Esta é a parte III da série Fé e Ciência, do podcast de Clark Carlton. As partes I e II podem ser lidas aqui e aqui, respectivamente.
Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, tornar-se-ão como a lã. Se quiserdes, e obedecerdes, comereis o bem desta terra (Isaías 1:18-19).
Olá. Bem-vindos de volta ao programa Faith and Philosophy (Fé e Filosofia). O tópico de hoje é Deus e Ciência, parte 3: ciência e demônios.
Trata-se de uma continuação de minha última conversa sobre a ciência e sua relação com a Ortodoxia. Porém, admito que o tópico de hoje foi inspirado por um filme bem medíocre ao qual assisti na TV a cabo semana passada, O Exorcismo de Emily Rose. À exemplo do livro O Exorcista, de William Peter Blatty, que aliás resultou num filme bem melhor e mais assustador, o enredo foi supostamente baseado em fatos reais.
A morte da personagem do título, Emily, seguiu-se a uma série de tentativas malsucedidas de exorcismo. O exorcista foi então processado por homicídio negligente. A história conta que ele a aconselhou a parar de tomar os remédios que lhe haviam sido prescritos por causa de seus surtos psicóticos de feitio epiléptico. Confiando somente na fé, ao invés da medicina, o padre estava determinado a curar Emily de um mal que julgava ser espiritual, e não físico.
Embora o filme em si seja medíocre, ele levanta algumas questões interessantes sobre a relação entre fé e ciência – neste caso, ciência médica. Nossa fé ortodoxa tem contribuições importantes a dar nesta discussão.
Antes de entrar de cabeça no assunto, eu queria dizer algumas coisas sobre as representações cinematográficas dos demônios. A maioria delas pressupõe um tipo particular de piedade católica romana. Não estou me referindo ao fato de as personagens serem católicas romanas; refiro-me ao fato de que a maneira como as personagens interpretam e respondem aos fenômenos acaba camuflando certo tipo de espiritualidade...e que essa espiritualidade não é ortodoxa.
Em primeiro lugar, há a suposição – às vezes explícita, às vezes apenas implícita – de que se as pessoas acreditarem na existência de demônios, então elas vão acreditar em Deus. Em outras palavras, o demônio se torna uma ferramenta de evangelização. William Peter Blatty chegou a declarar que escreveu O Exorcista para promover a fé. No Exorcismo de Emily Rose, o padre afirma que a história da possessão de Emily faria muitas pessoas acreditarem em Deus. Espero que eu não seja o único a ver algo muito esquisito nisso tudo.
Em segundo lugar, essas possessões quase sempre são apresentadas como sendo de caráter martirizador. No fim do filme, Emily tem uma visão da Abençoada Mãe, que lhe propõe uma escolha: ou o alívio de seus sofrimentos, isto é, a morte, ou a oportunidade de continuar na batalha pelo bem de outras pessoas. Ela bravamente escolhe a segunda opção. No caso real, no qual o filme supostamente foi baseado, muitos acreditavam que a menina estava sofrendo por aqueles que se encontravam no Purgatório.
Francamente, esse tipo de raciocínio é bem mais demoníaco do que contorções, vômitos, cusparadas e obscenidades lançadas contra o padre durante o exorcismo. Esse tipo de espiritualidade vem de Francisco de Assis, que supunha estar sofrendo como o Cristo. Esta não é a espiritualidade cristã autêntica; trata-se de uma ilusão. Prelest é o maior feito da arte do diabo.
Um terceiro aspecto notável da demonologia cinematográfica é quando o demônio se identifica ao padre. A gente descobre que ele tem sido um demoniozinho bem danadinho. Não se trata de um mero servo do Tártaro. Não, esse é o demônio que possuiu Nero e a maioria dos vilões da história, inclusive Hitler.
Repito: há algo muito errado aí. Não é uma explicação apenas simplista; é perigosa. Ela explica o mal do mundo como sendo obra do diabo. Não deveríamos estar mais preocupados com as forças e os eventos históricos que criaram o tipo de ambiente no qual uma pessoa maluca – e talvez possessa – como Hitler teria chegado ao poder? A insanidade e a indecência que foi a Primeira Guerra Mundial. O Tratado de Versailles. A crise econômica resultante de uma política econômica e monetária débil e imoral.
Não, não. É bem mais fácil culpar o diabo. Como dizíamos nos anos 1970: “Não foi culpa minha; o diabo é que me fez fazer isso!”
Ainda mais preocupante do que as características da demonologia cinematográfica é o fato de que tais representações costumam ser a única alternativa à abordagem secular e materialista das ciências médicas modernas. Portanto, somos expostos a uma falsa dicotomia: ou a atividade demoníaca é representada com os traços caricaturais dos filmes de Hollywood ou ela é uma superstição boba do que, em essência, não passariam de fenômenos bioquímicos cerebrais.
Quaisquer respostas ou explicações ortodoxas a esses fenômenos devem, obrigatoriamente, começar com a experiência ascética dos santos. É fato que, na hagiografia, há inúmeras histórias de santos que lutaram espiritualmente com figuras grotescas e demoníacas, mas ler esses relatos de maneira superficial é tão produtivo quanto ler o Apocalipse desse jeito, ou seja, esperando que literalmente uma besta de dez chifres surgirá do mar para governar o mundo.
Para que compreendamos a natureza das batalhas espirituais contra o que São Paulo chamou de “principados e potestades”, é necessário entendermos a natureza do homem e os efeitos da queda.
Já mencionei diversas vezes que os Santos Padres faziam uma distinção entre a razão discursiva (dianoia) e a faculdade da percepção intuitiva (nous). De acordo com São Paulo em Romanos 1, bem como os Santos Padres, a essência da queda está no obscurecimento das faculdades noéticas do homem.
Em particular, São Paulo diz que o fato de o homem ter trocado a glória de Deus pela glória das coisas corruptíveis o tornou “vão em suas imaginações”. Isso não quer dizer apenas que o homem passou a pensar mais em si mesmo do que deveria, embora isso também seja verdade. Creio que São Paulo está tentando dizer que o obscurecimento das faculdades noéticas do homem resultou na perda da habilidade em discernir fantasia de realidade. Não apenas limitamos nosso campo de visão ao mundo material como enfrentamos dificuldades em perceber esse campo corretamente.
Em outras palavras, somos todos psicóticos em potencial, pois todos nós temos uma faculdade de atenção que não funciona como originalmente pretendido. Não se trata de mero subproduto da Queda, mas da essência mesma das criaturas caídas.
Ora, algumas pessoas, seja por causa de disfunções bioquímicas ou hereditárias, são mais propensas a estados psicóticos do que outras. Elas podem ouvir vozes ou ver e imaginar coisas, e essas fantasias se tornam mais reais do que os dados sensoriais imediatos. Na verdade, elas são propensas a aceitar e interpretar essas fantasias precisamente como se fossem dados sensoriais.
Mesmo que a imensa maioria das histórias de possessões demoníacas que encontramos na literatura da Igreja pudesse ser racionalmente explicada em termos de psicose, elas não seriam menos demoníacas em sua natureza. Pois a inabilidade em discernir fantasia de realidade é um dos muitos sinais de nosso cativeiro. O diabo não é apenas um sujeito malvado; e deveríamos nos lembrar sempre disso.
De todos os dons espirituais, o mais útil talvez seja o dom do discernimento de pensamentos. Discernir a realidade e a origem de nossos pensamentos – aquilo que os Padres chamam de logismoi – é um dos sinais mais evidentes de maturidade espiritual.
E não são apenas as pessoas malucas, aquelas que ouvem vozes ordenando-lhes a matar em nome de Deus, que sofrem de logismoi demoníaco. Todos nós sofremos, em diferentes graus. De repente, posso estar dirigindo sobre uma ponte ou viaduto e surgir um pensamento assim: “E se eu virasse o volante para a direita e caísse da ponte?” Ora, eu não tenho tendências suicidas e, portanto, não acho que tais pensamentos sejam produto de um desejo reprimido de me ferir. Um psicólogo poderia opinar que isso tem a ver com o fato de eu não gostar de altura, no que haveria um pouco de verdade. Mas a total irracionalidade do pensamento é que impressiona aqui.
Não consigo vislumbrar qualquer benefício evolucionário em tais pensamentos. Pelo contrário, logismoi não são produtos de seleção natural nem de desenvolvimento evolucionário: eles são produtos da Queda. Eles são a arma preferida do diabo. A verdadeira batalha contra as forças demoníacas encontra-se no âmbito noético. Na verdade, é uma batalha para restaurarmos nossa sanidade, para nos tornarmos a totalidade psico-somática para a qual fomos criados.
Os santos são aqueles que por meio da cooperação com a graça de Deus purificaram seu nous e aprenderam a enxergar si próprios e o mundo de maneira correta. Eles foram “salvos”, que no linguajar bíblico significa que se tornaram íntegros. Nós, cristãos ortodoxos, somos chamados a seguir seu caminho. Eles são o modelo do que a vida humana deveria ser. Ao mesmo tempo, eles nos revelam a real natureza das ilusões demoníacas.
Bem, admito: eu gosto de filmes de terror. Talvez seja por isso que eu não fique horrorizado com o Halloween. Eu gostei do Exorcista e do Omen original [no Brasil, A Profecia – N. do T.], e adoro um bom filme de vampiro. Porém, é absolutamente crucial que não deixemos nossa percepção da batalha espiritual ser contaminada pelas fantasias hollywoodianas, ou pelas correntes mais lúgubres e perigosas da piedade católica romana e pentecostal.
Não lutamos contra a carne e o sangue, diz o Apóstolo. Temos sempre que nos lembrar que nossa batalha espiritual é pelo nous, e nos aproveitar do método terapêutico dado a nós por Cristo em Sua Igreja. Temos de entender também que atingir a verdadeira cura é atingir a verdadeira sanidade.
E que nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo, que destruiu o poder do diabo e esmagou a morte com a morte, pelas intercessões de Santo Inocêncio do Alaska e do Abençoado Ancião Sofrônio Sakharov, tenha piedade de todos nós e nos conceda uma entrada rica em Seu reino eterno.
Meu nome é Clark Carlton, falando para a Ancient Faith Radio.