9 de maio de 2008

O que é o noûs?

Eis o primeiro capítulo da recém-lançada tradução de Patristic Theology, do Pe. João Romanides.

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O principal interesse da Igreja Ortodoxa é a cura da alma humana. A Igreja sempre considerou a alma como sendo a parte do ser humano que precisa de cura porque a Igreja tem observado, a partir da tradição hebraica, do próprio Cristo e dos Apóstolos, que na região física do coração opera algo que os Padres chamam de nous. Em outras palavras: os Padres usaram o termo tradicional nous, que significa tanto intelecto (dianoia) quanto palavra ou razão (logos), dando-lhe um significado diferente. Não sabemos quando esta alteração de significado ocorreu, pois há Padres que usam nous para se referir à razão assim como há Padres que usam nous para se referir a essa energia noética que descende e opera na região do coração.

Portanto, sob este ponto de vista, a atividade noética é uma atividade essencial à alma. Ela opera no cérebro enquanto razão e, simultaneamente, opera no coração enquanto nous. Em outras palavras, o mesmo órgão, o nous, reza incessantemente no coração enquanto, por exemplo, pensa em problemas matemáticos no cérebro.

É importante notar que há uma diferença terminológica entre São Paulo e os Padres. O que São Paulo chama de nous é o que os Padres chamam de dianoia. Quando o Apóstolo Paulo afirma Orarei com o espírito [1], ele quer dizer o mesmo que os Padres quando afirmam Orarei com o nous. E quando ele afirma Orarei com o nous, ele quer dizer Orarei com o intelecto (dianoia). Quando os Padres usam nous, o Apóstolo Paulo usa “espírito”. Quando ele afirma Orarei com o nous, orarei com o espírito ou quando afirma Cantarei com o nous, cantarei com o espírito, e quando afirma o Espírito de Deus testifica com nosso espírito [2], ele usa a palavra “espírito” para se referir àquilo que os Padres chamam de nous. E com a palavra nous, ele quer dizer intelecto ou razão.

Na frase o Espírito de Deus testifica com nosso espírito, São Paulo fala de dois espíritos: o Espírito de Deus e o espírito humano. Por uma estranha conjunção de circunstâncias, o que São Paulo quis dizer com espírito humano, mais tarde, durante os tempos de São Macário do Egito, reapareceu com o nome de nous, e somente as palavras logos e dianoia continuaram a significar a habilidade racional do homem. E foi assim que o nous passou a ser identificado com o espírito, isto é, com o coração, já que, de acordo com São Paulo, o coração é onde está situado o espírito do homem. [3]

Assim, segundo o Apóstolo Paulo, a adoração racional ou lógica ocorre por meio do nous (isto é, razão ou intelecto) enquanto a oração noética ocorre por meio do espírito, isto é, por meio da oração espiritual ou oração do coração. [4] Portanto, quando o Apóstolo Paulo afirma eu prefiro falar cinco palavras com meu nous, para que possa também instruir os outros, do que dez mil palavras com minha língua, [5] ele quer dizer que prefere falar cinco palavras, ou seja, falar pouco, para que outros sejam instruídos, do que orar noeticamente. Alguns monges interpretam as cinco palavras de São Paulo como sendo a Oração de Jesus [6], mas, aqui, o Apóstolo está na verdade se referindo às palavras usadas para instruir os outros. [7] Ora, como é possível ocorrer catequese com orações noéticas, já que tais orações são interiores e ninguém ao redor conseguiria ouvi-las? Porém, a catequese é possível, sim, com ensinamentos e adorações convincentes e racionais. Ensinamos e falamos usando a razão, que é o método que as pessoas usam para se comunicarem umas com as outras. [8]

Porém, aqueles que têm oração noética em seus corações conseguem se comunicar uns com os outros. Em outras palavras, eles conseguem sentar no mesmo local e se comunicar noeticamente, sem falar. Ou seja, eles são capazes de se comunicar espiritualmente. É claro que tal comunicação também ocorre quando estão afastados uns dos outros. Eles também possuem dons de clarividência e presciência. Por meio da clarividência, eles são capazes de sentir os pensamentos (logismoi) e pecados dos outros, enquanto que por meio da presciência eles conseguem ver e falar sobre assuntos, ações e eventos futuros. Tais pessoas carismáticas realmente existem. Se você se confessar com uma delas, essa pessoa saberá tudo o que você fez em vida antes mesmo que você abra a boca.

Notas

1. I Coríntios 14:15.

2. Romanos 8:16.

3. Isto significa que o Espírito de Deus fala com nosso espírito. Em outras palavras: Deus fala em nossos corações pela graça do Espírito Santo. São Gregório Palamás nota, em seu segundo discurso Em defesa dos santos hesicastas, que “o coração governa sobre todo o organismo humano... Pois o nous e todos os pensamentos (logismoi) da alma estão localizados lá”. No contexto da oração cheia de graça, fica claro que o termo “coração” não se refere ao coração físico, mas ao coração profundo, enquanto o termo nous não se refere ao intelecto (dianoia), mas à energia/atividade do coração, a atividade noética que flui da essência do nous (isto é, do coração). Por esta razão, São Gregório acrescenta que é necessário aos hesicastas que “tragam seus nous de volta, confinando-os em seus corpos e, em particular, nas profundezas de seus corpos, naquilo que chamamos de coração”. O termo “espírito” também é idêntico ao termo nous e “coração”. Philokalia, vol. IV (Londres: Faber and Faber, 1995), pág. 334.

4. O Metropolita Hierotheos Vlachos nota: “O homem tem dois centros de conhecimento: o nous, que é o órgão apropriado para receber a revelação de Deus, mais tarde traduzida em palavras pela razão, e a razão, que conhece o mundo sensível ao nosso redor”. The Person in Orthodox Tradition, tradução de Effie Mavromichali (Levadia: Monastery of the Birth of the Theotokos, 1994), pág. 24.

5. I Coríntios 14:19.

6. Em grego, a Oração de Jesus consiste de exatamente cinco palavras, em sua forma mais simples. Em português, traduz-se como “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”.

7. “Portanto, conforme ensina São João Damasceno, somos conduzidos como em uma escada no pensar de bons pensamentos...São Paulo também indica isso quando afirma ‘Eu prefiro falar cinco palavras com meu nous...’” São Pedro Damasceno, The Third Stage of Contemplation, Philokalia, 3, pág. 42.

8. A este respeito, São Nikitas Stithatos ensina: “[…] Se, enquanto ora e reza salmos, você fala em sua língua a Deus, você edifica a si próprio, conforme São Paulo afirma... Se não é para edificar seu rebanho que o pastor pretende ser enriquecido com a graça do ensinamento e do conhecimento do Espírito, então a ele falta fervor em sua busca pelos dons de Deus. Apenas orando e rezando salmos interiormente com sua língua, isto é, rezando na alma, você será edificado, mas seu nous estará improdutivo [ver I Coríntios 14:14], pois você não profetizará na língua do santo ensinamento nem edificará a Igreja de Deus. Se Paulo, que de todos os homens era o mais unido a Deus por meio da oração, preferia falar cinco palavras com seu fértil nous na igreja, para instruir os outros, do que dez mil palavras de salmos em privado com sua língua [ver I Coríntios 14:19], decerto os responsáveis por instruírem os outros se desviaram do caminho do amor caso tenham se limitado a pastorear somente com salmos e leituras”. São Nikitas Stithatos, On Spiritual Knowledge, Philokalia, vol. 4, pág. 169-170.