6 de março de 2025

O valor do pobre está na necessidade


Já vimos a parábola de Lázaro e o homem rico no contexto da vida após a morte. Desta vez, vejamos quais os nove castigos da pobreza de acordo com São João Cristóstomo, que se apoia na mesma parábola:

(1) Pobreza. É algo verdadeiramente terrível pois nenhuma palavra consegue descrever a grande angústia que e suportada por aqueles que vivem como mendigos sem conhecer a sabedoria [aqui o santo provavelmente se refere ao desconhecimento da causa final da pobreza e do sofrimento, ou eja, a falta de sabedoria implica numa visão horizontal da pobreza].

(2) Doença. Muitos adoecem com frequência sem que lhes falte o necessário para a subsistência. Outros vivem em extrema pobreza, mas desfrutam de boa saúde. Um bem se torna um consolo para o outro infortúnio. Mas aqui os dois infortúnios se apresentaram juntos.

(3) Solidão. Mesmo se não está na própria casa, pelo menos em público [Lázaro] poderia receber a piedade daqueles que o veem. Para Lázaro, porém, a ausência de protetores tornou seus dois infortúnios ainda mais dolorosos.

(4) Desencorajamento. A ausência de protetores tornava-se ainda mais dolorosa ao se encontrar diante da porta da casa do rico. Ele passou a sentir uma aflição mais aguda.

(5) Percepção mais aguçada dos infortúnios. Além de tudo isso, Lázaro tinha diante de seus olhos o espetáculo de um homem rico e bem afortunado. É da nossa natureza compararmos nossa situação com a prosperidade alheia. O rico se saía bem em todos os aspectos, apesar de viver com crueldade e desumanidade, enquanto Lázaro, vivendo com virtude e bondade, sofria terríveis infortúnios. Era como se tivesse vindo ao mundo com esse exato propósito, para ser testemunha da boa fortuna alheia.

(6) Isolamento espiritual. Lázaro não podia observar outro Lázaro. Mesmo se sofremos de uma infinidade de problemas, ao contemplar Lázaro podemos pelo menos obter algum consolo e encorajamento. Encontrar quem partilha das mesmas misérias, em histórias ou em fatos, traz um grande consolo aos que vivem em aflição. Mas ele não encontrava ninguém com sofrimentos semelhantes aos seus.

(7) Achatamento existencial. Lázaro não podia encontrar consolo na ideia da ressurreição. Acreditava que tudo se resumia à vida presente, pois encontrava-se entre aqueles que precederam o tempo da graça. Não podia praticar tal sabedoria.

(8) Calúnia. A maioria das pessoas julga a vida do outro por suas dificuldades e acha que foi a iniquidade, sem dúvida, a causa de tanta miséria. Dizem entre si muitas tolices. Por exemplo, se Lázaro fosse amado por Deus, Deus não teria permitido que sofresse na pobreza nem se submetesse a tantos infortúnios.

(9) Extensão temporal. Lázaro suportou sua pobreza uma vida inteira, não apenas um ou dois dias.

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Mesmo quando não buscamos a virtude talvez sejamos capazes de obtê-la se pelo menos a louvarmos. E mesmo quando não evitamos o mal, talvez sejamos capazes de escapar dele se pelo menos o censurarmos.

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Verdade seja dita, o rico não é aquele que reuniu muitos bens materiais, mas aquele que precisa de pouco. E o pobre não é aquele desprovido de bens, mas aquele que a tudo cobiça.

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O rico costuma ser o mais pobre de todos. Se retirardes a máscara, abrirdes a consciência e entrardes na mente, encontrareis uma grande pobreza de virtude: descobrireis que ele pertence à classe mais baixa de todas.

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Realmente também é roubo não compartilhar as posses. [...] Os ricos guardam os bens dos pobres mesmo se foram herdados dos pais ou adquiridos de qualquer outra forma. [...] É por isso que Deus permitiu aos ricos ter mais: para ser distribuído a quem necessita. O homem rico é uma espécie de intendente do dinheiro que deve ser distribuído aos pobres.

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Um juiz é uma coisa, um benfeitor é outra. A caridade recebe este nome porque é praticada mesmo com os indignos. Façamos o mesmo, eu vos imploro, sem mais questionamentos do que o necessário. O valor do homem pobre está apenas na sua necessidade. [São João Maximovitch, por exemplo, foi visto vários vezes dando esmola a um notório bêbado. Questionado por que o fazia, dado que o dinheiro certamente seria gasto para sustentar seu vício, o santo respondia que ele não era melhor que o homem bêbado. Em outras palavras, o valor de ambos, santo e bêbado, reside na natureza humana, que lhes é idêntica. A transmissão da bondade pelo benfeitor, mesmo diante de uma "má necessidade", está acima da indignidade do vício. Eis a autêntica filantropia: amor e compaixão pelo próximo, a despeito de quem seja. Uma magnanimidade incomum, sem dúvida]. 

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É um grande bem ter vossas esperanças de salvação depositadas em vossos próprios atos virtuosos.

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Quando somos testados em circunstâncias difíceis, lembramo-nos dos antigos pecados.

Fonte: São João Crisóstomo, A riqueza e a pobreza, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2022.

14 de fevereiro de 2025

Breve história da aurora da filosofia: Sócrates e Platão


1. História da filosofia

É fundamental estudar a história da filosofia porque ninguém pode se dizer “culto” sem sabê-la. Trata-se de estudar as grandes criações mentais do espírito humano e formar um juízo correto a respeito delas, seja evitando condenar o que não se disse, seja repetindo erros já cometidos no passado.

A história da filosofia é a história da luta do intelecto humano para atingir a verdade por meio da razão discursiva. Como tomista, Copleston acredita que há uma philosophia perennis atemporal que permiea a história e que tal filosofia é uma espécie de “tomismo amplo”.

2. Pré-socráticos (um vs. múltiplo)

A Jônia logrou preservar o espírito das civilizações mais antigas, enquanto no restante da Grécia reinava a barbárie e o caos político. Foi ali, em Mileto, na atual Didim (costa turca do Mar Egeu), que surgiu a filosofia, o exercício da reflexão racional. Egípcios e babilônios empreenderam cálculos práticos e astrológicos, mas a ciência e o pensamento enquanto tal foram criação do gênio grego.

Copleston acredita que a percepção da mudança, aliada à intuição de que “algo” permanece, levou os jônios aos primeiros passos da filosofia cosmológica. Esse “elemento primitivo”, essa “unidade”, foi sua busca principal: os jônicos estavam convencidos de que há um império da lei no universo. Suas soluções ainda eram muito simplistas pois não eram capazes de distinguir matéria de espírito, ou seja, ora o “elemento primitivo” era material, ora ideal.

Para Tales, considerado o “pai da filosofia”, o “elemento primitivo” era a água, enquanto para Anaxímenes, o ar (mediante condensações tende a solidificar-se e mediante rarefações tende ao fogo, o que de qualquer forma reduz a qualidade à quantidade). Para Anaximandro, trata-se da uma “substância sem limites”, do apeiron. De qualquer forma, todas as doutrinas são “materialistas” no sentido de que apontam algum elemento material como primitivo, mas não são materialistas stricto sensu porque não eram capazes de distinguir matéria e espírito. Estavam, segundo Copleston, “cheios da naiveté do espanto e da alegria da descoberta”.

Quanto a Pitágoras e a escola pitagórica, houve uma combinação de espírito científico com espírito ascético-religioso. Sua devoção à matemática, em especial em encontrar, como nas escalas musicais, uma proporção em números à totalidade da natureza, é marcante. E não só isso: para os pitagóricos, as coisas são números. É claro que disso surgiu uma miríade de caprichos e devaneios. No entanto, seu cuidado para com a alma foi a maior influência que Platão colheu dos pitagóricos.

Ainda no contexto do movimento e do problema do um e do múltiplo, Heráclito proclamava a irrealidade da realidade, ou seja, nada permanece, nada é estável. Em outras palavras, a unidade está na diversidade, ou seja, o um só existe na tensão dos opostos. Então, que não se diga que Heráclito ensinava que não há um “algo” que mude. Esse um, para ele, é o fogo, que se alimenta de matéria heterogênea e é feito da tensão, da luta, da dissipação, da ardência e do desaparecimento das coisas. O mundo é um fogo eterno, e as diferenças do mundo são o próprio um. Estamos diante, claro, de um panteísmo filosófico, e os estoicos herdariam de Heráclito esta cosmologia panteísta (uma razão universal que tudo ordena). O um-fogo é chamado de Deus, e cabe ao homem manter sua alma o mais “seca” possível, ou seja, esforçar-se para que sua razão e consciência, que lhe são “ígneos”, vençam o prazer e ascendam à vigília, sob pena de o mundo do “sono” lhe tornar úmido e apagar sua “igniedade”.

Algo em contraste a Heráclito, Parmênides ensinava que o um é, ou seja, que o devir, a mudança, é ilusão. Ora, se algo vem a ser, então vem do ser ou do não-ser. Se veio do ser, então já era. Se veio do não-ser, então não é, já que do nada nada vem. Note que a rejeição do movimento implica em “ver” o que não é sensível, ou seja, é introduzir uma distinção entre razão e sensação. Essa distinção será fundamental para Platão. Mas mesmo aqui, Parmênides ainda é materialista porque a realidade que a razão apreende é material, inclusive atribuindo-lhe finitude espacial esférica. Portanto, não estamos no campo do idealismo dentro do qual Platão se inserirá, mas podemos dizer que foi Parmênides uma espécie de “pai do idealismo”.

Um de seus discípulos, Zenão defendeu Parmênides dos ataques pitagóricos mediante engenhosas reductiones ad absurdum. Por exemplo, imagine uma linha. Ou ela tem magnitude, ou não tem. Se tem magnitude, será infinitamente divisível. Se não tem magnitude, não existe. Zenão mostra, assim, que os que zombam de Parmênides são também dignos de serem zombados. O mesmo tipo de raciocínio absurdo pode ser feito quanto ao som, ao espaço, ao movimento etc. No final das contas, o que indicou Zenão é que as quantidades precisam ser contínuas para dar cabo dos absurdos que ele apresentou.

Empédocles pode, portanto, ser visto como um intermediador entre Heráclito e Parmênides. Os objetos são uma mistura dos quatro elementos (terra, água, ar, fogo), os quais não vêm a ser nem desaparecem. Antes há forças físicas e materiais ativas (amor/harmonia, ódio/discórdia) que os unem. Leucipo e Demócrito, notórios atomistas, levaram o pensamento de Empédocles adiante concebendo infinitos e indivisíveis átomos, que se movem no vácuo. Os atomistas nunca explicaram o que moviam os átomos e que força os unia. Tal explicação puramente mecânica da realidade ressurgiu na era moderna no âmbito da física-matemática. Em particular, Demócrito ensinava que as sensações têm natureza mecânica, isto é, os objetos emitem “eflúvios” ou “imagens” compostas de átomos que se imprimem na alma, ela também composta de átomos. As diferenças qualitativas não estariam nas coisas, mas nas imagens (não há qualidades secundárias, portanto). Por conseguinte, todas as sensações são falsas, já que nada nelas corresponde à realidade. Curiosamente, Demócrito advogava a felicidade como o acúmulo de gozo e a minimização de problemas, alcançando-se assim uma “alegria” da alma que corresponde à saúde do corpo. Ora, mas se os objetos e almas são um conjunto de átomos, como é possível postular a liberdade ética com tal determinismo atomista? Anaxágoras, por sua vez, não concorda com Empédocles e diz que os elementos últimos não são os famosos quatro supracitados, mas são os materiais cujas partes são qualitativamente iguais ao todo (p.ex. ouro). Os objetos do cotidiano são compostos de “uma porção de tudo”, ou seja, todos os elementos primordiais estão nos objetos, apenas que um deles predomina em relação aos demais nos diversos objetos. A grama se transforma em carne porque as partículas de carne passaram a predominar sobre as partículas de grama. E a força que mantêm os elementos unidos é o nous ou mente, um princípio infinito e autogovernado, que não se mistura com nada, embora ocupe espaço. Eis o princípio espiritual e intelectual, embora ainda tímido e confuso.

3. Sócrates e o período socrático

Do foco no objeto, cujos frutos foram incertos – além de prolongado convívio com outros povos –, os filósofos gregos voltaram-se ao sujeito. Por isso o sofismo é caracterizado pela civilização e costumes humanos, ou seja, pelo microcosmo, por temas menos especulativos e mais práticos, em especial a retórica, ou, jocosamente falando, “a arte de ensinar os homens a fazer o injusto parecer justo”. Protágoras ficou conhecido pelo dito “o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são o que são, daquelas que não são o que não são”; em outras palavras, todos os homens têm a mesma tendência ética, mas os Estados comportam variedades específicas da lei de acordo com as circunstâncias vigentes. Não há aqui um clamor ao relativismo, mas, pelo contrário, à tradição e à autoridade. Pródico ensinava que na origem da religião os homens adoravam o sol, a lua, os rios, lagos etc. como deuses. Hípias, um polímata, ensinava que a lei frequentemente forçava o homem a agir contra a natureza. Ao contrário de Protágoras, Górgias sustentava que tudo é falso porque ou é eterno (o que é impossível) ou teria vindo-a-ser (o que também é impossível, acreditava ele). Ademais, o conhecimento também é uma ilusão porque se o ser está em duas pessoas ao mesmo tempo, como é possível se elas são diferentes uma da outra? Admitindo a absurdidade da filosofia, dedicou-se à retórica.

Quanto a Sócrates, Copleston admite como mais verossímil a versão de que Platão pôs em sua boa a teoria das ideias. De qualquer forma, Sócrates foi inegavelmente o pai do uso dos argumentos indutivos e das definições universais, ou seja, da busca dos conceitos fixos. Não que ela tenha teorizado a própria indução lógica, mas fez uso da dialética (ou simplesmente “conversa”, ou, tecnicamente falando, “maiêutica”, ou seja, como uma “mãe” que gera ideias verdadeiras na mente alheia), que partia de definições menos adequados às mais adequadas e universais (é a indução). Mas não nos enganemos: Sócrates não buscava apenas a verdade em si, o que certamente já é algo louvável, mas também a “vida reta”.

A sua “ironia”, pois, a sua profissão de ignorância, era sincera; ele não sabia, mas queria descobrir, e queria induzir os outros a refletir por si próprios e dedicar verdadeira meditação à obra supremamente importante de cuidar de suas almas. Sócrates estava profundamente convencido do valor da alma, no sentido do sujeito pensante e volitivo, e viu claramente a importância do conhecimento, da verdadeira sabedoria, caso se quisesse dar a atenção devida à alma.

Copleston aponta em Sócrates uma tendência à superintelectualidade, isto é, uma tendência a acreditar que o homem, quando sabe o que é certo, certamente irá fazer o que é certo, como se conhecimento e virtude fossem uma e a mesma coisa. Bem, isso é falso, como bem apontou Aristóteles em sua crítica a Sócrates. O médico aprendeu medicina, mas não necessariamente o justo aprendeu o que é justiça. [Martín Echavarría acusa os adeptosda REBT/CBT de assumirem tal postura socrática robótica]. A alma obviamente conta com partes irracionais, e o consentimento da vontade sofre influência não somente do intelecto, mas dos apetites sensíveis da alma. De qualquer forma, Copleston não deixa de notar que a ética de Sócrates permanece uma das glórias perenes da filosofia grega.

Por fim, cabe comentar acerca de alguns filósofos que, influenciados pessoalmente por Sócrates, continuaram seu pensamento em uma direção muito particular. São, por isso, chamados de socráticos menores. Euclides de Mégara (não confundir com o famoso matemático) concebia o um com o bem, identificando-o com Deus e a razão. Diodoro Crono identificava o atual e o possível, e disso extraía uma curiosa conclusão: só o atual é possível; então, por exemplo, se dissemos que é impossível que o mundo não exista, então jamais foi possível que o mundo não existisse. Antístenes, um dos filósofos cínicos (Copleston os inclui entre os socráticos menores), foi discípulo de Górgias antes de voltar-se a Sócrates. O traço que herdou de Sócrates foi sua independência da opinião pública vigente, seu desprendimento do aplauso alheio. Isso estaria muito bem não fosse por um detalhe: a ânsia de Antístenes por independência o fez desprezar a ciência e a arte, dedicando-se exclusivamente ao desprendimento dos desejos e à libertação das carências. Sócrates também zombava da opinião popular, mas não o fazia por ostentação, mas por fidelidade à verdade. Diógenes de Sinope, famoso cínico, chamava-se de “cachorro” (daí o nome “cínico”) e defendia a vida dos animais como um modelo a ser seguido, inclusive partilhando esposas e filhos e pregando o amor livre, zombando das convenções. Aristipo de Cirene defendia a ideia de que somente as sensações dão conhecimento certo e, portanto, o objetivo da vida é obter sensações prazerosas. Sócrates de fato ensinava que a felicidade é o motivo da virtude, mas não que o prazer seja o caminho exclusivo à felicidade.

4. Platão

a. Epistemologia. Conhecimento não é simplesmente percepção pelo simples motivo que o conhecimento usa termos e expressões que não são de maneira alguma perceptíveis (por exemplo, uma miragem, objetos matemáticos, o caráter de uma pessoa etc.). Ademais, a percepção sensível necessita da reflexão e do juízo para que faça sentido (por exemplo, os trilhos de uma via ferroviária perceptualmente convergem, mas mediante a reflexão sabemos que não). A percepção sensível capta somente aquilo que vem a ser, não aquilo que é. É por isso que um juízo pode ser verdadeiro sem que tal verdade dependa de alguém que forme o juízo. Por outro lado, analisar as partes de uma crença não a transforma em conhecimento (p.ex. enumerar exaustivamente as partes de uma carroça não significa conhecê-la). O conhecimento verdadeiro tem de ser estável, permanente, fixo, capaz de ser apreendido por uma definição clara e científica, por uma definição universal.

Os famosos níveis de conhecimento de Platão, elencados na República, são esquematicamente os seguintes:


No lado esquerda da linha central estão os estados da mente, enquanto no lado direito estão os objetos que lhes correspondentem. Ao mesmo tempo, na parte superior temos o estado de episteme (conhecimento), que se preocupa com arquétipos, enquanto na parte inferior temos a doxa (opinião), que se preocupa com imagens. Por exemplo, se alguém diz o que é a justiça com base em casos particulares então estará em estado de doxa, ao passo que se explica com base na apreensão da justiça em si mesma, se erguendo à forma, à ideia, ao universal, então estará em estado de episteme (ou gnosis). Mas há duas subdivisões em cada estado: a eikasia se refere à imagem do que é, enquanto a pistis se refere aos objetos reais, aos “animais ao nosso redor, e todo o mundo da natureza e da arte”. A dianoia é o pensamento empreendido com a ajuda da imitação dos segmentos inferiores e que começa por hipóteses e termina numa conclusão (é claro que aqui Platão se refere à matemática e à geometria quando, por exemplo, fala de dois círculos que se interseccionam, que evidentemente são círculos inteligíveis, não sensíveis). Por fim, a noesis usa as hipóteses da dianoia para dialeticamente (ou seja, sem imagens) ascender aos primeiros princípios e, por conseguinte, “destruir as hipóteses”. Toda esta ascensão, desde as imagens até os primeiros princípios, Platão a ilustra no famosíssimo mito da caverna (leia-o aqui)

b. As formas platônicas

Platão explica na República que toda pluralidade de coisas individuais implica em uma ideia ou forma correspondente, que é a natureza captada pelo conceito. A realidade, portanto, não é captada propriamente pelos sentidos, mas pelo pensamento. As formas são descobertas, não inventadas, e mais: todas as formas, ideias, essências, têm de ter uma essência genérica suprema. De qualquer forma, Copleston entende que Platão, embora tenha usado uma linguagem espacial para referir-se às formas, não queria dizer que elas existissem num espaço separado das coisas. Platão, aliás, frequentemente faz isso: usa uma linguagem “mítica” por meio da qual não pretende que seja tomada com absoluta exatidão.

Como bem observou Constantine Cavarnos em seu Orthodoxy and Philosophy, Platão não indicava que as formas existam na mente divina, mas no Timeu lemos que tampouco existem no Demiurgo. Eis porque apontar em Platão algum teísmo seria temerário.

Na República o bem é comparado ao sol, cuja luz torna os objetos visíveis, lhes conferindo excelência, valor e beleza. Assim também é o bem, que não é apenas um princípio epistemológico, mas ontológico, um princípio do ser. O bem na República é idêntico à beleza do Banquete. Portanto, o absoluto é ao mesmo tempo imanente (pois as coisas o materializam, o “copiam”, o manifestam) e transcendente até o próprio ser. As metáforas de participação (methesis) e imitação (mimesis) precisamente indicam essa distinção entre absoluto e relativo, mas ao mesmo lhes conferem certa comunicação. Mas como explicar que algo transcenda absolutamente os objetos de conhecimento e ao mesmo tempo “esteja” neles? Platão não escreveu nada sobre a doutrina integral do Um. Os neoplatônicos mais tarde introduzirão a emanação como explicação (a “centelha divina”), mas é inaceitável deduzir que tal doutrina encontrava-se originalmente em Platão. O mais provável, raciocina Copleston, é que Platão tinha em mente que os ideais de justiça, temperança etc. estejam fundados no princípio absoluto do bem, mas não parece possível afirmar que a razão divina é o “lugar” das ideias.

Resta tratar de um assunto espinhoso: a relação das formas com os números. Copleston – e estou plenamente de acordo com ele nisso – não esconde seu aborrecimento em lidar com isso porque se trata do “tema mais infeliz” da filosofia de Platão. Em suma, o motivo de Platão para identificar as formas com números parecer ser o de encontrar o princípio de ordem do misterioso e transcendental mundo das formas. É como se houvesse um esquema por trás da inteligência dos corpos naturais. Os corpos não “são” números, mas “participam” dos números porque, claro, comportam um elemento contingente que não tem nada de “matematizável”. Platão explica, de maneira um tanto críptica, que há uma tríade de números que provê a proporção dos triângulos que compõem o mundo corporal: no caso do triângulo isósceles é  1, 1 e √2, e no caso do triângulo escaleno é 1, √3 e 2. Observe que há em ambos um elemento irracional que precisamente expressa a contingência nos objetos naturais. A “ilimitação” da irracionalidade parece se identificar com o elemento material, o elemento de não-ser, presente em tudo o que vem a ser. Copleston identifica certo casamento entre o idealismo e a pan-matematização platônicos: ambos se apoiam no sentido de que a matemática ajuda a “elevar” o pensador para encontrar a verdadeira realidade e ser da natureza no mundo ideal.

c. A psicologia platônica

Platão é claramente um dualista: a alma é distinta do corpo, embora ambos se comuniquem. Em seus diálogos, por exemplo, encontramos a admoestação a rejeitar certos tipos de música para que não prejudiquem a alma, a afastar-se de hábitos corporais viciosos para que não escravizem a alma.

A alma seria tripartite: partes racional, irascível e apetitiva, essas duas perecíveis. Embora no Fedro e na República se diga que a alma como um todo sobrevive, parece provável que só a

racional sobreviva efetivamente (as demais partes permanecem como potencialidades).

Por que Platão afirma a natureza tripartite da alma? Principalmente em razão do fato evidente do conflito interno da alma. No Fedro ocorre a célebre comparação na qual o elemento racional é relacionado a um cocheiro, e os elementos irascível e apetitivo a dois cavalos. Um cavalo é bom (o elemento irascível, que é o aliado natural da razão e “ama a honra com temperança e modéstia”), o outro é mau (o elemento apetitivo, que é “amigo de toda revolta e insolência”); e, enquanto o cavalo bom é facilmente dirigido de acordo com os comando do cocheiro, o cavalo mau é indisciplinado e tende a obedecer à voz da paixão sensual, de maneira que precisa ser detido com o chicote.

d. Ética

Platão é eudemonista, ou seja, sua ética é voltada à busca do mais alto bem, isto é, da felicidade. E em que consiste a felicidade para Platão? Consiste no desenvolvimento da personalidade enquanto ser racional, no correto cultivo da alma, no bem-estar geral e harmonioso da vida. Platão admite, claro, que a satisfação do desejo, desde que sejam desejos inocentes e usufruídos com moderação, é parte da felicidade. No entanto, os mais elevados prazeres são aqueles que não são antecedidos de dor, ou seja, dos prazeres intelectuais.

O summum bonum ou felicidade do homem inclui, claro, o conhecimento de Deus – o que é óbvio, já que as formas são as ideias de Deus; contudo, se o Timeu for tomado de maneira literal e se supor que Deus está separado das formas e as contempla, a contemplação das formas pelo próprio homem, que é um componente integral de sua felicidade, o tornará similar a Deus. Mais ainda, homem algum poderá ser feliz a menos que reconheça a ação divina no mundo. Platão pode dizer, por conseguinte, que a felicidade divina é o padrão da felicidade do homem.

Diz Platão, portanto, que “os deuses devotam cuidado àquele cujo desejo é se tornar justo e ser como Deus, tanto quanto pode o homem alcançar a semelhança divina através da busca da virtude”. No entanto, somente o filósofo pode ser virtuoso porque somente ele detém o conhecimento necessário do que é o bem para o homem. É ele, o filósofo, que possui o conhecimento exato para nos guiar à virtude. Por isso o homem vulgar escolhe o mau: ele não sabe que o mau lhe prejudica e, assim, eleva determinado aspecto do mau, mesmo sabendo que em si é mau, à condição de bem e a ela se apega.

e. Política

Platão ensina que não há uma “moral estatal” acima da moral individual. O homem, por ser um animal social, se organiza socialmente e tal sociedade, portanto, é uma instituição “natural”. Ora, se é assim, as “morais” estatal e individual são uma e mesma moral: a moral humana. Eis por que Platão entendia que era coisa imperativa determinar a verdadeira natureza e função do Estado.

Na República, em suma, Platão estabelece três classes no Estado ideal: artesãos na base, a classe auxiliar ou militar logo acima e os guardiões (ou guardião) no topo. A família e a propriedade privada devem ser abolidas nas duas classes mais altas para o bem do Estado. Dada a evidente dificuldade em organizar tal Estado, “Sócrates” propõe como medida mínima investir o rei-filósofo de poder: é ele, que conhece o mundo das formas, que poderá tomá-las como modelo para a formação do Estado. A educação daqueles escolhidos como governantes terá por base a harmonia musical, a ginástica, a matemática e a astronomia. A matemática em especial, como já dissemos acima, terá a função de atrair o educando à verdade para aque adquira o espírito da filosofia. Contudo, a matemática é um mero prelúdio à dialética, cujo fim será alcançar a visão intelectual com o auxílio exclusivo da razão. O Estado, vê-se, não serve a uma classe, mas para o guiamento da vida reta: diz Platão que “todo o ouro que está sob e sobre a terra não é bastante para trocar pela virtude”. Até mesmo a classe escrava, inferior às três classes que mencionamos, deve ser tratada com ainda mais justiça e, explica Platão mui inteligentemente, pois quem reverencia a justiça e odeia a injustiça descobre que a essa classe se pode ser facilmente injusto.

Fonte: Frederick Copleston, Uma história da filosofia, Editora Ecclesiae, Campinas, SP, Brasil, 2021.

18 de janeiro de 2025

Breves notas sobre o ser


Assim como numa luta os movimentos só são possíveis graças à estabilidade do chão, que lhes dá sustentação, assim também o movimento (passagem da potência ao ato) só é possível graças a algo imutável, isto é, ao ser. A liberdade experimentada por um lutador só é possível graças ao chão: é ele que permite ao lutador explorar suas potencialidades. O ser humano, para florescer suas potencialidades e ganhar liberdade, também precisa desse “chão”: o ser, a ordem ontológica estabelecida por Deus.

As potencialidades do ser humano são como as cores, enquanto o ser é a própria luz. Quando as criaturas realizam seu ser elas estão realizando uma perfeição divina por participação. Negar o ser é como um peixe negar a existência da água. Deus não apenas doa o ser do nada às criaturas, mas ele as sustenta e conserva. Essa sustentação é uma continuação do ato da criação. Entre o nada e o ser há um abismo infinito, e transpor este abismo é necessária uma força infinita.

A criatura tem vários níveis de atualidade. O mais superficial é, por exemplo, no caso de um gato, sua cor, pelo, tamanho etc. Há um nível mais profundo, que é sua "gatidade" (a forma substancial, assim como no homem é sua "humanidade"), que é a raiz do nível mais superficial. No entanto, há ainda um nível mais profundo, que é aquilo no qual enraíza-se todas as criaturas: é o actus essendi, o ato de ser, o ser. O ser é o mediador (ponto de contato) transcendental da causalidade divina, ele é o primeiro princípio imanente de todos os entes. É ele que concentra toda a energia ontológica a partir da qual a criação se sustenta; é como se Deus estivesse “empurrando” a criação pelo ato de ser.

A diferença entre a criatura e Deus é que Deus é o Ser Subsistente, ele é Ser por essência, enquanto a criatura tem ser limitado por uma essência. No homem, o ser se distingue de sua essência, enquanto em Deus a essência é o Ser coincidem. O ser é dado ao homem, e ele não pode fazer nada em relação a ele. No entanto, embora o vínculo ontológico não possa ser rompido, o homem é capaz de moralmente romper tal vínculo, atrofiando as potencialidades que naturalmente tem para a realização de seu ser. Todo ser quer comunicar-se, todo ser quer florescer. Isso se observa nas plantas e animais, por exemplo. No homem, a inteligência e a vontade são as potências de sua alma que devem prioritariamente ser realizadas. Urge ao homem passar da potência ao ato, irradiar seu ato de ser, propender à sua plenitude. Trata-se de uma tendência estrutural e ontológica. O homem precisa aceitar a realidade, dizer sim a ela, para que possa estabelecer sua orientação diante do ser a partir da aceitação da verdade e do bem.

Mas como exercer o ser no mundo? Como organizar a vida humana para realizar-se, isto é, para a felicidade? Toda vida humana dá testemunho do anseio de alcançar a felicidade. Isso já vimos extensamente nas inúmeras postagens sobre amor, felicidade, aperfeiçoamento da alma, psicoterapia etc. O desejo humano de conhecer, a “perplexidade” ou “espanto” anunciado por Aristóteles, é precisamente o que lhe empurrará a conhecer seu fundamento, seu propósito, aquilo que lhe orientará diante da realidade. As questões fundamentais que a inteligência encontra lhe darão uma bússola que orientará o homem para o exercício de suas potencialidades, para sua afirmação no mundo. A metafísica - não a matemática, não a física, não a biologia - é a ciência que apresentará à inteligência o ser e por conseguinte apetecerá a vontade a buscá-lo em amor.

Ora, para o leitor deste blog não restará dúvida do que estamos falando: o homem tem um fim último, uma orientação verdadeira. Como só há uma verdade (o Cristo, evidentemente, o “chão”), então há só uma orientação verdadeira. Como só há um Deus (novamente, o Cristo, o “chão”), então há só um fim digno ao homem, um único “sumo bem”. Uma falsa orientação tolherá o livre desenvolvimento das potencialidades humanas. É como uma camisa de força.

Cumpramos, pois, nosso dever: desenvolver as virtudes intelectuais e morais que nos permitirão, por analogia, participar da vida do Ser nesta vida e nos séculos dos séculos.

14 de janeiro de 2025

Psicologia em 3 atos


Eu elogio a vida. Não a que levo, mas aquela que sei dever ser vivida. (Sêneca)

1. A pergunta fundamental

A filosofia é a base para o estudo da mente. É ela que fará – e tentará responder – a pergunta fundamental: o que sou eu?  Esse “eu” age de acordo com aquilo que o sustenta, de acordo com aquilo que lhe dá um sentido, um fim. O mito de Ésquilo de Prometeu (aquele que tem “antevisão”) e de seu irmão Epimeteu (aquele que tem “pós-visão”) conta a criação do mundo. Epimeteu criou os animais, mas não tinha mais nada para atribuir ao homem. Prometeu vai ao Monte Olimpo e rouba o fogo dos deuses, dando aos seres humanos a capacidade de cognição e entendimento da realidade.

A partir desse mito se pode compreender que a existência humana não é exatamente uma tragédia, como a expressão “tragédia grega” poderia sugerir, mas um “drama”, ou seja, um ambiente ou espaço dentro do qual devemos exercer o “fogo dos deuses” e cumprir a obrigação de nos aperfeiçoar, de nos desenvolver, e alcançar o mais que possível o estado para o qual fomos criados.

No diálogo A Apologia de Sócrates, Platão mostra ao leitor a imortalidade da alma e, mais do que isso, que o processo que o levou a descobri-la é a busca pela verdade. Essa mesma verdade é aquela buscada pelo “fogo dos deuses” roubado por Prometeu.

2. O apogeu

Na história humana, o apogeu foi a encarnação de Jesus Cristo, o Verbo. Em nossas vidas também há de haver um apogeu, mas isso depende da resposta a esta pergunta fundamental: qual a vida que você deseja viver?

Em seu Da Tranquilidade da Alma, Sêneca, motivado pela ética estoica, procura ensinar o viver bem, o viver uma vida bem vivida, uma vida que se aproxime da perfeição humana. Segundo Sêneca, essa vida bem vivida, essa “vida tranquila”, só é possível alcançá-la mediante a integração de todas as faculdades da alma, numa unidade em equilíbrio.

Tomás de Aquino, por seu lado, desenvolve com base na metafísica aristotélica o conhecimento acerca das paixões da alma. “Paixão”, como se sabe, é aquilo que a alma recebe do exterior, ou seja, aquilo que lhe sobrevém (sentir) e a modifica (compreender). A paixão, portanto, está no plano da afetividade, da “receptividade” do que vem de fora, e repercute na alma em forma de carência e desejo. A paixão é mais própria da potência sensitiva do que intelectiva, pois é a parte sensitiva que provoca mudanças corporais.

Os sofrimentos estão relacionados com o modo como nós nos afetamos (eis a paixão) pelas nossas vivências. A psicologia, portanto, lida com os movimentos da pessoa humana. As paixões, portanto, podem ser as centelhas que vão mover a pessoa a buscar bens – não bens materiais, mas bens imateriais.

3. O declínio

Em sua Sabedoria dos Antigos, Francis Bacon recorda personagens dos mitos da antiguidade clássica e os usa como fonte de inspiração para tratar 4 temas que lhe são caros: a distinção entre filosofia e teologia, o lugar do materialismo naturalista, o lugar do método científico e o realismo político. Embora seus temas tenham sido uma tentativa genuína de recobrar as verdades descobertas pelos antigos e medievais, fato é que, com ele e Descartes, inicia-se o período moderno, e as sucessivos erros causados pelas sucessivas revoluções. 

Por outro lado, Romano Guardini foi capaz, em meio às turbulências do mundo contemporâneo, de refletir e conceber o conceito de encontro. O encontro é aquilo que marca o homem, ao passo que o mundo é o lugar no qual se dão os encontros. São eles, os encontros, que permitem a relação do homem com a bondade e a verdade. O declínio do mundo contemporâneo é marcado pela destruição, ou pelo menos obstaculização, dos encontros que permitem tal engajamento espiritual.

Fonte: Paulo Pacheco, Psicologia em 3 atos, YouTube, 2024.


23 de dezembro de 2024

A metáfora topológica


Uma maneira inteligente, e mais adequada a nosso tempo, de apresentar uma analogia à Trindade é brevemente delineada por Joseph P. Farrell. Aqui algumas notas da leitura mescladas com observações pessoais.

(1) Farrell foi cuidadoso ao distinguir espaço adimensional do "vácuo" espacial (o "vácuo" que se aprende na escola, que obviamente não é vácuo).

(2) Por isso a representação gráfica e só um apoio imaginativo à explicação, o que ele fez bem em deixar claro ao referir-se à distinção como we cannot assign any real dimensionality to any of the entities thus distinguished.

(3) Essa metáfora é mais pertinente do que a velha metáfora da luz usada pelos medievais porque, hoje sabemos, o sol não é feito de luz.

(4) As três distinções oddly enough compartilham o mesmo hiperconjunto vazio Ø. Lembre-se, são distinções adimiensionais, aespaciais, atemporais, aformais, "a-tudo".

(5) Nos Vedas, Vishnu se diferencia em três, embora Vishnu seja uma dessas diferenciações. Impossível não notar uma semelhança com a Trindade, na qual o Pai (monarquia, princípio único) se diferencia em três, embora o Pai seja uma dessas diferenciações (hipóstase). Vishnu, assim com o Pai, tem a função de unir os opostos (Brahma/Shiva, Filho/Espírito). No entanto, não é explícito, na doutrina trinitária cristã, que o Pai possa ser impessoal, como o é nos Vedas, embora na versão ocidental tomista haja uma visão beatífica da essência divina, algo impessoal portanto.

(6) As pessoas, nos Vedas, são associadas às suas funções, o que pode gerar a tentação de reduzir a pessoa à sua função. No entanto, Farrell observa que é impossível atribuir ao hiperconjunto vazio original seja uma essencialidade, seja uma pessoalidade.

(7) Ora, a metáfora védica pode apresentar dois tipos de leitura: a "fecundidade" de Vishnu para com a criação (cuja "resolução" se dá pela ascese intelectual) ou o "endividamento" da criação para com Vishnu (cuja "resolução" se dá pelo sacrifício).

(8) O problema é que a expressão matemática da metáfora topológica não permite a segunda leitura. Não existe nenhuma conexão lógica entre diferenciação e sacrifício, e tal conexão é uma distorção da metáfora topológica em termos religiosos: a dívida da "culpa", do "pecado" etc.

É claro que ainda fica aquela velha "pulga atrás da orelha": quem disse que metáforas matemáticas, abstrações de segunto grau que são, podem servir como descrições metafísicas, que são abstrações de terceiro grau? Claro, trata-se de uma analogia, e com tal tem de ser vista.

Fonte: Joseph P. Farrell, Financial Vipers of Venice, Feral House, Port Townsend, WA, EUA, 2010, capítulo 2, seção B.

18 de dezembro de 2024

Temas de ontologia em Mário Ferreira


Visão geral do ser

Ao versarmos sobre ontologia (isto é, metafísica geral), é necessário antes entendermos que ontológico é tudo aquilo que se refere ao ser em geral, ao seu logos, enquanto ôntico é aquilo que se refere ao ente determinado, ao fato de ser. O ser ontologicamente é um e ônticamente é múltiplo.

Uma das perguntas fundamentais da ontologia é precisamente por que os seres que existem existem? Tudo muda, é verdade, mas o que muda é algo que muda, algo firme, estável, fixo. O ser não se explica, o ser não se define. O ser é nossa própria experiência, está dentro e fora de nosso pensamento. É o conceito mais claro e límpido que nos pode surgir.

O ente, por outro lado, é o que tem ser, o que é. Do ente podemos dizer aquilo que é, o “fundo” do ser, o que logicamente define o ser (a essência) e o fato de ser (a existência). Estão ambos incluídos no ser, são os modos de ser. O conceito de ente é transcendental porque podemos predicá-lo de qualquer coisa, seja singularidade, seja particularidade, seja universalidade.

Esquecemos, no entanto, o mais importante: é que o ser não é apenas um conceito, e se dele, conceitualmente, há pouco a dizer, se dele silenciam os nossos esquemas intelectuais, dele fala, palpitante, expressiva, toda a nossa afetividade, toda a nossa consciência, tudo quanto em nós é ato, atividade, desejo, promessa e certeza. [...] Essa presença do ser nos cerca e nos inclui. Dele não podemos evadir-nos, nem o podemos negar, mesmo quando tentamos negá-lo. Antecede-nos e sucede-nos, e sentimo-nos como testemunhas afirmativas dele. [...] O ser é a voz do ser que fala em tudo.

Inevitável não se lembrar do verso bíblico Porque nele vivemos, e nos movemos, e somos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração. (Atos 17:28)

Curiosíssima os três modos de ser apresentados por Mário Ferreira no tocante ao tempo. O devir, ou seja, o vir-a-ser, é um modo de ser do presente, um ato híbrido. O modo de ser do passado é epimeteico e o modo de ser do futuro é prometeico. Ambos, epimeteico e prometeico, são. O tempo “está” no ser. Um trecho críptico de Mário, que parece conferir ser, ou modo de ser, ao tempo. Em outras palavras, parece que o tempo não é apenas uma medida do movimento (o tempo relativo), mas é também absoluto como “presença no ser” [sic]. No mínimo curioso.

As propriedades do ser

O que é próprio de uma coisa são seus acidentes necessários, ou seja, acidentes que também podem ser encontrados em outros entes, mas no caso do ser lhe são necessários, embora não lhe sejam essenciais. E quais são os acidentes necessários do ser? A unidade, a verdade, o bem (“valor”, como o chama Mário), a inteligibilidade e a similitude, entre outros.

Estas propriedades, ou transcendentais, são convertíveis, ou seja, são análogos, pois ora são unívocas, ora equívocas, sem ser exclusivamente nem uma nem outra. Veja-se, por exemplo, o caso do bem (“valor”): a bondade em si todo ente tem, mas a bondade relativa, ou seja, a bondade para outro, todo ente pode (i.e. tem potencial) para ter, segundo os planos. Há uma “coerência da tensão” aqui, como diz Mário (para entender melhor o conceito de “tensão” consulte sua Filosofia Concreta.

Quanto à inteligibilidade do ser, Mário a justifica da seguinte forma, apoiando-se em Duns Scot:

Em primeiro lugar, o ser é verdadeiro, pois a sua falsidade seria o nada absoluto. Ora, o nada absoluto é ininteligível; portanto o ser é inteligível, pois é o seu contrário. Por ser inteligível o ser, não se conclui ainda que nós, homens, possamos inteligi-lo exaustivamente, mas apenas proporcionalmente à natureza humana.

A distinção formal em Duns Scot

O leitor deve se lembrar que Duns Scot, tal como mencionado por Edward Feser aqui, não se limita a apontar a existência apenas de distinções reais e lógicas, mas também as distinções formais.

Considere, por exemplo, a distinção, no homem, entre sua animalidade e sua racionalidade. O leitor verá que os tomistas, tal como a expõe Feser, a consideram uma distinção lógica do tipo virtual, ou seja, uma distinção lógica que tem algum fundamento na realidade. O problema disso, explica Mário, é que considerá-la virtual significa que as formalidades só podem ser elaboradas pela nossa mente (isto é, sem uma mente que a elabore a formalidade não poderia existir).Isso é falso, e tanto é assim que o realismo moderado, uma doutrina cara aos tomistas, cairia por terra. Sim, pois se as formalidades existem apenas nas mentes humanas – mesmo que cum fundamento in re como dizem os tomistas – forçosamente concluiríamos elas são meros nomes: cairíamos no nominalismo. Os escotistas não negam, portanto, o realismo e, pelo contrário, o fundamentam no paralelismo entre a ordem gnosiológica e a ordem ontológica. Em outras palavras, o esquema concreto é a existencialização da essência e, por isso mesmo, tem realidade, e dele se constroem os esquemas noético-abstratos (em sua Filosofia Concreta, Mário a chama de “eidético-noético”).

A univocidade do ser em Duns Scot

A analogia se justifica pelo fato do ser finito ser tão dessemelhante ao Ser infinito. Dessa forma, caberia apenas falar em analogia de proporção. É curiosa a relação que Mário estabelece entre incomensurabilidade de Deus e o mundo com a incomensurabilidade entre o diâmetro e a circunferência (π, ou seja, 3,141592653...).

Mas, segundo Duns Scot, o primeiro objeto do conhecimento humano é o ser, ou seja, não é o ente nem a essência, “porque tudo quanto conhecemos é, e por estar o ser presente em todo o nosso conhecimento, dele partimos para a ele chegar”. O ser é sempre ser, e por isso Scot afirma a univocidade do ser. Não existe isso de um ente ter “mais ser” ou “menos ser” que outro porque isso implicaria que haveria uma “fonte de ser” alternativa ao próprio ser.

No entanto, cabe aqui uma nuance. Para Scot, o ser é unívoco, sim, mas quando se refere à essência. Não é unívoco quanto às determinações do ser, nem quanto aos transcendentais. O que ele quer dizer com isso é que as diferenças últimas do ser (ato, potência) são apenas determinações do ser, enquanto os transcendentais (unidade, verdade etc.) são as propriedades do ser. Ora, nas determinações e propriedades não cabe univocidade porque o ser não pode diferenciar o ser enquanto ser. Explicando melhor: o ser ou está em ato, ou está em potência; não posso dizer que o mesmo ser tem ser em ato e ser em potência. Não faria sentido isso.

Para ser claro, a univocidade do ser de Duns Scot não é univocidade assim. Ora, se nas determinações e transcendentais não cabe atribuição de ser, se, por exemplo, este celular é também outro que constitui o que Mário chamaria de “esquema de celular”, então cabe aí uma síntese de diferenças e semelhanças. A síntese de diferenças e semelhanças é...analogia.

Ora, então se o ser é unívoco, o ente é análogo em suas determinações (modalidades).

Se nos colocamos do ângulo do esquema eidético, tem razão Duns Scot ao afirmar a univocidade; mas, fundando-nos no empirismo, de onde parte a análise tomista, tem Tomás de Aquino razão de afirmar a analogia.

Não há aí contradição que não permita uma coerência dialética entre os dois pensamentos, e a disputa entre tomistas e escotistas peca por nenhuma das partes considerar que o ponto de partida de cada uma é diferente, com consequências diferentes, mas que se harmonizam dialeticamente.

Partindo do ser concreto [este celular em potência e ato], temos que afirmar a analogia: partindo-se do esquema noético-eidético [ideia de celular], alcança a univocidade.

Em suma, Tomás parte da univocidade do ente e chega à analogia do ser, enquanto Scot parte da univocidade do ser e chega à analogia do ente.

O nosso cosmos não nos revela a ordem do ser, mas apenas aquela que nossos esquemas podem captar. Portanto, não nos admiremos de mistérios. O que nos cabe é construir esquemas que nos habilitem a penetrar e realizar a mistagogia, a penetrar nos mistérios (desenvolvimento do intellectus viatoris [intelecto do viajante] dos escolásticos), para obter a iluminação que melhor nos revele a verdade.

As relações

A relação é uma das categorias de Aristóteles, e seu status ontológico é dos mais tênues, inferiores. Uma relação, para que tenha realidade, depende da realidade do fundamento que a sustenta. No entanto, uma vez que ganhe realidade (embora não “concretude”, à moda de Mário Ferreira), a relação revela uma mudança qualitativa, que se não se dá nos elementos componentes, certamente se dará na própria relação, que leva ao surgimento de um novo estado, uma nova distinção, a da totalidade, além de a totalidade das partes.

Note, por exemplo, o ângulo que se forma no encontro de duas retas. Ou na molécula de água que se forma da conjunção de um átomo de oxigênio e dois átomos de hidrogênio. A possibilidade da água foi atualizada pela relação dos átomos.

A relação é, nas palavras de Mário, “um estado com o germe do esquema”. Elas não se hipostasiam, mas elas se concretizam com os elementos que as fundamentam. Em outras palavras, elas são reais, embora, em si, não sejam concretas, muito menos hipóstases.

As ideias

E cabe observar que as ideias são também uma relação. Leiamos o que diz Mário Ferreira:

As coisas, pertencentes ao mundo objetivo, têm posicionalidade no tempo e no espaço, e elas têm, por sua vez estrutura, a qual implica a primeira.

Os objetos ideais, enquanto ideais, têm posicionalidade no tempo psíquico, onde se estruturam como esquemas, num eu de posicionaliade tempo-espacial.

Os esquemas abstratos são sem existência no mundo exterior, enquanto tais, mas com referência ao objeto, pois, como já vimos, se nem o esquema abstrato de nada pode excluir a objetividade para ser pensado, muito menos as ideias de possíveis.

Mas esses objetos ideais não são subsistentes de per si, como separados na ordem universal, que os contém em potência ou em ato.

O mundo das ideias platônicas não é como frequentemente se julga, algo que se dê topicamente fora deste, em sentido espacial. As ideias não têm topicidade, mas têm a significabilidade das coisas que as apontam, como símbolos que são estas.

Por isso, uma ideia, a de bem, por exemplo, pode ser captada por vários atos de pensar, sendo ela sempre o mesmo pensamento, desde que não consideremos o que há de hilético, de empírico, de fático, que a ela se junta, na experiência individual.

Os objetos metafísicos não são entidades que se possam hipostasiar como subsistentes de per si, mas como subsistentes na ordem do ser (ontológico). Elas constituem a idealidade real do ser e são afirmadas pela realidade ideal deste.

Os modos

A exemplo das relações, os modos também são seres mínimos, de intensidade mínima. São modos de ser, por exemplo, a dependência do efeito à causa, a união das partes de um todo, o deslocamento da Terra em torno do Sol etc. Qualquer modificação de um ente real é um modo, que é sempre atual, ôntico, de consistência física. Os modos nos fazem lembrar a operação da potência cogitativa: reagimos não apenas às coisas que se nos apresentam, mas a “algo mais” que nelas está associado. Por intuição estimativa captamos o ser e seus modos, embora, claro, tal potência possa ser educada e aperfeiçoável nos homens a ponto de elevá-la de mera estimação à cogitação, mas isso é outro assunto. O que importa aqui é que os modos são inseparáveis do ser que modifica e, embora haja entidade neles, não há ensidade (termo de Mário), ou seja, são seres “inalienados” porque têm subsistência em outro (in alius).

Aqui cabe não confundir modo com acidente. Os acidentes têm consistência ontológica própria, ou seja, onticamente independem da substância. Os modos, por sua vez, têm consistência meramente ôntica. Isso significa que os modos revelam a imperfeição dos entes quanto considerados onticamente, mas não revelam a imperfeição do ser ontologicamente. Vimos em Edward Feser, na mesma postagem citada acima, que os tomistas consideram os modos de ser como uma distinção real menor (união, dependência, presença, inerência, determinação efetiva etc.).

 Tomemos como exemplo a água, cuja combinação decorre da união de partes. Esta união é um modal substancial. Esta união estava em potência nas partes (moléculas de oxigênio e hidrogênio) e agora está em ato no todo. Este todo tem um novo esquema concreto, uma nova tensão, mas a união é em si não é esta nova tensão. O esquema da água é uma coisa, o modo substancial da união é outra coisa. Outro exemplo, mas de modal acidental, é a modificação da quantidade. Em si mesma, a quantidade pode ser considerada abstratamente, mas na substância na qual está “pendurada”, a quantidade está em estado de inerência (é um modal acidental). Similarmente, a ação também é um modal acidental porque a ação não é apenas um “efeito da causa”, mas o modo da causa (como que o “modificar próprio” da causa). A dependência entre o efeito e a causa é o modo da ação.

A matéria para Duns Scot

A matéria, enquanto princípio, não tem ser próprio, segundo os tomistas. Mas Duns Scot discorda porque, se a matéria não tem nenhuma realidade, ela é nada. Se a matéria é nada, como poderia receber e canalizar a “eficácia” das causas? Se a matéria é nada, como poderia receber a forma? Para Scot, “a matéria não recebe seu esse da forma, mas ela, por si mesma, tem o seu esse (ser). [...] Em suma, a matéria é o ser cujo ato consiste estar em potência em relação aos outros atos”.

Mário entende que o ato criador é a criação dos termos determinante (ato=forma) e determinável (potência=matéria), o que equivaleria ao Yang e Yin chineses, pakriti e parusha dos Upanishads.

Fonte: Mário Ferreira dos Santos, Ontologia e cosmologia, Editora Logos, São Paulo, SP, Brasil, 1959.

2 de dezembro de 2024

O ente e a essência


Visão geral

Segundo Tomás de Aquino, o ente e a essência são as primeiras coisas que são captadas pelo intelecto. Assim, em sua obra seminal Do ente e da essência, Tomás discorrerá sobre a distinção entre estes dois conceitos e, mais ainda, demonstrará a distinção real entre o ser e a essência.

“Ente” é aquilo a que atribuímos as dez categorias. “Essência” é o que é comum a todos os entes que são colocados nos diversos gêneros e espécies. (Humanidade é a essência de homem, por exemplo). A essência é aquilo pelo qual o ente tem o ser que é. É como se o ente “derivasse” seu ser da essência (forma/natureza). O ente, cabe lembrar, está propriamente nas substâncias, enquanto nos acidentes está apenas “de certo modo” e “sob certo aspecto”.

Substâncias compostas

Chamamos algumas substâncias de “compostas” porque há nelas forma e matéria. As definições das sustâncias compostas, que apontam (“significam”) as essências dessas substâncias, têm de conter tanto a forma quanto a matéria. Mas aqui Tomás faz uma observação importante: a essência não é uma relação entre forma e matéria, pois isso nos forçaria a concluir que a essência, sendo uma relação, se reduziria a um mero acidente.

No entanto, e aqui cabe uma reflexão importante, sabemos que o princípio de individuação, segundo Tomás de Aquino, é a matéria designada, ou seja, não a matéria como princípio, mas a matéria já devidamente designada por uma quantidade. Isso já sabemos dos inúmeros estudos de tomistas dos mais variados tipos. Ora, na definição de homem – ou seja, em sua essência –, não há obviamente nada que indique que “homem” é este osso e esta carne. Que homens tenham ossos e carne é óbvio, mas também é óbvio que estamos falando de homens em geral, não deste ou daquele homem em particular. Em outras palavras, na essência do homem há um corpo cuja essência contém, entre outros aspectos, a capacidade de designar-se (materializar-se quantitativamente) em três dimensões. Mas o corpo não contém somente esta capacidade (“perfeição”). Ele também contém a capacidade(“perfeição”) da vida. Vejamos o que diz Tomás (grifos meus) e deduzamos em seguida algumas suspeitas:

Acontece, porém, que na própria realidade aquilo que possui uma só perfeição alcance também uma outra perfeição além daquela, como é claro no caso do homem, que possui tanto a natureza sensitiva quanto, além dela, a intelectiva. Do mesmo modo, sobre esta perfeição de possuir tal forma que nela possam designar-se três dimensões pode advir alguma outra perfeição, como a vida ou alguma outra coisa. [...] Mas pode também o nome “corpo” significar certa coisa que tem uma forma a partir da qual possam designar-se na coisa três dimensões, qualquer que seja esta forma, podendo a partir dela provir alguma outra perfeição ou não.

 

Tomás chega a propor que “corpo” é gênero de “animal”. A meu ver isso abre espaço para entendermos que, depois da morte – ou seja, depois que a potência vegetativa da alma perde ação sobre a “matéria designada nas três dimensões” – do corpo, presente na essência do homem, “pode advir alguma outra perfeição” que não seja a matéria designada. Em outras palavras, o que morre com o “corpo” não é o corpo, mas a matéria designada, já que o corpo necessariamente – pois é da essência do homem – terá de advir de outra maneira. Claro que isso precisa ser mais bem esclarecido pois, uma vez perdido o princípio de individuação com a morte da matéria designada, o que individuaria os seres humanos no pós-morte? Tomás não aprofunda o tema aqui, mas é notório que haja uma abertura para “outra perfeição”, a qual genericamente podemos chamar, à moda do próprio Tomás, de “vida”.

Onde “está” a essência?

Tomás critica os platônicos por situarem a essência fora dos singulares porque, se fosse assim, não poderíamos declarar sobre os (“predicar dos”) singulares nenhum gênero ou espécie. Por outro lado, obviamente não podemos dizer que a essência esteja em algum (ou apenas alguns) singulares, sob pena de não ser essência de todos os singulares significados.

A solução? A essência, afirma Tomás, é uma imagem particular inteligida, à exemplo de uma estátua que por semelhança representasse os seres humanos. A partir dos acidentes de uma coisa inteligimos sua natureza (essência).

As puras inteligências (substâncias simples)

No caso das puras inteligências, que estão mais próximas do primeiro princípio, não há matéria designada e, portanto, suas essências coincidem com suas formas. Não há “forma e matéria”, como nos homens, mas somente forma. No entanto, Tomás toma o cuidado ao  não atribuir-lhes “ato puro” porque, embora não tenham matéria,  têm potência.

O ser e a essência

Tomás claramente distingue “ser” de “essência”. Posso inteligir o que é homem ou a fênix, mas isso não significa que por isso homem e fênix tenham ser nas coisas. Mas de onde vem o ser das coisas? Não pode vir da forma ou da essência porque teríamos de concluir que o homem, por exemplo, é causa de si mesmo, o que é impossível. Assim, tem de haver um “Ente Primeiro” que é apenas ser. Estamos falando, claro, de Deus. Eis que descobrimos, de quebra, que a potência das puras inteligências está precisamente na forma (que coincide com a essência, lembre-se), que está em potência para o ser.

Mas qual a diferença entre uma pura inteligência e outra? Tomás confessa que a desconhece. As puras inteligências têm seu gênero a partir de sua imaterialidade, a diferença é tomada de seus graus de perfeição, mas o que é precisamente essa diferença não sabemos.

Fonte: Santo Tomás de Aquino, O ente e a essência, Ecclesiae Editora, Campinas, SP, Brasil, 2022.