A tarefa da
filosofia da linguagem é construir uma teoria que tente explicar o fenômeno da
comunicação. Adler entende que há duas limitações que precisam constar em uma
filosofia da linguagem digna do nome: (1) eliminar toda e qualquer preocupação
com “verdadeiro” e “falso” e (2) excluir de seu alcance as expressões emotivas,
sentimentais e de caráter imperativo. Isso significa, quanto ao ponto (1), que
uma filosofia da linguagem não pode depender de limitações previamente impostas
por questões ontológicas, epistemológicas e psicológicas pelo simples motivo
que para dirimir tais questões prévias à filosofia da linguagem se exigiria,
pois, o emprego da linguagem. Similarmente, a filosofia da linguagem deve ser
formulada de tal forma que se situe completamente à margem da enorme variedade
de teorias gramaticais e sistemas linguísticos.
A filosofia
da linguagem deve ser capaz de resolver dois problemas:
(a) quais
as circunstâncias necessárias para a transformação de notações em significado
em notações com significado, ou seja, em palavras categoremáticas (ou seja,
excluindo-se preposições, partículas, conjunções etc.) propriamente;
(b) o que é
uma palavra afinal.
A teoria de
que as notações adquirem significado a partir de palavras existentes é absurda
porque a relação das palavras é um círculo fechado. Para uma criança, por
exemplo, conseguir mover-se no círculo de palavras é necessário antes,
obviamente, que sinais sem significado algum se transformem em palavras
(notações com significado). Lembrando que um sinal pode ser um signo (algo
que sugere, indica ou implica em outra coisa, como uma nuvem no céu sugere,
indica ou implica em chuva) ou um designador
(algo que nomeia, designa ou refere outra coisa, como a notação NUVEM no papel
ou os fonemas “nuvem” pronunciados de maneira audível nomeiam, designam ou
referem a nuvem). Somente palavras podem ser designadores.
Os
significados das palavras vêm das ideias.
Mas ideia, aqui, não é uma teoria ou
um conceito, nem tampouco uma noção de algo. A ideia, conforme aqui usada por Adler, é um produto de um ato da
mente. Então, por exemplo, a percepção produz preceitos, a imaginação produz
imagens, a recordação produz memórias, a compreensão produz conceitos (embora o
sentir produza sensações, neste caso, como não há participação da mente, não se
consideram as sensações como ideias). Ao conjunto desses atos da mente chamamos
de apreensão, enquanto ao conjunto
dos produtos desses atos da mete chamamos de ideia. É claro que há mais atos cognitivos da mente além da
apreensão, que são o juízo e o razoamento, que envolvem questões de
verdade e falsidade, e cujos produtos são o julgamento e o raciocínio.
As ideias
são aquelas coisas pelas quais
apreendemos o que apreendemos, mas nunca os objetos da apreensão, ou seja,
nunca aquilo que apreendemos. E eis o
ponto crucial da filosofia da linguagem de Adler: o objeto das ideias não pode
ser puramente subjetivo, pois senão a comunicação seria impossível. Tampouco
pode ser puramente objetivo, pois sabemos que as ideias não tem existência
independente da mente humana. Portanto, os objetos das ideias situam-se entre
esses dois extremos: trata-se de objetos pertencentes ao campo da intersubjetividade, ou seja, são objetos
idênticos para dois ou mais indivíduos, apesar de cada individuo apreendê-los
por meio de suas próprias ideias, por meio de seus próprios atos mentais. Esses
dois indivíduos têm ideias existencialmente distintas, mas essas ideias podem ter uma única intenção, ou seja,
elas podem pleitear um mesmo objeto e fazê-lo presente na mente de ambos os
indivíduos.
O
significado da ideia é intrínseco a ela, ou seja, a ideia é nada mais que um significado. A ideia dá significado ao
objeto que essa ideia apresenta para a mente. Mas aqui cabe uma observação
crucial: a ideia não apenas tem um
significado, mas ela é um
significado. Ela é o significado que apresenta o objeto para a mente. Em outras
palavras, é como se a ideia contivesse em si ambos os elementos, significante e
significado, mas que se distingue do objeto que significa. É o único ente no
mundo que se apresenta dessa forma. Eis como, portanto, uma notação sem
significado adquire seu significado: por meio da imposição voluntária a um
objeto apreendido (“idealizado”, digamos). O indivíduo faz a imposição do
objeto sendo apreendido, ou seja, do objeto sedo apresentado à mente, a uma notação
ainda sem significado. A partir daí, o uso da palavra evoca a ideia, ou seja, o
significador natural, a ela associada.
A simples distinção entre aquilo que apreendemos e aquilo pelo qual apreendemos corrige o erro de Descarte e de Locke. É preciso notar mais uma vez que aqui estamos nos referindo apenas ao primeiro ato da mente, o ato de simples apreensão, e não os seus produtos — seus preceitos, suas memórias, suas imagens e seus conceitos; não estamos nos referindo aos atos subsequentes da mente, seus atos de juízo e razão. O simples ato de apreensão, no qual o sentido e o intelecto cooperam enquanto permanecem distintos, não é um ato de juízo. É apenas quando afirmamos saber, por juízo ou razão, que sabemos e fazemos juízos verdadeiros, ou falhamos cm saber e fazemos juízos falsos. A simples apreensão não envolve juízo e não é nem verdadeiro nem falso. Não basta ver que a distinção, no âmbito da simples apreensão, entre aquilo que apreendemos e aquilo pelo qual apreendemos, afasta o erro cometido por Descartes e por Locke, que viam as ideias como objetos apreendidos e também como representações das existências reais, sobre as quais procuramos fazer juízos verdadeiros e, então, vir a conhecer de fato. Também é necessário entender o que está envolvido na adesão rigorosa à visão de que ideias (preceitos, memórias, imagens e conceitos) são sempre e somente aquilo pelo qual apreendemos, nunca aquilo o que apreendemos. A primeira coisa que deve ser compreendida é que os produtos dos primeiros atos da nossa mente — seus preceitos, suas memórias, suas imagens e seus conceitos — são totalmente inexperienciáveis, ininspecionáveis e inexamináveis.
Jamais podemos experimentá-los, inspecioná-los ou examiná-los; pois são sempre e somente aquilo pelo qual apreendemos, seja o que for que apreendemos, e nunca aquilo que apreendemos. A segunda coisa que deve ser compreendida é que, através de nossas ideias como instrumentos de apreensão, apreendemos uma variedade de objetos — os percebidos, os lembrados, os imaginados e imaginários, e os objetos concebidos ou objetos de pensamento. A terceira coisa que deve ser entendida é que esses objetos apreendidos não são representações de coisas, ou existências reais de qualquer tipo. Os objetos da nossa apreensão são entes que sempre têm existência intencional. Além disso, eles podem ser entes que também têm existência real, mas que nem sempre é o caso. Todos esses pontos foram completamente elaborados nos capítulos anteriores e não precisam mais ser discutidos. Só estão sendo mencionados aqui para resumir o que envolve um novo caminho, aderindo rigorosamente à distinção entre aquilo que apreendemos (objetos) e aquilo pelo qual apreendemos (ideias); a distinção entre a existência intencional dos objetos e a real existência das coisas; a distinção entre apreensão e juízo; e a distinção entre pensamento perceptual e pensamento conceitual. Todas essas distinções foram perdidas ou obscurecidas na tradição da filosofia moderna iniciada com Descartes e com Locke. É apenas porque foram recuperadas e colocadas em funcionamento que o presente livro pode afirmar que produziu os rudimentos de uma filosofia da linguagem sólida e adequada.
Fonte: Mortimer J. Adler, Como pensar a linguagem em algumas questões, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2021.