10 de maio de 2010

A teologia das doenças mentais


O objetivo do filósofo e teólogo ortodoxo francês Jean-Claude Larchet em Mental Disorders & Spiritual Healing é apresentar um resumo do que ensinam os Santos Padres a respeito das doenças mentais. O autor introduz o assunto alertando para o fato de que as escolas de psicologia moderna se baseiam em premissas muito distintas entre si, quando não abertamente contraditórias. A psicoterapia moderna, por sua vez, não consegue apontar as causas de sua própria “cura”, e freqüentemente se percebe que não há relação clara entre terapia e cura.

No entanto, os Padres têm demonstrado, ao longo dos séculos, uma psicoterapia consistente, sendo que jamais caíram no engodo de reduzir as doenças mentais a causas simplistas, como aquelas nas quais se subdividem as diversas escolas da psicologia moderna. O autor classifica essas escolas ou teorias em quatro causas das doenças mentais: (1) teorias organo-mecanicistas (origem puramente orgânica), (2) teorias psicodinâmicas (origem no inconsciente), (3) teorias sócio-psicogênicas (origem social e/ou familiar), (4) teorias organogênicas dinâmicas (origem orgânica de efeito psíquico).

Antes de partir para a explicação patrística das doenças mentais, faz-se necessário explicar os principais conceitos antropológicos e psicológicos cristãos, ou seja, como se divide a alma humana e quais as principais funções de suas faculdades. Segundo os Padres, alma e corpo existem de maneira indissociável, mas nunca chegam a se confundir. Eles agem em conjunto no pecado. O movimento de um implica no movimento do outro, e vice-versa. No entanto, o corpo é servo e a alma lhe é superior, pois dá vida, atividade e unidade ao corpo. A alma seria, assim, um tipo de “corpo sutil”, segundo São Macário, o Grande.

A alma humana possui três poderes ou faculdades:

(1) Poder vegetativo ou vital: nutrição, crescimento, geração. É a fonte de vida nos organismos e garante vida individual aos órgãos vitais. É comum a homens, animais e vegetais.

(2) Poder animal, apetitivo ou passivo: sensação, percepção. É comum a homens e animais. Possui dois elementos:

a. Irascibilidade e ardor (thumos): daí que vem todo tipo de agressividade e a vontade em sua dimensão combativa.

b. Concupiscibilidade (epithumetikon): daí que vem desejo, afetividade e a imaginação em seus aspectos elementares e irracionais.

(3) Poder racional: razão e, em um nível mais elevado, o espírito (pneuma) ou intelecto (noûs). O noûs é o princípio da consciência (moral e psicológica) e da capacidade humana de autodeterminação (autexousia) e, portanto, o aspecto superior de sua vontade e o princípio de sua liberdade. É exclusivo dos homens.

O noûs é também o princípio de todas as funções intelectivas, a saber:

a. A inteligência intuitiva (noûs propriamente), a faculdade da contemplação (theoria) e a fonte de todo conhecimento.

b. A razão (logos) e tudo o que procede da inteligência: pensamento (ennoia, dianoia), reflexão (dianoia), julgamento (krisis), discernimento (diakrisis) e discurso interior (endiathetos logos), que é de onde vem a linguagem e a memória.

O noûs representa as possibilidades contemplativas do homem, é o que liga o homem a Deus. O noûs é a imagem de Deus no homem, é o representante máximo da pessoa humana. O noûs penetra na alma (vegetativa e animal) e no corpo, por isso a transfiguração se dá em todo o ser humano.

As insanidades mentais são divididas pelo autor em três tipos, de acordo com suas causas:
  • Doenças mentais de origem somática => causa: a natureza caída do homem
  • Doenças mentais de origem demoníaca => causa: os próprios demônios
  • Doenças mentais de origem espiritual => causa: as paixões humanas
Vale lembrar ainda que a obra restringe-se a doenças mentais, ou seja, há ainda as doenças somáticas e as doenças espirituais, propriamente. Assim, não se deve confundir “doença mental de origem espiritual” com uma “doença espiritual”, que está mais relacionada às dificuldades da pessoa em relacionar-se com Deus. A doença mental, por sua vez, restringe-se ao campo psíquico da pessoa. Vale lembrar também que as causas acima apresentadas não são necessariamente estanques: os demônios também agem mediante as paixões humanas, por exemplo. O autor possui outras obras que tratam mais detidamente das doenças não-mentais: The Theology of Illness, sobre as doenças somáticas, e Therapy of Spiritual Illness, sobre as doenças espirituais.

Insanidades de origem somática

Certas insanidades psíquicas podem ter origem exclusivamente fisiológica. O corpo deve estar apto a cumprir suas funções instrumentais, conforme orientação do Criador. No caso das doenças mentais de origem somática, somente o corpo sofre, bem como o aspecto instrumental/expressivo da alma, mas a alma em essência permanece intacta. Nestes casos, o tratamento pode ser exclusivamente fisiológico. No entanto, a coisa é mais complicada do que parece: os distúrbios somáticos podem ser efeito, e não causa, de distúrbios psíquicos, e há a possibilidade de influências demoníacas. Vê-se aí o papel reduzidíssimo da medicina: o médico só atua no corpo, e mesmo apenas quando é determinada a posição da doença corporal em meio ao distúrbio geral. Os médicos não devem bancar os “psiquiatras somáticos”.

Insanidades de origem demoníaca

Os Padres em geral pouco se importavam com as características naturalistas de uma doença mental, já que era a essência da influência demoníaca, se fosse o caso, que era importante. O demônio nunca possui o espírito de um batizado, mas pode possuir o corpo (mais facilmente) e a alma (mais dificilmente, caso o cristão se afaste de Deus). A possessão demoníaca se dá mais violentamente se outrora o cristão era piedoso, ou seja, no “retorno” do demônio. Não há correlação exata entre pecado e doença mental ou física. A paixão é um tipo de possessão.

No entanto, a possessão não é um castigo, mas uma tribulação que serve para purificar a pessoa e levá-la a um estado espiritual superior, descobrindo realidades outrora ignoradas. Mas, apesar da vontade ainda estar sob controle do possuído, ela está enfraquecida, necessitando da ajuda de um santo. Os Padres tratavam os possuídos/insanos com profundo respeito, não confundindo o demônio com a pessoa, e jamais reduzindo a pessoa a seu aspecto externo ou a uma realidade interna que não é parte de sua natureza básica. A possessão é vista como algo superficial, não-essencial. O santo também sabia se um possuído/insano podia ou não comungar.

Um santo não apenas detecta a existência de intervenção demoníaca, como é capaz de curar a pessoa, pelo poder de Cristo, invocando o Nome de Jesus. Em geral, faz-se o sinal da Cruz (“selo do Cristo”), usa-se óleo santo, água benta, imposição de mãos. Em poucos casos, ordena-se a saída do demônio. Em alguns casos, a pessoa era amarrada ou acorrentada, e o processo de livramento levava mais tempo (dias ou meses). No entanto, a pessoa nunca era abandonada ou mal-tratada; pelo contrário, ela tinha de participar da vida do mosteiro, tinha de rezar a Oração de Jesus, jejuar etc., e a cura vinha junto com a intercessão do santo, pois a graça circunda e acalma a pessoa, que tem a oportunidade de participar simbolicamente das virtudes do santo. Percebe-se também que a cura era facilitada se a fé daqueles que pediam o livramento da possessão (familiares e/ou amigos) fosse ardente e suas súplicas fervorosas. Os santos também procuravam produzir um ambiente de silêncio e descanso para o possesso. Há casos de livramento de possessão mesmo com o santo fisicamente ausente, nos momentos de lucidez em que a pessoa conseguia rezar.

Insanidades de origem espiritual

O autor se restringe a apenas dois tipos de insanidade, já que o assunto é melhor coberto em seu tratado sobre doenças espirituais.

a) Tristeza

Tristeza é falta de coragem, debilidade, pesar, depressão, agonia, opressão, depressão com ansiedade e angústia. Há quatro causas:

1) Reação à faculdade dos desejos (epithumia) da alma e, portanto, está ligada à concupiscência. É a frustração dos desejos, pois todo desejo está ligado a uma paixão, e toda paixão é inclinada a produzir tristeza. Pode ser prazer sensual, mas a doença, a morte, os males do mundo, a inveja, a falta de honra, e a frustração com a vida em geral também são apegos ao mundo e, portanto, são desejos não atendidos que produzem tristeza.

2) Reação à faculdade irascível (thumos) e, portanto, ligada à raiva. A raiva é um desejo de vingança, e a vingança insatisfeita produz tristeza e rancor. A tristeza vem da sensação que a raiva foi excessiva ou que foi insuficiente para produzir a reação desejada. Também pode vir de alguma ofensa. De qualquer forma, todos os casos estão ligados ao orgulho e à vaidade, ao desejo do ego ferido em se auto-afirmar. Há, assim, estreita relação com a causa (1) acima.

3) Causa desconhecida, uma angústia mental irrazoável. É quase uma acídia.

Toda tristeza tem participação de atividades demoníacas. No entanto, as causas externas são ocasiões, não causas. O demônio encontra terreno fértil e favorável mediante a participação da vontade do indivíduo, que é a verdadeira causa desse tipo de doença. A tristeza pode provocar desespero (apognosis), o que pode mergulhar a pessoa em paixões corruptíveis e, eventualmente, ao suicídio, com a participação da melancolia da pessoa. A tristeza obscurece a mente, cega a inteligência e paralisa o discernimento.

A tristeza, segundo os Padres, é tratada da seguinte forma:

(a) Desejos insatisfeitos: renúncia aos desejos e prazeres sensuais e carnais.

(b) Raiva: não adianta se afastar das pessoas que lhe despertam raiva porque a causa está no indivíduo, não nas outras pessoas; a solução é rezar pela pessoa que “causa” a raiva, já que ela é enviada por Cristo para mostrar ao doente seu amor aos prazeres e sua vanglória; se aquela pessoa desperta a raiva, então trata-se de uma perturbação, se é uma perturbação, então há aí uma doença; é, pois, necessário perdoar o ofensor e esquecer o rancor.

(c) As causas desconhecidas são, em geral, demoníacas: deve-se procurar uma pessoa espiritualmente elevada e aconselhar-se com ela.

Para todos os casos, aconselha-se meditação espiritual, isto é, a invocação de Cristo mediante a Oração de Jesus.

b) Acídia

A acídia é semelhante à tristeza. No entanto, não tem um motivo definido – o que não quer dizer que não tenha causa, que normalmente é demoníaca. A acídia é uma insatisfação generalizada e não há uma paixão que seja especialmente engendrada: ela tende a engendrar todas as paixões. Como a mente em nada se concentra, o indivíduo tende a vagar de casa em casa, sempre insatisfeito com o local onde mora, e faz amizades fúteis e descartáveis. Os monges são alvo preferencial da acídia.

O tratamento da acídia passa pela recomendação de jamais abandonar o local onde está, sob o pretexto que for. A pessoa deve se forçar a não dormir, a não se deixar tomar pelo torpor. A cura vem pela relação do indivíduo consigo próprio, e não com os outros. Um homem iluminado às vezes é necessário para a cura, mas mais como exceção. São imprescindíveis paciência, perseverança, esperança, arrependimento, compunção (as lágrimas que daí resulta são um poderoso remédio), lembrança da morte, temor a Deus. Recomenda-se também trabalho manual. Quanto à oração, deve-se lutar contra a tentação em abandoná-la, praticando regularmente a oração em salmos e, claro, a Oração de Jesus. Prostrações também são recomendadas, já que o corpo também comunica torpor à alma.

Por fim, cabe recomendar que todos os diagnósticos e curas devem ser empreendidas dentro de um ambiente cristão ortodoxo e, mesmo assim, com pais espirituais que sejam experientes e treinados para "ler" o estado psíquico do doente e conduzí-lo a uma cura real. Nenhum conselho ou prática deve ser adotado sem levar em conta esta ressalva, sob pena do doente piorar ainda mais seu estado, seja ele de origem somática, demoníaca ou espiritual.