que ela mesma ordena. Se a vontade fosse plena, não ordenaria que fosse vontade, pois ela já o seria. Portanto, não é um absurdo querer em parte, e em parte não querer. É antes uma doença da alma, porque, embora sustentada pela verdade, a alma não consegue erguer-se totalmente, por estar abatida pelo peso do hábito. Trata-se portanto de duas vontades, mas nenhuma é completa: o que existe numa, falta na outra.

Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava desesperadamente: “Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora à minha indignidade?”

Livro IX – O batismo e a volta para a África

[Santa Mônica, mãe do Abençoado Agostinho] suportou infidelidades conjugais, sem jamais hostilizar, demonstrar ressentimento contra o marido por isso. Esperava que Tua misericórdia descesse sobre ele, para que tivesse fé em Ti e se tornasse casto. Embora de coração afetuoso, ele se encolerizava facilmente. Minha mãe havia aprendido a não o contrariar com atos ou palavras, quando o via irado. Depois que ele se refazia e acalmava, ela procurava o momento oportuno para mostrar-lhe como se tinha irritado sem refletir. Muitas senhoras, embora casadas com homens mais mansos, traziam sinais de pancadas que lhes desfiguravam o rosto e, nas conversas entre amigas, deploravam o comportamento dos maridos. Minha mãe, pelo contrário, ainda que com ar de brincadeira, lhes reprovava as conversas, lembrando-lhes que o contrato lido no casamento devia ser considerado como o documento da própria submissão, não tendo elas condição de assumirem atitudes de soberba contra seus senhores. Conhecendo o tipo de marido colérico que minha mãe suportava, muito se admiravam por nunca se ouvir dizer ou se revelar, por algum indício, que Patrício tivesse batido na mulher, nem que algum dia tivessem brigado em casa. As amigas perguntavam-lhe confidencialmente a razão disso, e ela explicava-lhes o comportamento que acabo de descrever. Algumas então adotavam o mesmo sistema e congratulavam-se por havê-lo experimentado. Aquelas que não o observavam continuavam a sofrer violências.

Ouvi também dizer que um dia, estando eu ausente de casa, quando já vivíamos em Óstia, ela [Santa Mônica], conversando com alguns amigos meus, falava com maternal confiança sobre o seu menosprezo por esta vida e sobre o grande bem que é a morte. Maravilhados diante da coragem dessa mulher – dádiva Tua – perguntaram-lhe se não tinha medo de deixar o corpo tão longe de sua cidade natal. E ela respondeu: “Para Deus nada é longe, nem devo temer que no fim dos séculos ele não reconheça o lugar onde me ressuscitará”.

Quando ela exalou o último suspiro, o jovem Adeodato prorrompeu em soluços, mas, instado por nós, calou-se. Assim também eu, naquele resto de infância que tendia a manifestar-se em lágrimas, também eu calava, vencido pela voz do adulto, pela voz do espírito. De fato, não nos parecia justo celebrar o funeral com lamentos e choros, pois essas demonstrações servem usualmente para deplorar a morte como infelicidade ou como aniquilamento total, ao passo que essa morte não era uma desgraça, nem era para sempre. Estávamos certos disso pelo testemunho de seus costumes, pela sinceridade de sua fé, e por outros motivos bem fundados.

Eu não chegava a romper em pranto, nem mudava a expressão, mas eu sabia o que estava sentindo no coração. Desagradava-me muito que essas fraquezas humanas, inevitáveis na ordem da natureza e em nossa condição humana, tivessem tão grande poder sobre mim; e uma nova dor vinha exacerbar a minha dor, e afligia-me assim com dupla tristeza.

Depois, pouco a pouco, voltava a recordar os primeiros pensamentos sobre Tua serva, seu comportamento piedoso para contigo, tão solícito e discreto para conosco, e do qual eu fora subitamente privado; e queria ainda chorar diante de Ti, a respeito dela e por ela, a respeito de mim e por mim. Afinal, não mais reprimi as lágrimas, que correram à vontade; e sobre elas pousei o coração que nelas encontrou repouso. Só Tu compreendias, e não qualquer pessoa, que teria interpretado com desdém o meu pranto.

Confesso-Te agora tudo isso, Senhor. Leia-o quem quiser, interprete-o como lhe aprouver. Se alguém julgar que pequei, ao chorar minha mãe por alguns instantes – arrancada momentaneamente aos meus olhos aquela que por tantos anos havia chorado a fim de que eu vivesse em Tua presença – não se ria de mim; mas, se for dotado de suficiente caridade, chore também ele por meus pecados diante de Ti, ó Pai de todos os irmãos de Jesus Cristo.

Curado já o meu coração dessa ferida, pela qual podia ser repreendido por um apego demasiadamente carnal, derramo agora diante de Ti, meu Deus, por Tua serva, um tipo bem diferente de lágrimas, aquelas que brotam de um coração comovido pelos perigos que corre todo homem que deve morrer em Adão. É verdade que ela, regenerada em Cristo, ainda antes de ser libertada da carne, vivia de tal modo, que o Teu nome era glorificado na sua fé e nos seus bons costumes. Contudo, não ouso afirmar que desde o tempo em que a regeneraste pelo batismo não tenha escapado de sua boca alguma palavra contra a Tua Lei. Foi afirmado pela própria Verdade, que é Teu Filho: “Aquele que chamar a seu irmão: ‘louco’, terá de responder ao julgamento da geena de fogo”. E ai do homem, mesmo de vida irrepreensível, se Tu o julgares sem misericórdia! Mas, como não perscrutas nossas faltas com rigor, esperamos confiantemente um lugar junto a Ti. Quem quiser enumerar os próprios méritos diante de Ti, que poderá enumerar senão os Teus dons? Oh! Se os homens se reconhecessem como homens, e “aquele que se gloria, se glorie no Senhor”!

Por isso, “Deus do meu coração”, minha glória e minha vida, esquecendo por um momento as boas obras de minha mãe, pelas quais Te dou graças alegremente, peço-Te perdão por seus pecados. Ouve-me, pelos méritos daquele Médico das nossas férias, que foi suspenso no madeiro e que, sentado à Tua direita, intercede por nós. Sei que ela agiu sempre com misericórdia e que perdoou de coração as faltas contra ela cometidas. Perdoa-lhe também as suas faltas, se algumas cometeu em tantos anos de vida depois do batismo. Perdoa, Senhor, perdoa, eu Te suplico, e “não chames a juízo a Tua serva” [Sl 142,2]. Que a misericórdia triunfe sobre a justiça. Tuas palavras são verdadeiras, e prometeste misericórdia aos misericordiosos. Se alguém foi misericordioso, o foi por dom recebido de Ti, Tu que serás misericordioso com quem tiveres misericórdia e terás piedade de quem tiveres piedade.

Livro X – Santo Agostinho reflete não mais sobre o passado, mas sobre o presente

A Ti, Senhor, que conheces os abismos da consciência humana, poderia eu esconder algo, ainda que não quisesse confessar-Te? Eu poderia esconder-Te de mim, mas nunca esconder-me de Ti!

* * *

Grande é o poder da memória, Senhor; tem algo de terrível, uma infinita e profunda complexidade. Mas isto é o espírito, isto sou eu próprio. Que sou eu, então, ó meu Deus? Qual a minha natureza? Uma vida variada e multiforme, imensamente ampla.

Irei além dessa faculdade que se chama memória, para chegar a Ti, ó doce luz. Que me dizes? Subindo, através de minha alma a Ti, que estás acima de mim, transporei também essa minha faculdade que se chama memória, no desejo de alcançar-Te onde podes ser atingido e prender-me a Ti onde é possível fazê-lo. Portanto, ultrapassarei a memória para atingir Aquele que me fez diferente dos quadrúpedes, mas sábio que as aves do céu. Ultrapassarei a memória, para encontrar-Te. Mas onde, ó bondade verdadeira e suavidade segura? Encontrar-Te onde? Se Te encontro fora de minha memória, é porque me esqueci de Ti. E como poderei encontrar-Te, se não me lembro de Ti?

* * *

Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que Te servem por puro amor: essa alegria és Tu mesmo. É esta felicidade, e não outra. Quem acredita que exista outra felicidade, persegue uma alegria que não é a verdadeira.

Portanto, não podemos dizer com segurança que todos queiram ser felizes, pois aqueles que não querem alegrar-se em Ti – única felicidade – certamente não querem ser felizes. Ou talvez o queiram, mas “não fazem o que desejariam, porque a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne”. [Gl 5,17]

Por que a verdade gera o ódio, e o homem que anuncia a verdade em Teu nome se torna inimigo daqueles que amam a felicidade, a qual consiste exatamente na alegria oriunda da verdade? De fato, o amor da verdade é tal, que os que amam algo diferente querem que aquilo que amam seja a verdade. Como não admitem ser enganados, detestam ser convencidos do seu erro. Assim, odeiam a verdade porque amam aquilo que supõem ser a verdade. Amam-na quando ela brilha, e a odeiam quando ela os repreende. Não querendo ser enganados e desejando enganar, eles a amam quando se manifesta, e a odeiam quando os denuncia. Mas a verdade sabe retribuir: como eles não querem ser por ela revelados, ela os denunciará contra a vontade deles, e não mais se revelará a eles. Assim é o espírito humano: cego e preguiçoso, torpe e indecente; deseja permanecer escondido, mas não quer que nada lhe seja ocultado. E sucede-lhe o contrário: ele não se esconde da verdade, mas é esta que se lhe oculta. E apesar de tanta miséria, prefere encontrar alegria no que é verdadeiro, a encontrá-la no que é falso. Portanto, ele será feliz quando, sem obstáculos nem perturbações, puder gozar daquela única verdade, fonte de tudo o que é verdadeiro.

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Fome e sede são sofrimentos, queimam e matam como a febre se não recebem o remédio do alimento. E como esse remédio está ao nosso alcance, graças ao conforto de Teus dons, através dos quais terra, água e céu são postos a serviço de nossa fraqueza, essa desgraça recebe o nome de prazer.

Ensinaste-me a considerar os alimentos como remédio. No entanto, quando passo da ânsia da fome ao repouso da saciedade, é nesta mesma passagem que me aguarda a cilada da concupiscência. De fato, passagem é um prazer, e não há outro por onde se possa chegar até onde nos obriga a necessidade. É pela saúde que como e bebo, mas acrescenta-se a isso o perigo do prazer, que na maioria das vezes procura tomar a dianteira, e, assim, o que digo querer fazer pela saúde, acabo fazendo pelo prazer. Ora, a medida não é igual para ambos os casos, pois, o que é suficiente para saúde, é pouco para o prazer. Muitas vezes, é pouco claro se é indispensável o cuidado corporal que pede o reforço do alimento, ou a enganadora satisfação da gula que deseja ser servida. Nossa pobre alma alegra-se com essa incerteza, encontrando aí a defesa de uma desculpa, e regozija-se por não poder determinar o que é suficiente para o cuidado com a saúde, e, sob o pretexto de conservá-la, encobre a busca do prazer. Procuro todos os dias resistir a essas tentações e invoco Tua destra para que me socorra. A Ti confio as minhas lutas, pois meu juízo neste ponto não é seguro ainda.

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Além da concupiscência da carne, uma ânsia diferente se insinua pelos sentidos do corpo, não de prazer na carne, mas de tudo conhecer através da carne. Esse desejo se disfarça sob o nome de saber e ciência. Como nasce do desejo de conhecer, é chamado na Sagrada Escritura de “concupiscência dos olhos” [Sl 39,12]; por serem estes os sentidos mais aptos para o conhecimento. De fato, é aos olhos que compete ver, mas muitas vezes usamos este termo também para os outros sentidos, quando os empregamos para obter qualquer conhecimento. Assim, não dizemos: “Ouve como brilha”, ou “cheira como resplandece”, ou, ainda, “saboreia como reluz”, ou “apalpa como cintila”. Para tudo se usa dizer: “Veja”. Não só dizemos: “Veja como brilha”, o que somente os olhos podem perceber; mas também: “Veja como ressoa, como cheira, como tem sabor, como é duro”.

A curiosidade procura ter a satisfação de tudo experimentar e conhecer. Por causa dessa mórbida tendência da curiosidade, exibem-se tantas cenas estranhas nos espetáculos. É ela que nos impele a descobrir os segredos da natureza que estão longe de nós, que de nada nos servem, mas que os homens procuram só pelo gosto de conhecer.

E minha vida está repleta dessas misérias. Minha única esperança é a Tua imensa misericórdia. De fato, sendo o nosso coração o recipiente de todas essas misérias, e trazendo dentro de si grande quantidade dessas vaidades, nossas orações são muitas  vezes interrompidas e perturbadas.

Fonte: Santo Agostinho, Confissões, Paulus, São Paulo, 1997, trechos selecionados.