1 de julho de 2023

Um tributo à alta monogamia


O escritor americano George Leonard, extensamente citado pela psicóloga espanhola Montserrat Calvo Artes, defende a ideia de que tanto o moralismo vitoriano quanto a revolução sexual, embora ambos pareçam contradizer-se mutuamente, na verdade são produto de uma mesma mentalidade: a ideia de que o sexo é uma atividade que possa ser dissecada dos demais aspectos da vida humana e, pior, que possa ser reduzida a dogmas e preceitos definidos.

Quando nos damos conta que o homem enquanto tal não é um mero agregado material, nem um boneco ou um fantasma, mas um ser muitíssimo mais complexo, amplo e profundo, que a união entre duas pessoas não é a mera união de dois personagens, então podemos vislumbrar a ideia central de Leonard: o amor erótico, se consumado e comprometido, tem poderes imortais. O amor erótico e o amor criador são notavelmente semelhantes e a maneira como fazemos amor influi na maneira como fazemos o mundo, e vice-versa.

O problema com as posturas ideológicas vitoriana e revolucionária é que ambas almejam reduzir e “concretizar” a vida, seja impondo ditames de recato e castidade, como no caso da moral vitoriana, seja impondo ditames de exuberância e liberdade, como no caso da moral revolucionária. Observe que em ambas há a oferta de soluções e caminhos simplificados. E o que foi “simplificado” aqui é precisamente a condição humana: quando duas pessoas fazem amor isso seria “só sexo”, seria mero alívio prazeroso de pulsões e a realização de desejos voluptuosos.

Foi o moralismo vitoriano do século XIX o principal responsável por reduzir o sexo a algo polêmico e isolado, por romper a relação do sexo com a matriz das relações sociais, por transformar o sexo em algo sensacional. O sexo passou a ser uma ideia, uma abstração, um objeto sobre o qual podemos versar, manipular, ensaiar em laboratório. A abstração e a generalização que supõe o pensamento moderno sobre o sexo toma a experiência erótica e a converte em algo concreto e útil, paralisando-a. A expressão “sexualidade humana” não mais descreve a vida, mas a morte. Segundo Leonard, embora aparentemente não haja relação entre sexo e genocídio, é precisamente a abstração do corpo e do sexo em relação ao composto humano total levada a cabo na era moderna que permite que pessoas sejam tratadas como coisas, que assim como as árvores de um terreno são derrubadas para posterior terraplanagem, assim também homens são assassinados para posterior “terraplanagem”. Daí Leonard dizer com muita eloquência: “A paralisia da percepção precede o genocídio”. Nossa capacidade de abstrair é também nossa incapacidade. Uma ideia pode se tornar tão premente que a confundimos com a realidade: confundimos o mapa com o território. É quando a ideia se converte em ideologia.

Ao contrário, as fantasias formam a cultura erótica interior e, portanto, enriquecer a vida imaginária é ampliar as perspectivas da vida erótica. A criatividade, seja no amor ou em qualquer outro campo, exige a distinção entre a fantasia e o dogma: ora, criar significa experimentar novos elementos ou configurações da realidade sentindo-me seguro com isso. O dogma circunscreve e congela a realidade ao mesmo tempo em que proíbe a fantasia.

O que Leonard tem em mente está para muito além do controle, dos cálculos e das manipulações. Trata-se de entrar em um mundo no qual o ato sexual não seja considerado como uma mercadoria, mas como uma expressão espontânea e incondicional do amor. Em outras palavras, em criar um lugar magnífico apesar dos riscos, no qual as correntes do passado se rompem e a importância da luta pelo poder é mínima.

Se minha amante e eu somos campos de energia, únicos e irredutíveis, que expressamos o cosmos desde um ponto de vista especifico, então nossa união não é casual. Quando nos unimos no amor criamos um novo campo de energia, maior e diferente do que a soma de suas partes. As intenções e o compromisso bastam para criar uma nova forma, para engendrar a ordem onde antes havia o caos e o nada, para produzir novos dados. Se minha amante é o cosmos, é impossível que a trate como um objeto. Ela é como uma janela para o cosmos.

É por isso que Leonard propõe a monogamia. Não por escrúpulos legais, morais ou religiosos, nem por timidez ou inércia, mas porque ambos buscam um desafio e uma aventura. A exclusividade erótica é portanto algo voluntário, livremente escolhido. Para isso, Leonard recomenda: (1) que ambos tenham interesses em comum em quanto a objetivos de vida, (2) que demonstrem genuíno entusiasmo, lealdade, cortesia, paciência, (3) que se considerem verdadeiramente como pessoas de altíssimo valor.

O objetivo da relação monogâmica é atingir uma profundidade tal que desencadeie uma mudança em ambos. É precisamente a partir do momento em que ambos já contaram a historia de suas vidas e empregaram todos os truques eróticos que começa a aventura da transformação e do erotismo mais profundo. É a partir desse momento que começamos a ver com clareza e começamos a mudar. E é precisamente isso que a sexualidade recreativa e fugaz evita: a intimidade profunda, a aventura, a imprevisibilidade, a transformação. A monogamia é para aqueles que se comprometem a viver de uma forma profundamente pessoal, entregando tudo sem reprimir nada. A relação monogâmica voluntária (não aquela motivada por escrúpulos morais) tem seus prêmios: uma ternura muito particular, sensações intensas, um ambiente erótico emocionante, surpresas cotidianas, mudanças. 

Tudo isso sem apólice de seguro. Sim, pois há riscos, e são enormes. A sabedoria do cínico tem um longo pedigree. Mas o desperdício do potencial da relação monogâmica autêntica também causa terror.

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A "matéria" é a origem dos campos de energia ou são eles que engendram a matéria? Na realidade, a matéria é o campo de energia, como demonstrou Einstein em sua equação E = mc 2, sem que a causa intervenha em nada. Basta dizer que o padrão rítmico é o aspecto mais fundamental e irredutível de cada ser humano e que podemos considerar todos os sinais de individualidade como diferentes manifestações de um mesmo ritmo fundamental ou pulsação interior. Por exemplo, as impressões digitais são ondas rítmicas imobilizadas no espaço. As ondas cerebrais são ondas no tempo. Reconhecemos nosso cantor favorito - não importa quão ruim seja a gravação e não importa que música ele cante - não apenas pela maneira como ele interpreta a música, mas também por essa profunda essência rítmica, esse pulso interior.

Portanto, cada um de nós pode ser considerado um campo rítmico completamente diferente, um complexo de ondas e ressonâncias. Este conceito de identidade pessoal anula a velha dicotomia mente-corpo, visto que a mente é vista como uma manifestação da pulsação interior, e o corpo como outra manifestação da mesma. Podemos ir ainda mais longe e afirmar que a obra de uma pessoa, a marca deixada no tempo pela passagem dessa pessoa, é uma manifestação dessa pulsação particular e fundamental. A alma ou espírito é outra dessas manifestações. A ideia de uma pulsação interna da identidade pessoal poderia explicar a possibilidade da sobrevivência da autoidentidade após a morte do corpo.

Fonte: George Leonard, El fín del sexo, Integral Editorial, Barcelona, Espanha, 1986.