10 de julho de 2023

Elementos de filosofia da linguagem


A tarefa da filosofia da linguagem é construir uma teoria que tente explicar o fenômeno da comunicação. Adler entende que há duas limitações que precisam constar em uma filosofia da linguagem digna do nome: (1) eliminar toda e qualquer preocupação com “verdadeiro” e “falso” e (2) excluir de seu alcance as expressões emotivas, sentimentais e de caráter imperativo. Isso significa, quanto ao ponto (1), que uma filosofia da linguagem não pode depender de limitações previamente impostas por questões ontológicas, epistemológicas e psicológicas pelo simples motivo que para dirimir tais questões prévias à filosofia da linguagem se exigiria, pois, o emprego da linguagem. Similarmente, a filosofia da linguagem deve ser formulada de tal forma que se situe completamente à margem da enorme variedade de teorias gramaticais e sistemas linguísticos.

A filosofia da linguagem deve ser capaz de resolver dois problemas:

(a) quais as circunstâncias necessárias para a transformação de notações em significado em notações com significado, ou seja, em palavras categoremáticas (ou seja, excluindo-se preposições, partículas, conjunções etc.) propriamente;

(b) o que é uma palavra afinal.

A teoria de que as notações adquirem significado a partir de palavras existentes é absurda porque a relação das palavras é um círculo fechado. Para uma criança, por exemplo, conseguir mover-se no círculo de palavras é necessário antes, obviamente, que sinais sem significado algum se transformem em palavras (notações com significado). Lembrando que um sinal pode ser um signo (algo que sugere, indica ou implica em outra coisa, como uma nuvem no céu sugere, indica ou implica em chuva) ou um designador (algo que nomeia, designa ou refere outra coisa, como a notação NUVEM no papel ou os fonemas “nuvem” pronunciados de maneira audível nomeiam, designam ou referem a nuvem). Somente palavras podem ser designadores.

Os significados das palavras vêm das ideias. Mas ideia, aqui, não é uma teoria ou um conceito, nem tampouco uma noção de algo. A ideia, conforme aqui usada por Adler, é um produto de um ato da mente. Então, por exemplo, a percepção produz preceitos, a imaginação produz imagens, a recordação produz memórias, a compreensão produz conceitos (embora o sentir produza sensações, neste caso, como não há participação da mente, não se consideram as sensações como ideias). Ao conjunto desses atos da mente chamamos de apreensão, enquanto ao conjunto dos produtos desses atos da mete chamamos de ideia. É claro que há mais atos cognitivos da mente além da apreensão, que são o juízo e o razoamento, que envolvem questões de verdade e falsidade, e cujos produtos são o julgamento e o raciocínio.

As ideias são aquelas coisas pelas quais apreendemos o que apreendemos, mas nunca os objetos da apreensão, ou seja, nunca aquilo que apreendemos. E eis o ponto crucial da filosofia da linguagem de Adler: o objeto das ideias não pode ser puramente subjetivo, pois senão a comunicação seria impossível. Tampouco pode ser puramente objetivo, pois sabemos que as ideias não tem existência independente da mente humana. Portanto, os objetos das ideias situam-se entre esses dois extremos: trata-se de objetos pertencentes ao campo da intersubjetividade, ou seja, são objetos idênticos para dois ou mais indivíduos, apesar de cada individuo apreendê-los por meio de suas próprias ideias, por meio de seus próprios atos mentais. Esses dois indivíduos têm ideias existencialmente distintas, mas essas ideias podem ter uma única intenção, ou seja, elas podem pleitear um mesmo objeto e fazê-lo presente na mente de ambos os indivíduos.

O significado da ideia é intrínseco a ela, ou seja, a ideia é nada mais que um significado. A ideia dá significado ao objeto que essa ideia apresenta para a mente. Mas aqui cabe uma observação crucial: a ideia não apenas tem um significado, mas ela é um significado. Ela é o significado que apresenta o objeto para a mente. Em outras palavras, é como se a ideia contivesse em si ambos os elementos, significante e significado, mas que se distingue do objeto que significa. É o único ente no mundo que se apresenta dessa forma. Eis como, portanto, uma notação sem significado adquire seu significado: por meio da imposição voluntária a um objeto apreendido (“idealizado”, digamos). O indivíduo faz a imposição do objeto sendo apreendido, ou seja, do objeto sedo apresentado à mente, a uma notação ainda sem significado. A partir daí, o uso da palavra evoca a ideia, ou seja, o significador natural, a ela associada.

A simples distinção entre aquilo que apreendemos e aquilo pelo qual apreendemos corrige o erro de Descarte e de Locke. É preciso notar mais uma vez que aqui estamos nos referindo apenas ao primeiro ato da mente, o ato de simples apreensão, e não os seus produtos — seus preceitos, suas memórias, suas imagens e seus conceitos; não estamos nos referindo aos atos subsequentes da mente, seus atos de juízo e razão. O simples ato de apreensão, no qual o sentido e o intelecto cooperam enquanto permanecem distintos, não é um ato de juízo. É apenas quando afirmamos saber, por juízo ou razão, que sabemos e fazemos juízos verdadeiros, ou falhamos cm saber e fazemos juízos falsos. A simples apreensão não envolve juízo e não é nem verdadeiro nem falso. Não basta ver que a distinção, no âmbito da simples apreensão, entre aquilo que apreendemos e aquilo pelo qual apreendemos, afasta o erro cometido por Descartes e por Locke, que viam as ideias como objetos apreendidos e também como representações das existências reais, sobre as quais procuramos fazer juízos verdadeiros e, então, vir a conhecer de fato. Também é necessário entender o que está envolvido na adesão rigorosa à visão de que ideias (preceitos, memórias, imagens e conceitos) são sempre e somente aquilo pelo qual apreendemos, nunca aquilo o que apreendemos. A primeira coisa que deve ser compreendida é que os produtos dos primeiros atos da nossa mente — seus preceitos, suas memórias, suas imagens e seus conceitos — são totalmente inexperienciáveis, ininspecionáveis e inexamináveis.

Jamais podemos experimentá-los, inspecioná-los ou examiná-los; pois são sempre e somente aquilo pelo qual apreendemos, seja o que for que apreendemos, e nunca aquilo que apreendemos. A segunda coisa que deve ser compreendida é que, através de nossas ideias como instrumentos de apreensão, apreendemos uma variedade de objetos — os percebidos, os lembrados, os imaginados e imaginários, e os objetos concebidos ou objetos de pensamento. A terceira coisa que deve ser entendida é que esses objetos apreendidos não são representações de coisas, ou existências reais de qualquer tipo. Os objetos da nossa apreensão são entes que sempre têm existência intencional. Além disso, eles podem ser entes que também têm existência real, mas que nem sempre é o caso. Todos esses pontos foram completamente elaborados nos capítulos anteriores e não precisam mais ser discutidos. Só estão sendo mencionados aqui para resumir o que envolve um novo caminho, aderindo rigorosamente à distinção entre aquilo que apreendemos (objetos) e aquilo pelo qual apreendemos (ideias); a distinção entre a existência intencional dos objetos e a real existência das coisas; a distinção entre apreensão e juízo; e a distinção entre pensamento perceptual e pensamento conceitual. Todas essas distinções foram perdidas ou obscurecidas na tradição da filosofia moderna iniciada com Descartes e com Locke. É apenas porque foram recuperadas e colocadas em funcionamento que o presente livro pode afirmar que produziu os rudimentos de uma filosofia da linguagem sólida e adequada.

Fonte: Mortimer J. Adler, Como pensar a linguagem em algumas questões, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2021.