31 de outubro de 2024

A guerra gnóstica contra o actus essendi

Com efeito, pela grandeza e beleza das criaturas se pode, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Criador. (Sabedoria 13:5)

As seitas gnósticas têm metafisicamente falando um único objetivo: combater a ideia de que Deus criou todas as coisas segundo a lei da analogia (a boa e velha analogia entis, sobre a qual tanto versamos por aqui). Há nelas um elemento comum, que é a revolta contra a ordem metafísica real. Em outras palavras, mesmo que velada ou inconscientemente, a gnose trata o ser como termo equívoco (o ser é absolutamente dessemelhante ao Ser, que é o caso das seitas gnósticas) ou unívoco (o ser é absolutamente idêntico ao Ser, que é o caso das seitas panteístas). Os homens são levados a uma ou outra perspectiva por vários motivos, entre os quais, em geral, estão ocultas causas pessoais, psicológicas. Manter a postura saudável e equilibrada de não identificar as criaturas com Deus, nem negar a excelência da criação, pode ser especialmente árduo para muitas pessoas. Nas palavras de Étienne Gilson: “A Renascença marca o início da era em que o homem se declara satisfeito do estado de natureza decaída”. E Orlando Fedeli: “Há na alma renascentista uma revolta que rejeita a transitoriedade das coisas, uma revolta contra o tempo, uma oposição à aceitação do mal relativo das criaturas. [...] Ao mesmo tempo em que no Renascimento e no Humanismo se divinizavam o homem e a natureza, a razão e o universo, chegava-se também ao extremo oposto, negando-se qualquer valor à razão [...] Passa-se de uma supervalorização absoluta da razão à sua negação completa. E não se sabe se o homem, pela razão, deve dominar o universo, ou se, pelo contrário, o universo deve absorver o homem pelo amor, negando-se a razão”.

Fedeli apelida de “antropoteísmo” a religião do homem, a qual divide-se em panteísmo (divinização do corpo, geralmente monista e racionalista pró-Utopia) e gnose (divinização da alma, geralmente dualista e místico pró-Milênio). Novamente, Fedeli confere certo caráter psicológico à causa do antropoteísmo: “[Ele] é fruto de um orgulho egolátrico e de um sensualismo antinomista, levados ao paroxismo. [...] É a revolta contra a morte, a dor, o trabalho e as mil outras misérias que fazem da vida humana um vale de lágrimas. [...] Se nota um desejo de destruir os princípios metafísicos. Ele [o antropoteísmo] odeia o ser”. O autor centra-se mais na gnose pois considera o panteísmo uma espécie de “fase infantil” ou antessala da gnose. A gnose é mais própria de espíritos intelectualizados, enquanto o panteísmo é mais próprio de pessoas ligadas à matéria (“têm por Deus o próprio ventre”), ou seja, pessoas de menor valor natural. No panteísmo enquadram-se tanto os materialistas crassos quanto os tipos mais pretensamente filosóficos (“racionais”, ateus etc.), bem como aqueles de mentalidade “científica”, como cientistas em geral, engenheiros, físicos etc.

A gnose necessariamente tem de negar os princípios metafísicos. Ela nega, por exemplo, o princípio de identidade, pois as coisas perdem sua individualidade, sua essência, sua personalidade. Nega também o princípio de contradição, pois os contrários passam a coincidir. Similarmente, o princípio de causalidade e finalidade se perdem, pois se não há ordem metafísica, não há causa e efeito, não há relação a um fim, não há relação entre Criador e criatura. Os transcendentais se dissolvem todos (res, aliquid, unum, verum, bonum e pulchrum) porque o ser se dissolve no abismo do nada. Toda ordem analógica é negada pela gnose. Por fim, a gnose recusa-se a aceitar o espaço (não há materialidade) e o tempo (não há movimento, pois não há ato e potência e, portanto, não há movimento e sua medida, que é o tempo).

Um traço curioso da gnose é sua perpétua inversão de um conceito em seu contrário, uma espécie de ponte metafísica. Mestre Eckhart, Jacob Boehme, a Cabala de Isaac Luria, Simão Mago, Hegel etc. são expoentes dessa característica (finito é infinito, nada é tudo, muitos é um, o nada é o real, o corpo é espírito etc.). Similarmente, há uma ponte moral na gnose, no sentido que prega uma moral ascética, de tipo budista, mas quando o asceta alcança sua “união mística”, de repente se vê acima de toda lei moral, e tudo lhe passa a ser permitido.

Vejamos alguns temas essenciais da gnose:

1. Teogonia. Há a Divindade, o princípio de que tudo se originou, e há Deus, o cosmocrator, o criador. Não há qualquer relação analógica entre o ser divino e o ser criado (qualquer semelhança com o Pe John Romanides não é mera coincidência). Essa distinção está clara em Mestre Eckhart, por exemplo (divinitas vs. Deus, Gottheit vs. Gott). A vida íntima da Divindade consiste num eterno processo de divisão dialética interior. Os sistemas gnósticos narram complicadas genealogias emanadas do fundo abissal da Divindade.  Diz-se, simplificadamente, que os éons eram partículas resultantes dessa divisão e que se opunham dialeticamente umas às outras, de maneira que eram absolutamente iguais e, por isso mesmo, não tinham consciência de sua limitação. Assim como uma gota no oceano não “sabe” que é limitada, pois se vê no todo e julga-se o todo, assim também os éons não “sabem” de sua limitação no pleroma. Em cada éon reptia-se a dialética tudo=nada que há na Divindade.

2. Cosmogonia. Mas eis que houve uma “queda”, uma ruptura, um “exílio”, o mal metafísico: um éon sem seu “cônjuge” surge e passa a agir. É o demiurgo. Os demais éons são levados a compreender que não eram tudo. Está rompida a felicidade absoluta no pleroma. Por que se deu o surgimento do demiurgo? Os sistemas gnósticos não explicam, apenas narram. Aliás, isso nos faz lembrar a crítica de Philip Sherrard à “metafísica” de René Guénon em seu Estados Múltiplos do Ser: Guénon afirma ("narra") que o Ser determina-se a si mesmo enquanto o leitor se vê perdido sem uma explicação minimamente plausível de como isso pôde ser possível.

Ora, isso deixa sem resposta a questão sobre como o próprio Ser é determinado. A ordem não-manifestada, escreve Guénon, é feita de Ser e Não-Ser. O Ser engloba todas as possibilidades de manifestação, formal e informal, na medida em que estas serão manifestadas; o Não-Ser engloba todas as possibilidade de não-manifestação, incluindo o próprio Ser e a manifestação, na medida em que permanecem puras possibilidades. [15] Mas será que isso significa que o Não-Ser é o princípio do Ser no mesmo sentido que o Não-Ser determina o Ser? Não podemos afirmar isso, pois aquilo que é completo e infinito em sua não-determinação não pode determinar-se sem tornar-se menos e outro do que si próprio, contradizendo assim sua própria natureza, o que seria uma impossibilidade. Portanto, o Não-Ser não pode abarcar o princípio ou a possibilidade de autodeterminação: ele não é determinado por nada (pois o Não-Ser é “não-dual” e onde não há dualidade nada pode ser determinado por nada) e ao mesmo tempo é impotente para determinar o que quer que seja (pois no âmbito do Não-Ser Absoluto não há nada a determinar e nada que possa ser determinado).

Isso significa que somos confrontados com um dilema. Tem de haver uma primeira determinação, pois caso não haja uma primeira determinação não é possível que haja determinações subsequentes e, assim, toda a teoria dos estados múltiplos do ser perderia sua fundamentação ontológica. Por outro lado, no Absoluto não há, de acordo com Guénon, um princípio que possa determinar a primeira determinação. É da necessidade de resolver esse dilema que Guénon anuncia o que poderíamos chamar de salto quântico metafísico. Diz ele: “O Ser não é determinado, mas determina-se a si mesmo”.

Vale a pena nos determos um pouco mais nessa afirmação. A primeira parte da frase, em si, equivale a dizer que uma determinação não é determinada, o que sem dúvida é uma contradição em termos; enquanto que a segunda parte da frase assume novamente ares daquilo que Guénon chamava de absurdidade, pois viola a lei da não-contradição, cuja conformidade caracteriza para Guénon aquilo que é possível. Ora, em que sentido uma determinação pode determinar-se a si mesma ou ser seu próprio princípio? Nenhuma determinação pode possuir o princípio de seu próprio ser – ou seja, de sua própria determinação – em si mesma, pois isso seria o mesmo que dizer que há um princípio que existe à parte ou oposto ao Infinito, e isso acarretaria em contradizer toda a ideia de Absoluto conforme ensinada por Guénon. Todavia, conforme vimos acima, o Absoluto não pode, em Si, ser o princípio da determinação sem ao mesmo tempo contradizer Sua própria natureza. Ora, se o Ser realmente determina-se a si mesmo por meio de uma espécie de combustão espontânea, então há aí uma possibilidade de uma impossibilidade: uma possibilidade de que uma determinação que não possui o princípio de sua própria determinação em si mesma e é, portanto, com respeito ao Absoluto, rigorosamente nada e desprovida de qualquer ser ou existência, mas que mesmo assim é o princípio de sua própria determinação e de fato determina-se a si mesma.

Percebemos desde logo por que é necessário postular esta determinação inerentemente contraditória do Ser, pois do contrário seria impossível explicar a passagem do Absoluto indeterminado para a primeira determinação, o puro Ser, e assim construir toda a teoria subsequente da estrutura do universo. Mas isso não deixa de ser um tipo de deus ex machina sem o qual o dilema apresentado permaneceria insolúvel; nem deixa de ser uma violação da lei da não-contradição, ou seja, uma absurdidade, conforme Guénon define esse termo. Assim, a tentativa de apresentar um princípio metafísico supremo em termos que sejam logicamente consistentes introduz necessariamente uma inconsistência lógica na descrição de quaisquer determinações que sejam subsequentes a este princípio, e na descrição de quaisquer manifestações (ou aparências de manifestações) de quaisquer tipos.

O demiurgo teria aprisionado os éons na matéria: em cada coisa há um componente material que encarcera uma partícula divina. Eis que tudo, portanto, é divino, e no cosmo há uma luta entre as partículas divinas e a materialidade.

3. O demiurgo. Ele é o “deus mal”, a causa do mal metafísico. Os gnósticos o identificam com Satanás e com Javé, criador dos céus e da terra. O demiurgo é o inimigo do Deus absconditus, ora imitando-o, ora ignorando-o. A serpente teria procurado revelar aos ignorantes Adão e Eva que o criador não era o Deus verdadeiro. Portanto, foi a serpente quem primeira revela a gnose: o demiurgo (Javé-Satanás) era um ignorante que criara um cosmos caricato por não conhecer o mundo do pleroma.

O demiurgo é o Javé-Satanás do Velho Testamento, enquanto o deus do Novo Testamento é bom e misericordioso. Por isso devemos rejeitar a lei (VT) e basta a fé para a salvação (NT), sem necessidade de obras. É claro que isso faz lembrar a tese luterana, o mesmo Lutero, aliás, que inspirou-se ostensivamente em Eckhart (“Não quero Moisés com sua lei, pois ele é um inimigo do Senhor Cristo”). Fedeli lembra na parte 2 de sua aula sobre o esquema gnóstico que a renovação carismática guarda grande semelhança com a seita dos Irmãos do Livre Espírito, declaradamente gnóstica. Alguns gnósticos chamam o demiurgo de Topos (“Lugar”), uma alusão ao criador do espaço e do tempo.

4. Antropogenia. O homem é o ponto que une o espiritual e o material. Ele é, assim, o ponto inicial para o retorno à Divindade. A gnose repete a ideia do “homem universal”, ou seja, o homem ao mesmo tempo é uma redução do universo, enquanto o universo é um homem ampliado. O homem também foi criado pelo demiurgo e, assim como as demais coisas criadas, tem aprisionado algo da substância divina em seu corpo.

5. Psicologia. A gnose é antipática à razão, ao raciocínio, à lógica, à vontade, porque eles são não apenas incapazes de apreender o divino, mas dificultam em fazê-lo (veja acima o que dissemos sobre a gnose ser contrária aos princípios metafísicos que, por sua vez, são a base da lógica). Só por meio da intuição pneumática isso seria possível. O pneuma, ou centelha divina no homem, é o que constitui seu verdadeiro eu. As almas humanas individualizadas constituiriam, originalmente, uma grande alma coletiva e divina. Daí a gnose ser contra tudo aquilo que personaliza, seja a vontade (apegada aos desejos), seja a razão.

6. Soteriologia. Não há salvação propriamente na gnose, porque quem caiu não foi o homem, mas o próprio Deus. A passagem do nada absoluto (o não-ser) ao ser é a queda; portanto, não houve queda moral, mas uma queda ontológica. A soteriologia gnóstica consiste, portanto, numa dupla moralidade: ascética (fruto do ódio à matéria e à existência) e antinomista (prática de ações degradantes e repugnantes). Os dez mandamentos são, portanto, um meio perpetuante do aprisionamento das centelhas divinas. O pecado é o meio de salvação gnóstico, ou seja, ele é a técnica por excelência para destruir as cadeias ontológicas, isto é, para destruir o ser.

7. Cristologia. Não há Redentor na gnose porque não há pecado ancestral. Por vezes os gnósticos alegam que Cristo não teria corpo, por motivos óbvios. Eles rejeitam todos os elementos estruturais da Igreja: organização, hierarquia, leis, templos etc. Os gnósticos são contra todo dogmatismo porque entendem que a verdadeira igreja é pneumática, formada exclusivamente por homem “espirituais”.

8. Escatologia. Enquanto não são libertas da matéria pela gnose, o inferno é o renascimento das partículas divinas, ou mesmo a transmigração para corpos de animais, plantas e até mesmo matéria bruta. O inferno é, portanto, a permanente ligação a um corpo material. Os gnósticos, no entanto, ao morrerem são reintegrados na Divindade.

9. O amor. A gnose odeia o ser, portanto as questões relativas ao sexo e à reprodução lhe são importantes. De maneira geral, os gnósticos desprezam as mulheres porque são fontes de procriação, ou seja, da continuidade material da humanidade. As relações sexuais podem ser livres, contanto que não deem à luz a novas vidas. A gnose é o elemento subjacente que explica por que a mulher deveria apoiar uma seita que despreza a mulher: há aqui uma possível explicação do apoio feminino ao feminismo. No romantismo, a mulher em concreto é desprezada, enquanto a partícula divina que há nela (simbolizada pela dama) é apresentada num contexto de amor platônico idealizado. A mulher é uma fada, mas na verdade é a luxúria idealizada. Diz Denis de Rougemont: “A licenciosidade demoliu o casamento por baixo, enquanto a cavalaria [o amor cortês ou cavalheiresco] o ridiculariza de cima”. Diz ainda Fedeli: “O amor sentimental dos gnósticos é apenas um meio utilizado para romper os laços da individualidade e obter uma união “mística” de duas almas, de duas partículas divinas com a Divindade [...] e, portanto, exige a morte como veículo de libertação”.

10. Eclesiologia. Na igreja gnóstica, todos são iguais (porque todos são igualmente divinos), não há santos. Essa igreja tem membros não apenas na Igreja, mas em todas as religiões. Não há “símbolo de fé” na gnose, eis porque é difícil traçar os limites de cada seita. Seus contornos são fluidos e confusos.

Para Fedeli, panteísmo e gnose ocasionalmente se unem, provocando grandes “curtos-circuitos”. Foi o caso da Reforma Protestante, da Revolução Francesa, da Revolução Russa, do modernismo e, compreende-se, do Concílio Vaticano II.

Fonte: Orlando Fedeli, Antropoteísmo, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil, 2020.