27 de maio de 2010

O que é "palamismo"?

Recentemente, um amigo me mandou um post de um blog de um teólogo acadêmico que pensou ter refutado as doutrinas de São Gregório Palamás ao citar São Basílio de maneira completamente descontextualizada. Bem, não é a toa que a internet é chamada de "a maior revista Caras do mundo".

Ora, já que o dia de São Gregório está chegando, pensei que seria o momento ideal para darmos uma olhada na teologia dele. A primeira coisa que precisamos entender sobre o palamismo é que o palamismo absolutamente não existe. O palamismo foi inventado por pensadores católicos romanos -- não ousarei chamá-los de teólogos -- que queriam justificar sua própria heresia mediante o expediente de rotular a doutrina tradicional da Igreja Ortodoxa com alguma palavra exótica, transformando-a assim em algum "ismo" historicamente condicionado. Tudo o que São Gregório fez foi expressar a milenar doutrina da Igreja no quadro contextual da controvérsia da época, a saber, a natureza dos métodos hesicastas de oração. Por trás das discussões sobre focar o peito e enxergar luzes encontra-se uma distinção fundamental sobre a qual os teólogos ortodoxos têm versado pelo menos desde os tempos de Santo Atanásio.

Em poucas palavras, a doutrina é a seguinte: Desde o princípio, os homens têm passado por dois tipos bem diferentes de experiências com Deus. Por um lado, Deus é percebido como algo radicalmente diferente, ou seja, como um "Outro" tão distinto de nós que simplesmente não conseguimos nos referir a Ele com palavras como "ser" e "existência" de maneira perfeitamente inequívoca e direta. "Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos" [Isaías 55:8], disse o Senhor. O termo técnico que designa esse sentido da distância divina em relação a nós é "transcendência". Por outro lado, nós, homens, ou pelo menos alguns homens, também experimentaram Deus como algo que está mais próximo de nós do que nossos próprios egos. O Cristianismo é a religião de Emanuel, que significa "Deus conosco". São Pedro nos exorta para que nos tornemos "participantes da natureza divina" [II Pedro 1:4]. O termo técnico que designa essa proximidade de Deus é "imanência".

A Ortodoxia é a religião do e, não a religião do ou. Isso significa que a Ortodoxia tem, desde sempre, ensinado a transcendência inconciliável de Deus e a presença e comunhão imediata de Deus com os homens -- a ponto de Ele nos tornar participantes de Sua própria vida.

No entanto, as heresias têm quase sempre ensinado a religião do ou. Já expliquei em programas anteriores que há dois tipos de heresias. As "heresias entusiastas" são aquelas que se apegam a alguma sujeito carismático que acha que tem uma relação especial com Deus e que banca o profeta auto-ungido. Montano é um exemplo típico dessa heresia. Dizem que seus seguidores batizaram pessoas em nome do Pai, do Filho e do Senhor Montano. Joseph Smith, bem como a maioria dos carismáticos modernos, também se enquadram nessa categoria. O segundo tipo de heresia, e que é a categoria mais comum, são as "heresias racionalistas". A grande maioria dos "ismos" que afetaram a Igreja ao longo dos séculos eram heresias desse tipo -- desde o sabelianismo até o calvinismo. Porém, há uma coisa em comum nesse tipo de heresia: seus heresiarcas ensinam que a experiência com Deus deve se conformar a uma determinada estrutura racional. Em outras palavras, todos eles presumem que Deus tem de fazer sentido para nós.

Acho que fica mais fácil de entender se eu lançar mão de uma ilustração. Por exemplo, vamos considerar a doutrina da Trindade. Sabemos que, desde o princípio, a Igreja confessa sua fé no Pai, Filho e Espírito Santo, bem como batiza em Seu nome. Sabemos também que a Igreja é o novo Israel e, por isso, ensina que há um e apenas um Deus, e não três. Portanto, a Igreja confessa que Deus é Três Pessoas divinas e Um ser eterno e onipotente.

Contudo, o presbítero romano Sabélio não aceitou o e da Trindade. 1 + 1 + 1 não é igual a 1. Ora, ele queria que Deus se conformasse à razão humana e à lógica matemática. Assim, ele resolveu o dilema lógico da Trindade concluindo que as Pessoas eram apenas modos do Deus Uno, e que, apesar de desempenharem papéis distintos em momentos distintos, havia sempre o mesmo Deus por trás daquela máscara. Mais tarde, Ário enfrentou exatamente o mesmo problema. Porém, como os sabelianos haviam sido banidos da Igreja, ele teve de bolar uma solução diferente. Ário rebaixou o Filho e o Espírito ao nível de seres criados. Esse esquema mantinha intacta a unidade de Deus, mas ao mesmo tempo tornava mentirosa a experiência da Igreja. A Igreja sempre adorou Cristo como Deus. Por conseguinte, o arianismo acabou sendo rejeitado.

A função da famosa expressão homoousios do credo niceno nada mais é do que afirmar que Cristo é uma Pessoa distina da Pessoa do Pai e é consubstancial -- de mesma essência ou natureza -- ao Pai. Em outras palavras, a Trindade é trina e una.

Quanto à distinção entre essência e energias de Deus -- aquilo que os católicos romanos gostam de chamar de "palamismo", mas que está presente em toda a história do pensamento ortodoxo --, ela nada mais é do que uma convenção lingüística para afirmar a transcendência e a imanência de Deus. A doutrina da Luz incriada, que é um corolário desta distinção, afirma simplesmente que, quando os santos experimentavam a glória de Deus, eles estavam experimentando nada menos do que o próprio Deus, embora Ele ainda estivesse absolutamente oculto e intocável no que tange a Sua natureza mais íntima.

A glória de Deus, ou a graça de Deus, não são intermediários criados, mas o próprio Deus. Quando o homem participa dessa graça, ele encontra-se literalmente deificado, mas nunca, nem nesta vida nem no século futuro, o homem será transformado na natureza de Deus. Deus é participável (se é que essa palavra existe) segundo Suas atividades ou energias, mas Ele também é totalmente transcendente por natureza. Em contrapartida, o homem se torna deificado pela graça, embora permaneça criatura por toda a eternidade. Foi isto isto que São Basílio quis dizer quando afirmou que o homem é uma criatura destinada a se tornar Deus.

Todavia, as pessoas que negam tal distinção alegam que ela viola a simplicidade divina -- o que é uma maneira insincera de dizer que ela viola a racionalidade humana --, pois Deus teria de ser ou, não e. Mas a natureza divina não é, e nem poderia ser, objeto da cognição humana. Um deus que possa ser compreendido pela razão humana não é absolutamente Deus. Em suma, Deus não está sujeito às leis da não-contradição e do terceiro excluído.

Ocorre que São Gregório fez uso de um método de argumentação que São Marcos, o Monge, e outros santos utilizaram desde há muitos séculos. Ele se pergunta, retoricamente, "E se esse pessoal do ou estiver certo?" Se as atividades ou energias divinas não forem realmente Deus, mas coisas criadas, então o homem será incapaz de efetivamente comungar com Deus. Nossa relação com Deus seria puramente extrínseca. Esta é a maneira de pensar dos muçulmanos e de algumas denominações protestantes. Jamais nos tornaremos deuses pela graça, ou participantes da natureza divina, ou legítimos co-herdeiros com Cristo. Seremos apenas servos. Por outro lado, se as atividades ou energias divinas são idênticas à natureza divina, então participar delas significa, de algum modo, participar da própria natureza divina. Se levarmos esse raciocínio às últimas conseqüências, a conclusão final será inevitavelmente o panteísmo. Com efeito, o Cristianismo Ocidental tem vacilado entre ambas as conclusões ao longo dos últimos mil anos. No entanto, ambos os cenários, repetindo o que falei acima, tornam mentirosa a experiência da Igreja. Os santos sabiam que estavam experienciando o próprio Deus, e não uma criatura intermediária, mas também sabiam que esse Deus era inexaurível e inconciliável em Seu ser mais íntimo.

Por conseguinte, restam-nos duas opções. Podemos aceitar o e e os paradoxos e contradições lógicas que advêm disso, ou sacrificamos a experiência viva da Igreja no altar da razão humana decaída e conformamos Deus aos nossos padrões de racionalidade.

O verdadeiro problema aqui, conforme falei anteriormente, é o fato de as pessoas insistirem em fazer teologia com livros ao invés de fazer teologia com o cordão de oração. Não há nada esotérico, nem mesmo místico, na doutrina da distinção entre essência e energias divinas. Trata-se simplesmente do modo da Igreja preservar o e e, conseqüentemente, preservar a possibilidade de que descubramos essa verdade por nós mesmos, seguindo o caminho eclesiástico do arrependimento, da obediência e da oração.