6 de novembro de 2007

Conselhos do Pe. Dimítrio Dudko

Reproduzo abaixo alguns trechos do livro Our Hope (SVS, Crestwood NY, 1977). Trata-se de uma coletânea de conversas e palestras informais proferidas pelo Pe. Dimítrio Dudko, da Igreja Ortodoxa Russa, durante os anos de 1973 e 1974, em sua paróquia moscovita. Elas foram transcritas pelos seus paroquianos e mais tarde contrabandeadas para o ocidente.

Esses textos são uma amostra-grátis da situação espiritual e paroquial na qual viviam os cidadãos soviéticos, especialmente os cidadãos de Moscou. Naquele tempo, os comunistas já detectavam uma grande afluência de pessoas às igrejas, mesmo cercadas pela intensa propaganda ateísta e anti-religiosa e pela perseguição ativa àqueles que declaravam sua fé. Até mesmo fazer o sinal da Cruz em público poderia dar cadeia. No entanto, algumas vozes corajosas do Patriarcado de Moscou não se deixaram abater pela situação e, pelo contrário, enxergaram nela uma oportunidade divina para pregar às pessoas e confirmá-las na fé, cumprindo assim sua missão sem medo do martírio.

Uma dessas vozes foi a do Pe. Dimítrio Dudko, que, aproveitando-se do fato de que a lei soviética pelo menos permitia a discussão religiosa no interior dos templos, mantinha em sua paróquia, logo após à Liturgia, uma inspiradora sessão de perguntas e respostas com os paroquianos e visitantes (muitos ateus e pessoas de outras religiões vinham ouvi-lo). Seu desejo de insuflar a combalida e titubeante fé dos moscovitas da época, aliado à coragem de desafiar as autoridades soviéticas, chamaram a atenção de muitos ortodoxos ocidentais, em especial a do Pe. Serafim Rose.

Embora reconhecendo que cometia alguns erros teóricos, o que mais despertava o interesse do Pe. Serafim é o "tom", o "frescor" perfeitamente patrístico e ortodoxo que a mensagem do Pe. Dimítrio transparecia.

Os trechos que traduzi, tenho certeza, refletem não só algumas dúvidas e angústias daqueles soviéticos, mas também as nossas.

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páginas 110 e 111

PERGUNTA: É comum a gente chegar em casa cansado, moralmente deprimido. A gente fica com dor de cabeça. E dá para entender. Um fiel vive em condições espirituais e morais que são hostis aos seus sentidos e às suas idéias. A gente tem que ter muita paciência para agüentar essas situações, para conservar a resistência, a força de vontade, o bom-humor e uma boa disposição. A gente fica sonhando acordado quando, finalmente, cruza o batente da porta de casa. Então, em casa, eis que estamos rodeados pelos nossos objetos espirituais: os ícones, os retratos, os livros. Mas é terrível. A gente olha para tudo aquilo com indiferença. É como se uma parede invisível se erguesse entre nós e eles, impedindo que a gente se aproxime, que os toque, que reze. A gente quer rezar. A gente sabe que tem que rezar. Mas esse desejo é sugado pela indiferença, pelo desleixo, pela fadiga espiritual. E acontece de muitos dias e semanas se passarem desse jeito. O que precisa ser feito? O que precisa acontecer?

RESPOSTA: Precisa que você seja confirmado na fé. Você ainda não entendeu o principal: que a vida terrena nos foi dada a título de batalha ascética, que uma verdadeira batalha está em andamento. O diabo luta contra Deus, e o campo de batalha é o coração do homem, conforme disse Dostoiévski. Não é por acaso que o cristão é chamado de lutador. Suas condecorações militares estão no Reino dos Céus. Imagine como deveríamos ser conscientes e altruístas. Mas nós estamos alienados. Assim que fazemos algo de bom, já queremos ser recompensados por isso. A gente não pensa muito sobre o Reino dos Céus. Você deve saber que o Reino dos Céus é a realização de tudo. Sem o Reino dos Céus, nada faz sentido. Isso tem que ser entendido de uma vez por todas. Além disso, saiba que o Reino dos Céus é conquistado por meio do trabalho. Somente aqueles que se esforçam o conquistarão. Siga a Cristo, tome sua Cruz. Comece, nem que seja com um pequeno suspiro a Deus: "Senhor, me ajude!" E vigie, pois em pouco tempo você não reconhecerá a si mesmo. Lembre-se também que Deus ouve primeiro àqueles cuja vida é suficientemente pura. Se sua vida não é muito diferente dos infiéis, isto é, se você bebe e vive em festas, então livre-se disso antes de mais nada. (Citei isto só a título de exemplo). Você tem que se tornar luz para o mundo. Você não deve se apoiar nos outros: são os outros que devem se apoiar em você. Lembre-se: se estiver com Deus, então conseguirá fazer tudo aquilo que milhares, talvez milhões, de pessoas juntas que não têm a Deus não conseguiriam. "Para o fiel, não existe o impossível" -- isso não foi dito à toa.

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páginas 240 e 241

PERGUNTA: Parece que, do seu ponto de vista, o fiel faz o bem porque espera uma recompensa depois da morte. Mas o senhor não acha que isso é uma coisa repulsiva, mercenária e, no fim das contas, anti-cristã? Será que isso não passa de barganha -- uma espécie de egoísmo disfarçado? Cristo não mandou que a gente faça o bem de maneira que a mão direita não saiba o que a mão esquerda faz, isto é, de maneira desinteressada? O verdadeiro bem é sua própria recompensa. Não precisa da vara e da cenoura. E se o senhor entende o bem dessa maneira vulgar e comum, não estaria então introduzindo uma certa degradação na moralidade cristã? Isso não leva à hipocrisia?

RESPOSTA: [...] Fazer as coisas de maneira que sua mão esquerda não saiba o que sua mão direita está fazendo. Sim, de fato, Cristo disse isso(*). Mas Ele também disse: Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus (**). Vamos nos acalmar um pouco e pensar. Qual a diferença entre obter sua recompensa aqui e obtê-la lá no Reino dos Céus? A má-compreensão desse assunto sempre causa confusão. É verdade que obter sua recompensa aqui implica em inflar o interesse próprio, a ganância, o egoísmo e a hipocrisia. Quando a gente a obtém , tais sentimentos ruins não se desenvolvem porque a gente não pode ver nem sentir a recompensa. Será que a idéia de que no Reino dos Céus a ganância não será recompensada faria alguém se tornar interesseiro? Será que alguém vai se tornar egoísta se acreditar que o egoísmo não vai ser recompensado no Reino dos Céus? Desinteresse, altruísmo, humildade -- eis aí o que será recompensado lá. A recompensa no Reino dos Céus é totalmente diferente da recompensa aqui. A recompensa significa que você tem que desenvolver suas boas qualidades aqui. Fazer alguma coisa na expectativa de que será recompensado no Reino dos Céus significa fazer essa coisa com desinteresse, com altruísmo, com humildade -- ou seja, fazer sem ligar para a recompensa aqui. De acordo com o entendimento cristão, se você se considera bom, então isso significa que você não é bom.

(*) Mateus 6:3: Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita.

(**) Mateus 5:12.