26 de junho de 2023

Introdução ao idealismo analítico


Aqui algumas breves notas a respeito da série de apresentações de Bernardo Kastrup sobre seu idealismo analítico, uma instigante alternativa à visão de mundo materialista / fisicalista ainda vigente no mundo da ciência e sobretudo da tecnologia.

1. O mundo é subjetivo

A matéria é algo essencialmente mental porque tomamos contato com ela na "tela da percepção" de nossas mentes. O fato de possuir características obejtivas, ou seja, de comportar-se de maneira aparentemente independente de nossos estados mentais, não quer dizer que ela, a matéria, não se apresente de maneira mental. Neste curso Bernanrdo Kastrup procurará demonstrar os graves erros do materialismo ("fisicalismo" filosoficamente falando) e apresentar sua explicação alternativa, o idealismo analítico. A metafísica, embora seja uma disciplina considerada das mais áridas, é também aquela que mais fundamentalmente afeta a vida de todos os homens e, portanto, deve ser do interesse de todos.

2. Percepção e realidade

Se nossos estados cognitivos fossem um espelho perfeito do mundo então nossa "entropia interna" (gostei da expressão) seria ilimitada. Por isso a percepção tem de ser uma "representação codificada" do mundo exterior. É absurdo pensar que a percepção transmite o mundo exterior tal qual. Daí o materialismo ("fisicalismo"), embora o negue à primeira vista, se refere a essa representação codificada, e não à realidade enquanto tal.

Agora, se isso é verdade, então o que é a realidade? O que está para além da representação codificada?

3. Materialismo é bobagem

Muito boa a maneira como Kastrup define materialismo: uma visão de mundo na qual o mundo exterior não é atividade mental, na qual o mundo exterior é feito de algo completamente diferente do que é feita a atividade mental ("mentation").

Quando Kastrup diz que o materialismo é "totalmente abstrato", bem, as qualidade que ele cita, como "verde", "azul", "doce", "salgado", "melodia", "textura" etc. também são abstrações porque não são a própria experiência dessas coisas: "verde" e "doçura" são abstrações assim como "kg", "Hz", "cm" etc. são. As contradições lógicas que ele aponta para desacredtar o materialismo são fracas a não ser que você entenda as qualidades como a experiência bruta, como os "qualia" subjetivos. Imagino que Kastrup queira dizer isso.

No entanto, as duas questões empíricas que ele levanta são matadoras: 

(1) Física quântica. As partículas subatômicas se comportam de acordo com o que o pesquisador decide medir, ou seja, a partícula surge da medida, e não a medida da partícula. Portanto, e veja a gravidade dessa conclusão, o mundo não é feito de partículas. Em outras palavras, o mundo físico ("fisicalidade") tal qual não existe.

(2) Psicologia da consciência. As viagens psicodélicas, que são experiências psicológicas intensas, não ativam o cérebro de maneira diretamente proporcional, que é o que se esperaria se a consciência fosse produto do cérebro. Outras experiências que reduzem artificialmente a atividade cerebral aumentam inversamente a atividade da consciência. Em outras palavras, a ideia de que a experiência anímica brota da ativiade cerebral simplesmente não funciona.

4. Idealismo analítico

O fato de existir um mundo exterior à minha mente individual não signfica que esse mundo não seja mental. Se eu posso sensatamente concluir que você tem uma mente individual distinta da minha mente individual, por que seria insensato concluir que o mundo exterior também não possa ser mental? Ok, não é uma mente individual como a sua e a minha, mas o mundo exterior poderia ser composto de, digamos, "processos mentais transpessoais".

Segundo Kastrup e seu idealismo analítico, esses processos mentais transpessoais se assemelham à condição de um grande e geral transtorno dissociativo de identidade ("transtorno de personalidade") no qual nós, mentes individuais, somos os alter egos desse ego geral (universo). A natureza, a biologia, a vida, nada mais é do que a aparência desse grande transtorno dissociativo do campo da subjetividade.

E como fica o cérebro? Ora, o cérebro, a partir dessa nova concepção metafísica, e a exemplo de todo as demais "representações codificadas", é uma imagem dos estados mentais, e não o gerador deles. Mas se o cérebro é uma imagem, então ele é apenas uma imagem, ou seja, é necessariamente uma representação limitada, circunscrita, da consciência. Quanto mais experiências conscientes, mais atividade cerebral, mas só até determinado ponto, pois o cérebro é ele em si um elemento limitante, um elemento da dissociação. E se é assim, então deveríamos esperar que haja em determinado ponto uma relação inversamente proporcional entre cérebro e mente: a partir desse ponto, quanto menos ativiadde cerebral, menos dissociativa ("transtornada") a experiência mental e, portanto, mais ampla, será tal experiência.

5. Consciência universal

Esse mundo mental independente de nossas mentes, essa "consciência universal", é essencialmente o que Kastrup chama de core subjectivity, ou seja, uma subjetividade sem história, sem identidade, sem individualidade. Ela tem seu próprio dinamismo, suas próprias "excitações", como os movimentos dos astros no cosmos deixam claro, mas isso não significa que a consciência universal deixe de ser core subjectivity assim como não podemos concluir que o som produzido pela excitação das cordas de um violão o torne "algo mais" que apenas o próprio violão.

O fato de nós homens sermos dotados de metacognição, ou seja, o fato de nós sermos capazes de pensar sobre o pensamento, de sermos capazes de autoconsciência, não nos permite concluir que a consciência universal seja ela também autoconsciente, que tenha ela também metacognição,que haja um Deus. Kastrup acredita que a metacognição humana é resultado de 4 bilhões de anos de evolução, e que o cosmos não passou por semelhante processo evolutivo. Supor que haja um "Deus cósmico" é supor um Deus sádico que tortura bilhões de seres e pessoas para fazê-las evoluir.

O surgimento da vida é resultado da evolução dos processos mentais transpessoais, da consciência universal. Kastrup entnde que o Big Bang é a explicação mais aceitável, quase inevitável, para a origem do universo. Perguntar o que havia antes do Big Bang seria absurdo porque o Big Bang subentnde que não havia tempo antes de si. Perguntar por sua origem é tão absurdo quanto perguntar qual é o estado civil do número 5.

6. O sentido da vida

A morte é uma reassociação da core subjectivity do alter ego ao "ego" universal. Assim como o avatar de um sonho morre quando acordamos e não lamentamos esse fato, assim também ao morrermos não lamentaremos esse fato. Por outro lado, o fato de sabermos que a sabedoria e a maturidade acumuladas ao longo da vida não desaparecem com o cérebro, e que pelo contrário nós seremos reintegrados ao grande tecido da natureza uma vez que morremos, isso deixa uma grande esperança quanto ao sentdo da vida. O materialismo, por sua vez, provoca o exato oposto: dele não se pode deduzir nenhum sentido para a vida.

A morte é como um sacrifício humano: as experiências e a sabedorias acumuladas são liberadas para a natureza. Kastrup obviamente não acredita que se deva aberviar a vida humana em prol dessa liberação, uma vez que o ego não deve decidir pela natureza quando a vida deve ser encerrada, mas a intuição humana antiga dos sacrifícios humanos tem sentido. A morte é portanto uma "colheita" da vida para benefício da natureza como um todo.

7. O idealismo analítico na prática

Vivemos numa era metafisicamente preconceituosa na qual o materialismo é a causa-raíz das crises modernas de ansiedade e depressão. Ademais, em vez de buscar o acúmulo de insights como uma meta sensato e coerente, buscamo o acúmulo de dinheiro. O sofrimento, em vez de ser considerado como um meio para um fim, é visto como um mal em si do qual nada se deve aprender.

A medicina moderna perde tempo ao não entender o caráter mental dos remédios, que são meros processos mentais transpessoais que se integram ao alter que os ingere. Por isso a medicina perde tempo ao não encarar as curas produzidas por meios psicológicos como o efeito placebo e as hipnoterapias e concentrar-se preponderantemente na ideia do remédio enquanto entidade física/material.

8. Alternativas

Kastrup discute algumas doutrinas metafísicas que competem com seu idealismo analítico. Não as reproduzirei aqui, mas cabe uma menção interessante a respeito das considerações que ele faz ao panpsiquismo e à ideia do mundo feito de bolinhas de gude.

Há uma diferença fundamental entre "montagem" e "crescimento" que escapa aos adeptos das teorias panpsiquistas. Os neurônios não são partes do organismo humano assim como as peças são partes de um carro. No carro houve engenheiros que desde fora projetaram e posteriormente no processo fabril montaram as peças previamente fabricadas. Os neurônios, ou qualquer céclula do corpo, não são "feitas" de fora para dentro, mas de dentro para fora. Os neurônios são, nas palavras de Kastrup, o "reflexo de uma complexificação auto-semelhante", ou seja, a estrutura interior é criada pelo próprio organismo, isto é, não vem de "fora" como em um carro. Um zigoto de três dias de vida tem 8 células, enquanto há três dias tinha apenas uma. É claro, diz ele, que essas 8 células não são "partes" do zigoto, mas foram desevolvidas a partir de um processo de complexificação por auto-semelhança (mitose). Ora, o homem plenamente desenvolvido nada mais é do que o zigoto original com mais complexificação: todas as suas células são apenas e tão-somente o resultado de diferenciações internas do zigoto original. As "partes" do corpo são apenas nomes que atribuímos convenientemente ao organismo humano.

Ademais, quando hoje em dia nos referimos às "partículas subatômicas", o vocábulo "partícula" é usado metaforicamente. Não se pode entender que as partículas subatômicas sejam como bolinhas de gude delimitadas no espaço tal como representadas nos livros-texto de mecânica clássica. As ondulações em um lago não são distintas do próprio lago. Embora possamos apontar para a ondulação e medir sua altura, comprimento, velocidade etc. não podemos extrair a ondulação. Ela é um comportamento do lago, não uma "parte" do lago. A ondulação é apenas e tão-somente lago, nada mais. Assim também na QFT (teoria quântica de campo) as partículas subatômicas são "ondulações" de um campo quântico. Não "há" nada na partícula, apenas o próprio campo quântico. Assim como é artificial, embora conveniente, tratar as ondulações de um lago como se fossem coisas que existem delimitadamente, também é artificial, embora conveniente, tratar as partículas subatômicas de um campo como se fossem coisas que existem delimitadamente. A ideia das partículas subatômicas como bolinhas de gude foi desacreditada não apenas filosoficamente, mas inúmeros experiementos físicos mostram que mesmo em ambientes perfeitamente vazios (vácuo perfeito) as partículas subatômicas surgem e desaparecem dentro deles. Não se trata de mágica, mas de meras flutuações nos campos quânticos ali presentes.

9. Inteligência artificial

A inteligência é algo mensurável como, por exemplo, a inteligência de um sistema de aquisição e identificação de dados. No entanto, muitos membros da comunidade da IA confundem inteligência com consciência, confundem . Uma consciência implica em ter experiências e perspectivas subjetivas a respeito de si mesmo e do mundo. É impossível saber desde fora se um computador tem consciência a não ser que pudéssemos ser um computador. No entanto, não há razões empíricas que permitam assumir a postura de que computadores têm consciência.

Conceber que um computador é consciente seria tão absurdo quanto conceber que uma cadeira ou os azulejos de uma parede têm consciência. O fato de "estarem na" consciência não significa que "sejam" conscientes. Há uma confusão aí entre "computar" e "conscientizar". O cômputo, ou seja, o estado que um dispositivo pode assumir (como o interruptor on-off do lustre da sala, por exempo), é algo que nós homens atribuímos de maneira prévia e abstrata a esse dispositivo. Por definição, portanto, a computação (assumir estados) é algo que ocorre independentemente do meio no qual o dispositivo está inserido. 

No caso da consciência é o oposto: os homens não inventaram a consciência abstratamente, não atribuíram a um dispositivo estados (cômputos) que funcionem ou representem algo no contexto do dispositivo, mas é algo que existe previamente a qualquer ação. A consciência é impossível de definir porque defini-la seria como criar um jogo com regras definidas. A consciência não existe independentemente do meio.

10. Livre arbítrio

A polêmica a repeito do livre arbítrio não deve ser reduzida à dicotomia entre determinismo e indeterminismo. O oposto de determinismo seria o aleatorismo, ou seja, a ideia de que as escolhas são feitas de maneira aleatória o que, ao fim e ao cabo são determinadas por algo que desconheço, mas ainda assim determinadas. Em outras palavras, o oposto de determinismo também deve ser o determinismo, mas um determinismo no qual o elemento determinante é "eu", é o aquilo com o que eu me identifico ("minhas" escolhas, "minhas" preferências "minhas" disposições etc.).

Portanto, o live arbítrio não é uma questão determinista, mas uma questão identificacionista. 

Por um lado, se nos identificamos com nosso "eu" subjetivo, como diria Schopenhauer, somos livres para agir conforme nossa vontade, mas não somos livres para ter vontade de ter uma vontade. Não escolhemos o que queremos, o que pensamos, o que sentimos, o que gostamos, o que detestamos. Há apenas um pequeno espaço em termos puramente operacionais no qual o eu pode escolher (o caminho de volta para casa, aplicar-se a esta ou aquela vaga de emprego, cursar esta ou aquela faculdade, assumir ou não uma hipoteca etc.), mas as grandes e profundas questões da nossa vida e personalidade, ligadas à vontade fundamental, não são passíveis de escolhida.

Por outro lado, se nos identificamos com o core subjectivity, ou seja, com os processos mentais transpessoais, tudo, e nada, é livre. Não há distinção entre querer e necessitar porque querer é necessitar. No grande lago dos campos quânticos, as flutuações das partículas subatômicas precisam/querem fluturar da maneira como o fazem porque são elas mesmas o próprio lago, os próprios campos quânticos. Kastrup claramente se identifica com essa versão identificacionista uma vez que cita Schipenhauer quadno diz que afinal "natureza é vontade".

Fonte: Bernardo Kastrup, Essentia Foundation/Keytoe Academy Course on Analytic Idealism, YouTube, 2023.