14 de dezembro de 2025

Pensamentos de Sertillanges


Deus sabe quanto por vezes se esconde, sob esse título [de conservador], honroso em si mesmo, de egoísmo feroz e vilania. O conservador daquilo que ele acredita ser o bem e o verdadeiro é estimável; já o conservador do próprio repouso, do próprio bem-estar, da própria situação social, esse é vil e justificadamente desprezado. Não temos o direito de interpor nossos preconceitos à verdade que passa, nossos interesses ao bem que quer caminhar, nossa tola rotina ao progresso de Deus. Isso é um crime para com Deus e para com os homens. É o pecado contra o Espírito Santo, é aquele “que não é perdoado”.

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A brandura [de Jesus Cristo] não consiste em nada odiar; consiste menos ainda em tirar partido do mal antes de tentar o remédio. Isso é indiferença, isso é insipidez de alma; é o que atualmente se chama diletantismo [alguém que não se submete a nenhuma norma intelectual ou espiritual, vivendo ao sabor de sua fantasia e cultivando uma espécie de prazer puramente estético – N. do T.]. Esse diletantismo é odioso, pois o mal e o bem, a seus olhos, têm valor igual; pois, em vez daqueles ódios vigorosos de que fala o poeta, há apenas sorrisos finos, que ele distribui a qualquer um. E essa atitude é covarde. É preciso odiar o mal com o mesmo vigor com que se ama o bem.

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O passado é uma força. É a raiz de onde saímos, e quanto mais essa raiz se aprofunda no solo, mais ela resiste. Temos o instinto do eterno, do definitivo: é um sinal de nossos destinos; mas isso facilmente se torna uma fraqueza e um temível perigoso, porque é difícil desprender-se o suficiente daquilo que, nesse sentimento, sempre existe de mais ou menos egoísta.

Foi o passado que nos fez; é a nós mesmos, de certa forma, o que nele defendemos. Por isso, a luta pelo passado se reveste, nos cérebros estreitos, da aspereza e da cegueira da luta pela vida. Isso pode ser evitado, porém dificilmente, porque é preciso então sair de si mesmo, soltar-se, desprender-se, elevar-se de certa forma acima do tempo, e esse é um exercício que não está ao alcance de todos. Para ser bem-sucedido, é quase uma questão de genialidade, ou então de santidade. Ora, tanto a genialidade como a santidade são coisa rara.

Assim como a onda alta que sobe acima da maré e domina os cimos branquejantes, de tempos em tempos uma cabeça se eleva no oceano humano e olha: é o gênio. Pessoas assim, contudo, se contam rapidamente! O comum é a rotina, e a obstinação nessa rotina. O comum é que os poderes estabelecidos, os corpos constituídos busquem preservar-se, sem se preocupar com outra coisa. O interesse [próprio] os absorve, as ideias novas os preocupam [i.e. ameaçam], qualquer ousadia os apavora; eles preferem olhar par ao passado a olhar para o futuro, e, como toda marcha adiante prossegue em meio aos desabamentos e aos detritos do que não consegue viver, é trivial que os representantes do passado se rebelem contra as iniciativas e se interponham diante das renovações.

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Para Jesus Cristo, a vida exterior é secundária: sua obra real é uma obra oculta, consiste em suas relações invisíveis com Deus e com a criação. Nada aí, aliás, de surpreendente: isso não está muito longe de valer para nós mesmos. O que são palavras e ações, com base nas quais os homens nos julgam? A superfície de nossa vida é como uma casca leve. Há, embaixo dela, a alma. Todo um mundo interior de pensamentos, desejos, tendências, aspirações, sonhos, alegrias, pesares, eis o que, no fundo, faz de nós o que somos. Para que nos conheçam, não são nossas palavras que deveriam saber, é nosso silêncio; não são nossas ações, é nosso repouso; é aquela vida interior que prossegue, obscura, quase despercebida, subjacente a nossas atividades de superfície, assim como fundo dos mares circula e fervilha, longe da superfície tranquila ou tempestuosa, todo um mundo de seres vivos.

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Simplicidade e profundidade: essas duas características não podem ser separadas na palavra do Senhor. Ele trazia a sabedoria de Deus; vinha iluminar a vida humana, religá-la a seu princípio, que é o infinito, orientá-la para seu fim, que é um fim sobrenatural. Ele próprio, Jesus Cristo, era um mistério vivo, e era preciso que ele se desse a conhecer. De todo modo, sua linguagem só podia ser profunda.

Por outro lado, dirigia-se aos simples, diferentemente dos fariseus, que faziam do desprezo aos humildes e aos ignorantes uma das leis de sua conduta e até de sua virtude. Contrariamente aos homens geniais, que, no intuito de reformar o pensamento humano, dirigem-se às classes elevadas e põem de lado ou negligenciam o homem comum, Jesus era e continua a ser o homem da multidão.

O sinal da divindade de sua missão era a evangelização dos pobres: era preciso que o os pobres pudesses compreender. Os grupos que se formavam em torno dele, e cujos personagens principais eram Pedro, o pescador, Tiago, o carpinteiro, Mateus, o alfandegário de Cafarnaum, não o teriam acompanhado muito tempo em abstrações eruditas. Era necessário que o infinito de Deus se adaptasse à fraqueza daqueles homens. Assim ele fez.

Leiam seus discursos. Todos – exceto em raras ocasiões muito especiais – são de uma simplicidade que chamaríamos de régia: essa palavra expressa bem, acreditamos, o caráter deles. As pessoas régias, na intimidade, falam sobre coisas grandiosas com uma simplicidade desconcertante. Reinos, cetros, coroas são vistos por elas como, por nós, objetos prosaicos. Assim, Jesus fala com tranquila majestade dos objetos divinos que ele nos entrega.

Sua eloquência é naturalmente sublime, porque seu fundo é naturalmente divino. E por isso ela é simples, espontânea, natural, sem arroubos provocados, sem deslumbramento e sem precipitação.

Basta ler os profetas, que falam sobre as mesmas coisas: a diferença é gritante. Os profetas se atormentam, porque a inspiração deles vem de fora. São arrebatados para fora de si mesmos: seguem os voos do Espírito, intermitentes e tempestuosos, em regiões de luz superior. Jesus, por sua vez, traz a luz em si mesmo: muito naturalmente ela resplandece. Ele não precisa se lançar nas regiões do mistério: o mistério reside nele; o mistério é ele, que o desvela num abrir de mão.

Uma qualidade, no entanto, se impunha. Para exercer ascendência sobre o povo, essa palavra tinha de ser rica em imagens e viva.

O povo é uma criança; nesse aspecto, aliás, todas as multidões são povo. É preciso falar com elas em imagens, em comparações, em figuras. Traços ardentes, formas vívidas: o oriental, em particular, aprecia isso. Os rabinos da época o sabiam bem: os Talmudes estão recheados disso; seu defeito, porém, é o pedantismo, são os bizantinismos ridículos. Jesus, por sua vez, suprime o exagero e mantém a coisa. Preserva o traço, a imagem vívida, a formulação incisiva, a comparação soberba e familiar.

* * *

O trabalho é uma virtude e, ao mesmo tempo, uma semente de virtude, [cf. o que diz Rafael de Abreu sobre a prática Personale vs. opus] pois distancia de nós as sugestões do mal; cultiva nossas forças, as do corpo, as da alma; aproxima-nos de nossos semelhantes; faz mais pela questão social que aqueles ociosos fazedores de frases ou aqueles ricos indolentes que se lamentam sobre a infelicidade dos tempos e não percebem que eles próprios são uma chaga social, um objeto de inveja e escândalo para seus irmãos, um ponto morto no grande organismo vivo, um estorvo na corrente da vida humana.

[...]

Provavelmente o trabalho de Jesus nem sempre era intenso. O espírito de seu povo e de sua época não se prestava a isso. Seria um erro imaginar, numa oficina do Oriente, o aspecto febril que as nossas apresentam. Nossos climas rudes criaram a concorrência vital; nossa energia se desdobra com uma espécie de frenesi para a satisfação de necessidades mais ou menos artificiais; o Oriente, porém, não é assim. Mesmo hoje e, principalmente, naquela época, a vida é patriarcal e tranquila. O labor [labuta] tem aí seu lugar, é claro; mas nem por isso toma o do lazer [Sertillanges certamente se refere ao lazer como Mortimer Adler se referia, ou seja, com atividade de autoaperfeiçoamento sem objetivo útil ou econômico], cujas horas são prolongadas pela simplicidade da vida.

É bom que haja obras exteriores, contanto que partam de um fundo que lhes dá valor aos olhos do mestre. Os que são nossas obras, em si mesmas? Que diferença pode fazer para Deus que nossas mãos ou nosso cérebro trabalhem? E se outros recolhem os frutos, ou nós mesmos, que valem esses frutos se não levam à vida eterna, e o que restará deles amanhã, quando nós e os nossos tivermos passado e o balanço de nossa vida se saldar em moedas de alma?

É preciso, portanto, cultivar nossa alma; para isso, a solidão e o recolhimento se impõem. A solidão chama Deus, abre o coração aos grandes pensamentos, faz-nos tocar aquele fundo de nós mesmos onde se preparam as resoluções viris e dissimulam nossos verdadeiros recursos.

Fonte: A.-D. Sertillanges, Jesus, Editora Filocalia, São Paulo, Brasil, 2021.

9 de dezembro de 2025

Razão em Corção



Olha aquele Deus alto e incriado
Senhor das cousas todas, que fundou
O céu, a terra, o fogo, o mar irado;
Não do confuso caos, como cuidou
A falsa teologia, e povo escuro,
Que nesta só verdade tanto errou;
Não dos átomos leves d’Epicuro,
Não do fundo Oceano, como Tales,
Mas só do pensamento casto e puro.

(Camões – Elegia XI)

O silogismo nunca foi apresentado pelos discípulos de Aristóteles como método de raciocinar, e sim como condensação da estrutura do discurso racional. Mesmo sem maior, menor e conclusão, todos nós pensamos de forma silogística, até quando nos parece que as ideias nos chegam como relâmpagos intuitivos, semelhantes aos da intelecção angélica. A parte discursiva existe sempre onde existir o homem.

[...]

A maior parte dos tropeços intelectuais nasce da simplicidade com que se leva a sério esta ou aquela figura de linguagem. Imaginem o caso de alguém pensar que a proporção de conceitos propostos por uma determinada metáfora tem caráter unívoco, como a proporção de conceitos dentro do vocabulário matemático. [Ou seja, nem todos os elementos de uma metáfora têm o mesmo peso proporcional “matemático”.] E o que vale para a metáfora, a rainha das figuras de linguagem, vale para litotes (expressões que dizem pouco para fazerem entender muito), metonímia (toma a causa pelo efeito, o continente pelo conteúdo ou a matéria pela forma) e a sinédoque (toma a parte pelo todo).

* * *

Todo mundo que estudou ao menos os rudimentos da nobre ciência das matemáticas sabe que não poderia dar três passos sem antes firmar as bases e aprimorar as definições. Ora, há coisas mais fundamentais e anteriores às próprias definições matemáticas: a noção de definição, por exemplo, a de princípio, de causa e de ser, são anteriores a qualquer das ciências positivas. Precisam ser disciplinadas, postas em ordem, sondadas, estudadas. Onde? Em que matéria estudará o moço a noção de causa? Na geografia? Na história natural? Ou, quem sabe se pensam que é na gramática que se encontra a explicação do conteúdo dos termos?

É de uma temeridade espantosa pretender que deva ficar implícito ou inconsciente, na vida intelectual, justamente a parte basilar de que depende todo o teor da cultura.

Na verdade, o que dá forma e unidade a uma civilização, a um todo cultural de dimensões históricas, marcado por certos ideais concretos, só pode ser uma filosofia e ainda mais, uma filosofia com uma metafísica de base.

Creio que a pior, a mais falsa e mais errônea das metafísicas é aquela que se faz para se demonstrar que não há metafísica ou que foi superada a necessidade dela.

* * *

A matemática é espetacular espiritualização do mundo sensível. Ela passa a trabalhar com quantidades espiritualizadas, que só existem na mente, mas que estabelecem uma comunicação extremamente confortável entre a mente e o mundo exterior. Curioso paradoxo, esse da estrutura das ciências matemáticas!

[...]

Foi preciso passarem quatro séculos para que a humanidade começasse a desconfiar da solidez de suas conquistas no domínio das ciências regidas pela quantidade, e da falta que anda fazendo no mundo um princípio unificador de cultura. Em outras palavras, só agora, depois de muito sofrimento, começam os homens a desconfiar que conquistaram o mundo, mas perderam a alma.

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De um lado, a tradição aristotélica-tomista sempre se empenhou em fazer do conhecimento, seja sensível, seja intelectual. um modelo inspirado numa ideia principal: a da união entre o agente que conhece e a coisa conhecida. Do outro lado está a tradição oposta, que por curioso pessimismo, se compraz na ideia primeira de uma irremediável desunião entre a inteligência e o ser.

Em termos metafísicos diríamos que o erro cometido por todos os filósofos que retomaram as explicações de Demócrito e seus discípulos, consiste numa hipertrofia ou até numa exclusividade concedida à causa material, em detrimento das outras. Ora, não é aquilo de que a coisa é feita que mais a caracteriza ou que melhor a define. Considerando um artefato, uma estátua por exemplo, ninguém dirá que o fato de ser marmórea prevalece sobre a forma, sobre a beleza e sobre a intenção de seu autor. Ninguém dirá que verdadeiro é o mármore, e ainda mais verdadeiros os átomos de carbono e cálcio, e ainda mais verdadeiros os elétrons e os prótons; e que a beleza da forma é um puro dado da nossa imaginação, e dado ilusório, som ilusório, enganador, porque nada há na coisa, que se assemelhe às nossas sensações. Não é costume pensar assim quando temos diante de nós uma estátua. Por que então pensaremos assim quando contemplamos urna rosa? Então, pelo fato de ser composta de elétrons e prótons a rosa deixou de ser rosa, ou passou a ser uma coisa que em nós, em nossa ideia, como diz Locke, produz o fantasma daquilo que os jardineiros e os poetas. por engano, por falta de sagaz filosofia, julgam ser formosa, rosada e cheia de fragrância?

É importante assinalar que é aqui. muito antes de discutirmos a existência ou não existência dos seres espirituais, que se trava a primeira batalha entre duas raças opostas de pensadores.

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Se nos sondarmos com lealdade, descobriremos um esquisito desejo de sobrevivência na memória dos outros. De que nos vale isto? De que me vale meu nome pronunciado aqui ou acolá, com tais ou quais atributos, se eu não estou aqui ou acolá, pessoalmente, sobrevivente?

O fato é que, apesar dessa pobreza de significação pessoal, desse caráter acidental, a sobrevivência pelas obras corresponde a um profundo desejo de nosso ser. Ninguém quer passar a vida em brancas nuvens. Ninguém quer morrer como o poeta disse que morrem os pássaros. Mas a verdade é que é esse instinto de sobrevivência, digamos horizontal, que nos impede a visão da outra imortalidade, a vertical, à qual tem dimensões de eternidade e não dimensões de história, à qual também corresponde um grande anseio de nossa alma, que tem horror à morte, à ideia do aniquilamento da pessoa, e que se insurge em cada caso, diante de cada defunto, como se estivesse vendo um espetáculo de espantosa raridade. O caso é que a alma humana tem profundidades de inconsciência em dois sentidos. Diria até dois hemisférios, um voltado para a terra e outro voltado para o céu. Num desses hemisférios a ideia de imortalidade da alma brilha como uma estrela; no outro, entretanto, levantam-se obstáculos erguidos pelas exigências da sensibilidade. [...] Assim, a ideia de imortalidade da alma, que vale a pena ser desempatada, tem de ser apresentada ao espírito muito antes da emoção, da perturbação, para que na hora oportuna ela tenha algum valor vital.

Vale a pena desempatar esse problema, e procurar entrever, através de nossos obstáculos, as novas dimensões da eternidade. A imortalidade verdadeira, pessoal, essencial, não se distribui pelas pessoas em graus proporcionados ao sucesso da vida. É, ao contrário, um atributo da alma espiritual, e portanto um denominador comum de toda a humanidade. E se assim é, segue-se que a sorte do homem, referida aos eixos da eternidade, deveria dominar todas as cogitações da vida terrena, e não estar relegada à categoria de assunto que serve para consolo nas câmaras ardentes e logo em seguida é esquecido.

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Itaque qui se existimat stare, videat ne cadat, diz-nos o Apóstolo Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios, capítulo X, versículo 12; e esta advertência – quem se gaba de estar em pé veja que não caia – resume bem toda a prudência. [...] Pensando nas relações com o próximo, Machado disse que a vida era uma série de cachações [pancadas fortes]: pensando no itinerário próprio de cada um de nós, e dos grupos maiores ou menores que formamos, seria mais acertado dizer que a vida é uma série de tropeços, escorregões, e estatelamentos.

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Em termos modernos diríamos que aos homens comuns basta que se agrupem e que emendem a tarefa de hoje na de ontem e de anteontem. Assim, o resultado pode ser mantido e até aperfeiçoado por homens nitidamente superiores ao cavalo, mas perigosamente arriscados a se tornarem cada dia mais incapazes de alcançar a estatura normal do homem espiritual.

O homem moderno foi capaz de ir à Lua graças a este somatório de trabalho de milhões de homens, mas parece incapaz de achar o endereço perdido da Casa do Pai.

Dificilmente encontramos hoje quem saiba usar a palavra, quem saiba usar a alma, quem saiba produzir as obras que dão à França e à Espanha uma enorme renda de turismo.

Vivemos hoje uma civilização de diminuídos, que ganharam a Terra e a Lua, mas perderam, já aqui no mundo, os endereços das próprias almas.

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Nós entendemos facilmente o eletricista que muda o fusível sem entrar em grandes monólogos filosóficos; entenderemos até o matemático que usa o espírito para se entreter com entes de razão inebriantes, e que se esquece de fazer um ato reflexo e de admirar a faculdade pela qual ele virou matemático; entende-se até o astrônomo que mede distâncias espantosas sem tecer considerações sobre o instrumento interna da medida. Mas que um psicólogo se esqueça de filosofar acerca da alma humana e passe a cuidar dos fenômenos sem um saldo de curiosidade para as essências, sem uma avidez de saber, ou ao menos de se interrogar sobre o dualismo interno que o leva a escrever livros sobre o comportamento humano, eis o que me parece deveras incompreensível!

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A ideia central de todo o sistema adleriano: o sentimento de inferioridade como traço essencial e até definidor do dinamismo psíquico do homem. Para Freud, ser homem quer dizer desejar. Ora, a esse desejo de posse, a essa fome, Adler contrapõe um outro elemento da dinâmica psíquica que poderíamos chamar de desejo de valor. Não é a libido que move as máquinas nos porões da alma, é um estranho desejo de ser, de valer, de se sentir coeso e prestigiado diante de si mesmo e do mundo. Em outras palavras, o eixo de todo o funcionamento humano seria a consciência de seu ser e de seu estranho valor.

[...]

Em todos os dramas, em todas as situações de conflito, onde há dor, onde há atrito, haverá, na mais magnânima das almas um sentimento de impotência ou de insegurança. E em todas as situações da vida, seja a mais bem sucedida, se a alma se consultar com sinceridade e finura encontrará no fundo de seu inventário uma insatisfação que coisa alguma do mundo poderá apaziguar. Esse sentimento decorre pois da natureza do homem como força de necessidade. Ser homem é não se conformar com os prêmios do mundo. Ora, se assim é, também não será difícil prever a enorme variedade de espécies e subespécies de sentimentos de inferioridade que acometem a alma humana. Toda a extensa gama de sentimentos pode tomar dois caminhos opostos, o da humildade ou o do ressentimento, dependendo tudo do amor com que se ama.

O verdadeiro e único elixir para as feridas do amor-próprio está no outro amor feito de generosidade e de humildade. A humildade é, por assim dizer, o sentimento de inferioridade absoluto. A referência que se toma para esta virtude é Deus e não o mundo. Ora, essa comparação, ao contrário de todas as outras do mundo, tem a virtude de pacificar a alma. O homem é um estranho personagem que julga poder curar-se daquela inferioridade com compensações de uma infinita cretinice.

Fonte: Gustavo Corção, Gustavo Corção tomista, Editora Permanência, Rio de Janeiro, Brasil, 2012.

25 de novembro de 2025

O sentido das águas


Nas primeiras viagens que fiz ao Médio e ao Alto Rio Negro, eu precisava prestar muita atenção para perceber as diferenças dos sotaques e sons dos fonemas pronunciados por indígenas de etnias diferentes. Tudo me parecia igual e incompreensível, a ignorância tem o dom de simplificar o que parece complexo. No caso das 23 etnias que vivem na região, nada pode ser mais falso do que igualar os idiomas.

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A decisão de abandonar aquela vida errante foi tomada no dia em que [Jacaré] assistiu a um show de uma ex-artista de TV num garimpo do Pará. Terminado o espetáculo, Jacaré ofereceu um quilo de ouro pelo direito de desfrutar de companhia tão amável.

A moça agradeceu, disse que tinha namorado. Ele não se deu por vencido:

-- Mas um quilo de ouro é tudo que eu tenho, meu amor. Dou pra você e fico sem nada.

-- Se o meu namorado for embora, eu também fico sem nada.

A frase calou fundo no coração aventureiro. Naquela noite, pensou:

-- Tá na hora de largar desta vida. Se eu insistir, acabo velho sem um canto e sem encontrar urna mulher pra falar de mim com a doçura que aquela moça falou do namorado.

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O homem chegou à Amazônia há pelo menos 12 mil anos. A ocupação humana dessa região é tão antiga quanto a de outros locais da América do Sul, ocorrida na transição do Pleistoceno para o Holoceno.

Dos primeiros grupos de caçadores-coletores às migrações das populações sedentárias que desenvolveram as plantações de mandioca, as terras da bacia do rio Negro foram ocupadas por sucessivas populações que se deslocavam à procura de condições de subsistência mais favoráveis.

Numa conversa com o indigenista Marcos Wesley, que dirige o ISA em São Gabriel da Cachoeira, falávamos sobre a diversidade das plantas do rio Negro, quando ele expôs a fragilidade da visão científica que eu tinha a respeito da floresta:

-- Você esquece que os indígenas vivem na região há milhares de anos. Impossível analisar as florestas do rio Negro sem considerar a intervenção de mãos humanas no plantio e no espalhamento, ao redor das aldeias e das trilhas na mata, de espécies em que tinham interesse.

Em minha ignorância, jamais havia pensado nessa possibilidade. Para mim, a floresta era um organismo praticamente intocado pelos povos originais. Wesley acrescentou:

-- Para entender a biodiversidade da floresta é preciso analisar as evidências arqueológicas que contam a história antiga dos povos indígenas e de como eles modificaram o meio, numa época em que os europeus ainda viviam em cavernas.

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Petróglifos são gravações rupestres encontradas em diversas partes do mundo. Na bacia do rio Negro, eles estão situados em rochas nas margens dos rios, especialmente ao longo do trajeto das cachoeiras.

Algumas dessas inscrições são visíveis durante o ano todo, enquanto outras afloram na seca e submergem na cheia. Elas constituem um dos registros mais antigos da presença humana nessas paragens. Muitas apresentam sinais de erosão que levaram milênios para se formar.

Os petróglifos foram esculpidos no granito sólido, com sulcos de cerca de dois centímetros a quatro centímetros de profundidade, num tempo em que não existia ferro, muito menos as ferramentas de hoje.

A idade dessas inscrições é muito difícil de estimar, devido à inexistência de pinturas com o material orgânico necessário para a aplicação das técnicas com carbono 14, a metodologia mais empregada. Essa falta de precisão explica por que na literatura a estimativa de idade dessas inscrições vai de mil anos a 7 mil anos antes da época atual.

Os diversos estilos representados sugerem sua origem em diversas épocas e em diferentes povos indígenas. A variedade dos desenhos é grande; os mais encontrados são os geométricos, produzidos com linhas em espirais, círculos, retas paralelas, em zigue-zague ou que se cruzam em forma de rede. [Aqui cabe consultar o que diz Wilhelm Worringer sobre o impulso de “povos primitivos” em fugir de fenômenos caóticos mediante a arte abstrata]. Outros mostram figuras humanas estilizadas com corpos alongados, cabeças redondas, faces, olhos e bocas. Outros, ainda, representam imagens de animais estilizados: peixes, cobras, onças e aves. Há também máscaras, motivos abstratos e simbólicos ou figuras múltiplas que agrupam seres humanos e animais.

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De Pari-Cachoeira, na mandíbula do Cachorro, às margens do Tiquié, a Maturacá, na nuca do Cachorro, região do ponto culminante do país, o Yaripo, perguntei a todos com quem conversei qual era o maior sonho da vida deles. Sem exceção, responderam que era ver filhos e netos na escola.

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Durante os anos 1970, no entanto, os missionários salesianos decidiram agrupar os Hupda em aldeamentos com duzentas pessoas ou mais, para facilitar a escolaridade e o atendimento médico, como ocorreu nos igarapés Taracuá, Cucura, Castanheira e em outros locais. A consequência, porém, foi uma fome epidêmica: com o aumento populacional, o caçador que alimentava a família caminhando quatro ou cinco quilômetros por dia precisou percorrer o sobro dessa distância, ou mais. Além desse inconveniente, eles costumam resolver desavenças internas, problemas matrimoniais e conflitos entre as famílias mudando-se para outras áreas, estratégia que se tornou inadequada nos povoados mais populosos. A qualidade da convivência piorou.

Além desses desencontros, o esgotamento das palmeiras-caraná, cuja palha é ideal para a cobertura das casas, criou a necessidade de cobri-las com folhas de zinco, material caro e inadequado numa região de sol inclemente.

Diante dessas políticas que os brancos adotam tantas vezes por conta própria, na esperança de solucionar problemas dos indígenas sem ouvi-los, lembro sempre da minha avó: “Filho, foi de boas intenções que o inferno ficou superlotado”.

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Indígenas Manao dominavam as duas margens do Baixo Rio Negro antes do século XVIII. Nessa época, os Tarumã ocupavam as margens do rio de mesmo nome, último afluente do lado esquerdo do Negro. Embora estivessem concentrados no Alto Rio Negro, alguns grupos Baré viviam na parte baixa.

A expulsão dos jesuítas pelo decreto de 1759 do marquês de Pombal abriu espaço para que as tropas de resgate aprisionassem e escravizassem com mais liberdade os indígenas dessa área densamente povoada.

Contra as flechas e zarabatanas dos que ousavam enfrentá-los, os portugueses traziam indígenas de outras etnias, arregimentados com o poder de armas que incluíam até canhões, com os quais bombardeavam as aldeias ribeirinhas que não se subjugassem. Matavam homens, mulheres, velhos e crianças; os sobreviventes eram caçados a laço, agrilhoados e levados para os aldeamentos, verdadeiros currais em que permaneciam à espera dos descimentos para Belém do Pará, cidade em que seriam postos à venda para o trabalho escravo.

Os poucos que escapavam embrenhavam-se nas florestas rio acima, até os territórios da Colômbia e da Venezuela. Com a declaração de guerra que dizimou o povo Manao no século XVIII, a Coroa portuguesa impôs seu domínio na região.

De acordo com o padre João Daniel, que passou quinze anos na Amazônia, os indígenas “morriam feito moscas”, realidade que os demógrafos da Universidade da Califórnia em Berkeley caracterizaram como “uma das maiores catástrofes da história da humanidade”.

Fonte: Drauzio Varella, O sentido das águas, Companhia das Letras, São Paulo, Brasil, 2025.

24 de novembro de 2025

Fédon


Com efeito, ao assistir à morte de tal amigo, não era a piedade que me dominava. Pois era um homem feliz que eu tinha sob os olhos, Equécrates: feliz tanto no modo de comportar-se como na sua linguagem; e chegou ao fim com nobreza e tranquilidade. Dava-me a impressão de alguém que, tendo de seguir para o Hades, para ali não se dirigisse sem um concurso divino, e que, uma vez chegado a tal lugar, lá encontrasse uma felicidade por ninguém jamais encontrada!

* * *

-- Há, a este respeito [continuou Sócrates], uma fórmula que se pronuncia nos Mistérios: “Uma espécie de cárcere, eis onde vivemos nós, os homens, e nosso dever não é nos libertarmos a nós mesmos nem nos evadirmos”. Fórmula, sem nenhuma dúvida, de alguma profundidade, de sentido difícil de se penetrar completamente. Não é menos verdadeiro, Cebes, que isto pelo menos parece bem expressado: são os deuses que nos têm sob sua guarda, e nós, os homens, somos parte da propriedade dos deuses. Não te parece que seja assim?

-- Sim, parece-me, respondeu Cebes.

-- E, então, continuou Sócrates, se um dos seres que são tua propriedade pessoal se desse a si mesmo a morte sem que para tal lhe tivesses dito alguma coisa, não te irritarias com ele? E se houvesse modo de puni-lo, não o punirias?

-- Sem dúvida, disse Cebes.

-- Admitido isto, parece provável não haver nada de irracional neste dever de não se matar a si mesmo, de esperar que a divindade nos envie uma determinação qualquer, semelhante a esta que agora se apresenta a mim.

* * *

-- Não é no ato de raciocinar, [diz Sócrates], que a alma vê manifestar-se plenamente a realidade de um ser?

-- Sim, [disse Símias].

-- E, sem dúvida, ela raciocina melhor precisamente quando livre de qualquer perturbação, parta esta do ouvido, da vista, de uma dor, ou, pior ainda, de um prazer; quando está isolada o mais possível em si mesma, afastando o corpo; e quanto, interrompendo, na medida do possível, todo o contato com ele, aspira ao real.

-- É assim.

-- Além disso, não é nesse estado que a alma do filósofo maior desprezo tem pelo corpo e dele foge, ao mesmo tempo em que ela procura isolar-se em si mesma?

-- Evidentemente.

-- Mas o que dizer, agora, Símias, disto: nós afirmamos a existência de alguma coisa que seja “justa” por si mesma, ou não?

-- Por Zeus! Nós o afirmamos.

-- E também de algo que seja “belo”, que seja “bom”, não é?

-- Certamente.

-- Pois bem, não é verdade que jamais viste qualquer coisa deste gênero com os teus próprios olhos?

-- Sem dúvida.

-- Então, tu as apreendeste com qualquer outo sentido que não aqueles de que o corpo é o instrumento? Ora, aquilo a que estou me referindo, assim como todas as coisas, como “grandeza”, “saúde”, “força”, e tudo o mais, é, numa só palavra e sem exceção, a sua realidade: aquilo que cada uma dessas coisas precisamente é. Será, pois, por meio do corpo que se pode observar o que há nelas de mais verdadeiro? Ou, ao contrário, não será aquele dentre nós que estiver mais exatamente e mais intensamente preparado para penetrar com o pensamento cada coisa que torne objeto de pesquisa, até a sua íntima realidade, o mais capaz de aproximar-se do conhecimento dessa coisa?

-- É absolutamente certo.

-- E quem chegaria a esse resultado, na sua maior pureza, se não aquele que, no mais alto grau possível usasse, para se aproximar de determinada coisa, somente o pensamento, sem recorrer, no ato de pensar, nem à vista, nem a qualquer outro sentido, nada acrescentando ao raciocínio? Aquele que, por meio do pensamento em si mesmo e por ele mesmo, e livre de qualquer impureza, se pusesse em busca das realidade, cada uma também por si mesma e livre de impureza: e isso depois de se ter desembaraçado o mais possível dos olhos, do ouvido, e, para falar acertadamente, do corpo inteiro, pois que é este que perturba a alma e a impede de adquirir a verdade e o pensamento, todas as vezes que ela tem comércio com ele; não é essa pessoa, Símias, mais do que qualquer outra, que poderá atingir o verdadeiro?

-- Não é possível, Sócrates, respondeu Símias, falar com maior acerto.

-- Assim, necessariamente, prosseguiu Sócrates, todas estas considerações fazem nascer no espírito dos filósofos autênticos uma crença capaz de inspirar-lhe nas conversações uma linguagem tal como esta: “Sim, é possível mesmo que haja um caminho que nos oriente quando o raciocínio nos acompanha na pesquisa; e é esta ideia: enquanto tivermos o corpo, e nossa alma estiver confundida com essa coisa má, nós não possuiremos jamais suficientemente o objeto do nosso desejo. Ora, este objeto, dizemos, é a verdade. E não são somente as penas infinitas que o corpo suscita por motivo das necessidades da vida: há também as moléstias e eis aí novos entraves à procura do verdadeiro. Amores, desejos. temores, imaginações de toda espécie, inumeráveis frivolidades o corpo nos ocupa de tal modo, que por ele, como se diz. não nos chega mesmo, realmente, nenhum pensamento sensato, nem um só! Considerai as guerras, as dissenções, as pelejas: não há para suscitá-las senão o corpo e suas paixões. A posse de riquezas, eis com efeito a causa original de todas as guerras, e. se somos levados à procura de bens, é por causa do corpo, escravos submetidos ao seu serviço! E é ainda por causa de tudo isso que nos ocupamos pouco de filosofia. Mas o pior de tudo é que quando o corpo nos permite, afinal, um pouco de tranquilidade, para nos voltarmos para um objeto qualquer de reflexão, as nossas indagações são novamente postas em desordem por esse intruso, que nos atordoa, nos perturba e nos desconcerta, a ponto de nos tornar incapazes de distinguir a verdade. Ao contrário, já tivemos realmente a prova de que, se quisermos jamais saber alguma coisa em sua pureza, teremos que nos separar do corpo e olhar com a alma em si mesma as coisas em si mesmas. É, então, ao que parece, que nos pertencerá aquilo de que nos dizemos amantes: o pensamento. Sim, quando estivermos mortos, como mostra o argumento, e não durante nossa vida. Se, com efeito, é impossível, na união com o corpo, conhecer algo com pureza, das duas uma: ou não nos é possível, de nenhuma maneira, adquirirmos o saber, ou, então, somente será possível quando estivermos mortos, pois será somente nesse momento que a alma estará em si mesma e por ela mesma, separada do corpo, e não antes. Além disso, durante o tempo que a nossa vida possa durar, estaremos, segundo parece, o mais perto do saber, precisamente quando tivermos o menos possível comércio ou sociedade com o corpo, menos no caso de necessidade maior, quando não estivermos contaminados pela sua natureza, mas que estivermos, pelo contrário, puros de seu contato, até o dia em que o próprio deus tiver posto fim aos nossos liames. Chegados, afinal, desse modo, à pureza, por termos sido separados da demência do corpo, estaremos verossimilmente unidos a seres semelhantes a nós; e por nós, somente por nós, conheceremos aquilo que é isento de impureza. E é nisso, de outro lado, que consiste provavelmente a verdade. Não ser puro e apreender, entretanto, aquilo que é puro, eis, com efeito, como é de temer-se, o que não é permitido”. Creio que é isto, Símias, que pensam e dizem todos aqueles que são, no sentido verdadeiro do termo, amigos do saber. 

* * *

-- Assim, amigo, continuou Sócrates, se essa é a verdade, que esperança imensa para quem, como eu, chegou a este ponto da jornada! No além, se isto deve acontecer em algum lugar, possuiremos plenamente aquilo que foi para nós o fim de um imenso esforço durante a vida passada. De modo que esta viagem, que me foi agora prescrita, não é desacompanhada de uma doce esperança; e o mesmo acontece com todos os que julguem que seu pensamento está preparado e que possam considerá-lo purificado.

-- É absolutamente certo, disse Símias.

-- Mas purificação não é justamente o que diz a tradição antiga? Separar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a recolher-se e a fechar-se em si mesma, alheia a qualquer elemento corpóreo, e a permanecer, tanto quanto possível, tanto na vida presente corno na futura, só, inteiramente desligada do corpo como de suas cadeias?

-- É isso, precisamente, disse ele.

-- E não é verdade que o sentido preciso da palavra “morte”, é o de que uma alma foi separada e posta à parte de um corpo?

-- Exatamente.

-- E dessa separação, como dizíamos, os que mais cuidam, e os únicos a fazê-lo, são os filósofos, no sentido verdadeiro do termo: o próprio objeto do exercício dos que filosofam é mesmo destacar a alma e pô-la à parte do corpo. Não é?

-- É claro.

-- Não seria, então, como eu dizia, uma coisa ridícula, da parte de um homem que se tivesse preparado, durante toda a sua vida, a aproximar o mais possível seu modo de viver do estado a que se chega com a morte, de irritar-se depois com esse fato, quando este se apresenta a ele?

-- É sem dúvida uma coisa ridícula.

-- Assim, pois, Símias, é bem uma verdade que aqueles que, no sentido justo do termo, filosofam, se exercitam a morrer, e que a ideia de morte é para eles coisa muito menos temível do que para qualquer outra pessoa. Eis o que se deve considerar. Se os filósofos estão realmente, em todos os pontos, em discordância com o corpo, e se desejam, de outro lado, que a sua alma exista em si mesma e por si mesma, não seria o cúmulo da falta de razão se a realização disso os assustasse ou intimidasse? Isto é, se não fossem com alegria para o lugar onde, uma vez chegados, iriam encontrar aquilo que amaram durante toda a vida — e amaram o saber —, e, além disso, onde se sentiriam livres da companhia justamente daquilo com que tinham entrado em discórdia? Enquanto há muitos que, ao perderem mulheres ou filhos, amores de criaturas humanas, querem por si mesmos procurá-los no Hades, levados pela esperança de rever aqueles que amaram e de ficar com eles —, o homem verdadeiramente amigo do saber, e que alimentou no coração a firme esperança de que em nenhum outro lugar poderia encontrar esse saber na sua plenitude senão no Hades, iria lamentar-se ante a morte e não se alegraria de ir para aquele lugar? Eis o que se deve pensar, amigo, pelo menos se esse homem filosofar realmente; pois ele terá chegado a uma firme convicção de que em nenhum outro lugar encontrará o pensamento em sua pureza, senão naquele. Ora, sendo assim, não seria, como eu dizia há pouco, o cúmulo da falta de razão o medo da morte em tal homem?

-- Seria o cúmulo, por Zeus!

* * *

-- Assim é, excelente Símias. Talvez não seja um modo correto, em relação à virtude, trocar prazeres por prazeres, dores por dores, um temor por outro temor, o maior pelo menor, como se tratasse de uma troca de moedas. Ao contrário, talvez não haja aqui senão uma moeda que valha, em troca da qual tudo isso deva ser trocado: o pensamento! Sim, talvez seja bem este o valor que encerram todas essas coisas, aquilo com que se compram e se vendem todas elas: coragem, temperança, justiça; a verdadeira justiça, em suma, que é acompanhada de pensamento, haja ou não prazeres, temores e outras paixões semelhantes. Mas se isso for isolado do pensamento e objeto de troca mútua, tal virtude não passará talvez de uma encenação enganadora: virtude realmente servil, onde não haverá nada de são nem de verdadeiro. Ao contrário, a verdadeira realidade talvez seja uma certa purificação de todas estas paixões, constituindo a temperança, a justiça, a coragem; e talvez. afinal, o próprio pensamento seja um meio de purificação. E, acrescentarei, é possível que aqueles mesmos a quem devemos a instituição dos mistérios não sejam destituídos de mérito, e que isto seja a realidade oculta há muito tempo sob essa linguagem enigmática: aquele que chegar ao Hades sem haver participado dos mistérios e sem ter sido iniciado terá o seu lugar no Lodo, enquanto que o que tiver sido iniciado e purificado será colocado, ali chegando, na sociedade dos deuses. É que, como vês, segundo a fórmula dos que tratam das iniciações, “numerosos são os portadores de tirsos, e raros os Bacantes”. Ora, estes últimos, na minha opinião, não são outros senão aqueles que se ocupam da filosofia, no sentido verdadeiro da palavra.

* * *

Já estava frio quase todo o baixo ventre, quando ele descobriu o rosto – pois o havia coberto –, e disse estas palavras, as últimas que pronunciou:

-- Críton, nós somos devedores de um galo a Asclépio. Pois bem: paga a minha dívida, não o esqueças.

-- Isso será feito, respondeu Críton. Mas vê se não tens mais alguma coisa a dizer.

A pergunta de Críton ficou sem resposta. Um instante depois o corpo fez um movimento. O homem, então descobriu-o: os olhos de Sócrates estavam abertos e fixos. Vendo isso, Críton fechou-os assim como seus lábios.

Tal foi, Equécrates, o fim do nosso amigo, do homem de quem nós podemos dizer que, entre todos os de seu tempo, era o melhor que nos foi dado conhecer, e, além disso, o mais sábio e o mais justo.

Fonte: Platão, Fédon, Athena Editora, São Paulo, Brasil, 1941.

17 de novembro de 2025

A psicologia do oculto: psicanálise e psicologia analítica


As origens da psicanálise

As raízes da psicanálise encontram-se na ideia de inconsciente dinâmico presente em Johann Friedrich Herbart, que por sua vez foi influenciado por Leibniz e Fichte, os quais se referiam a certas “percepções imperceptíveis”. Para Herbart, as qualidades das coisas são representações, enquanto o ego se move entre as coisas contraditórias. Por detrás do ego está a alma imutável. As representações se comportam opondo-se umas às outras, convertendo-se em forças em conflito. Herbart divide a psicologia em duas partes: (1) a psíquica estática (equilíbrio das representações) e (2) a psíquica dinâmica (as representações mais fortes tornam-se consciente, as mais fracas abaixo do consciente). As representações, por sua vez, se agrupam em complexos (termos como repressão e resistência são usados nesse contexto). O ego é um complexo situado no centro da consciência. O processo pelo qual assimilamos novas representações é chamado de apercepção. A liberdade é o domínio dos complexos mais fortes, e constitui o caráter.

Observe que em tudo o que dissemos acima estão ausentes dois elementos fundamentais na psicologia: não há potências (ou “capacidades” ou “faculdades”) a serem aperfeiçoadas (atualizadas) e não há realmente um sujeito, um "eu", uma pessoa fundamental do psiquismo. E esses defeitos serão transmitidos por Herbart à psicanálise e à psicologia contemporânea em geral. Ora, assim como não há matemática sem quantidade, não há psicologia sem potência.

Outro autor que influenciou de maneira crucial a psicanálise foi Friedrich Nietzsche. Sua influência não é diretamente conceitual (embora Freud tenha tomado dele o conceito de id), mas mais quanto ao espírito de fundo que a psicanálise adota. A psicanálise procura realizar o projeto nietzscheano da transvaloração. Freud toma de Nietzsche a ideia de que a agressividade é reconduzida pelo indivíduo a seu interior em forma de sentimento de culpa.

Uma terceira raiz da psicanálise encontra-se nas psicoterapias do século XIX. Em especial, dois temas predominavam nessas psicoterapias eram a histeria e seu principal método de tratamento, a hipnose, operada por terapeutas como Charcot, Bernheim e Janet. Para eles, a neurose se fundava em um “trauma oculto” no “inconsciente”.

Por fim, cabe mencionar, como causa próxima, que o médico Josef Breuer foi para Freud o grande introdutor do conceito de inconsciente e, em especial, do método catártico. Houve tempo em que Freud chegava a atribuir-lhe o título de fundador da psicanálise. Esse método consiste na verbalização em estado hipnótico, estado este que Freud trocará, entre 1896 e 1900, pela livre associação de ideias fundando propriamente a psicanálise.

Vê-se, portanto, que Freud não foi o criador da psicologia, nem da psicoterapia, nem do inconsciente. No entanto, Freud foi, sim, um grande divulgador do conceito de inconsciente, o qual atribuía natureza demoníaca. Os interesses pelo oculto (hipnose, drogas, ocultismo), aliado à curiosidade por buscar um meio “mágico” de superar a depressão, são a base fundacional da psicanálise. Para Freud, ao fim e ao cabo o inconsciente ocupa o lugar do transcendente tradicional.

A mecânica da psicanálise

Para Freud, o aparato anímico nada mais é do que um conjunto de complexos, ou seja, um conjunto de representações. Essas representações são compostas, quantitativamente falando, de energia ou afeto, que circula pelas representações. No aparato anímico há também certos impulsos, isto é, necessidades orgânicas, que, no linguajar freudiano, são chamadas de pulsões. O sistema de complexos forma o que Freud, na fase madura de sua obra intelectual (a “segunda tópica”), chama de ego.

A conduta humana se explica pela necessidade de se desfazer de um excesso de excitação que supostamente desestabiliza o sistema de forças. Em outras palavras, o aparato anímico tende à quietude, não à atividade. É o princípio de constância. Não é difícil deduzir que o método de Freud supõe o mecanicismo (daí o título desta seção) e o determinismo absoluto.

As representações que não são coerentes com o ego, ou seja, com os complexos conscientes, são enviadas para o inconsciente em forma de repressões. As repressões ou têm causas morais ou causas estéticas.

A esta altura já podemos ter uma ideia mais clara, com base na figura abaixo, de como funciona o mecanismo de formação e manutenção dos complexos patogênicos no âmbito da psicanálise:

A diagram of a cell

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Quando uma representação é reprimida, a energia aí “estrangulada” é ocupada por uma formação substitutiva, que pode ser uma paralisia, uma obsessão, uma fobia, sonhos, atos falhos, perdas de objetos etc. Tais disfarces ocultam os vínculos com os complexos reprimidos. Ao deparar-se com uma resistência, o psicanalista saberá que está diante de uma repressão.

Dissemos acima que as causas da repressão são éticas ou estéticas. No entanto, tais causas manifestam-se no nível do consciente. No fundo, ou seja, no nível do inconsciente, os motivos estão ligados à sexualidade. É verdade que Freud postulava uma dualidade pulsional: a pulsão de autoconservação e a pulsão sexual, e mais tarde, no período chamado “segunda tópica” (quando introduz decididamente os conceitos de id, ego e superego), substitui tal dualidade pela pulsão de vida (eros) e pulsão de morte. No entanto, o eros abarca tanto a pulsão de autoconservação quanto a pulsão sexual. Em outras palavras, a tendência à autoconservação é sexual.

Nas fases iniciais da vida, o prazer sexual é percebido nas chamadas zonas erógenas, isto é, sobretudo a boca e o ânus, e mais tarde manifesta-se também nos órgãos genitais. De qualquer forma, a dinâmica envolve um excesso de excitação que precisa ser descarregado. O fim, para Freud, é a própria descarga, enquanto o objeto é aquilo sobre o qual ocorrerá a descarga. Já sabemos, pela grande fama que goza a psicanálise, que o primeiro objeto sexual é a mãe, e o desejo de ter satisfação sexual com ela é o famosíssimo complexo de Édipo. Não só a mãe, mas qualquer relação amorosa terá como fim a descarga da energia sexual. Por isso, na psicanálise freudiana, o afeto é algo sempre egocêntrico. Se amo a alguém é porque através desse alguém consigo descarregar minha energia sexual – em outras palavras, amo a alguém porque, acima de tudo, amo a mim mesmo.

O complexo de Édipo só pode ser superado quando o paciente aceita os tabus do incesto (desejo de fazer sexo com a mãe) e do parricídio (desejo de matar o pai por ciúmes da mãe) e identifica-se definitivamente com a figura paterna. No caso da menina, ela deve dar lugar ao “complexo de Édipo invertido” (Jung postulou mais tarde a expressão complexo de Elektra, embora não adotado por Freud). Quanto às mulheres, aliás, Freud acreditava que elas não se desenvolviam completamente porque a elas lhes faltaria o temor da castração.

É no alívio da pulsão que Freud explica a neurose e a perversão. Na neurose, o complexo teria sido mal reprimido, enquanto na perversão a pulsão é diretamente aliviada na realidade.  Quanto às neuroses, há dois tipos: as neuroses atuais [angústia (falta de satisfação sexual) e neurastenia (inadequada satisfação sexual, como a masturbação)] e as psiconeuroses [neurose de transferência (deslocar a energia para outro objeto distinto do ego) e neurose narcisista (psicose, ou seja, quanto a libido recai sobre o próprio ego)].

A “terapia”, na psicanálise, é a confissão de pensamentos e associações que afloram espontaneamente na consciência. Trata-se da famosa livre associação. A ideia é pouco a pouco desatar os “nós” dos complexos reprimidos e atingir o nó principal, isto é, o complexo de Édipo. A liberdade, no âmbito da terapia psicanalítica, é a tomada de consciência do caráter implacável do determinismo, ou seja, de que somos em última instância orientados inconscientemente pelas pulsões sexuais.

Id, ego e superego

A conhecida tríade freudiana – id, ego e superego – é conhecida como “segunda tópica”, conforme mencionamos brevemente acima. O id equivale ao inconsciente, e enquanto tal é assim que o indivíduo deve ser considerado inicialmente ou primordialmente. É no id que se encontram, claro, os complexos reprimidos e a “herança arcaica da humanidade”.

Se o id é como o individuo deve ser considerado, então como surge o ego? Ele surge porque a realidade e o id estão em conflito, e o ego surge para mediar e satisfazer em parte o id e em parte a realidade. O ego por um lado tem um aspecto inconsciente, cuja “função” é a repressão enquanto mecanismo de defesa, e por um outro lado é consciente e perceptivo. Freud fala muito pouco da racionalidade, então não sabemos ao certo “onde” a localiza. Para ele, a racionalidade não passa de associação de palavras, o que o põe em conformidade com a tradição nominalista.

Com o tempo, os valores dos pais e da cultura são introjetados no psiquismo formando assim o superego. Trata-se de uma espécie de “consciência moral”, contendo os ideais do ego e as proibições, isto é, os dois tabus que mencionamos acima (incesto e parricídio). O ego passa então a ser, nas palavras de Freud, “escravo de três amos”: o id, a realidade e o superego.

Para Freud, a vida psicológica humana é precária porque sua tendência é retornar ao inorgânico, à morte, e isto é algo incontornável, tornando a psicanálise interminável. Por isso falamos acima de "terapia" no contexto psicanalítico assim, entre aspas. Não há diferença ontológica entre vida e morte e, consequentemente, não há diferença entre enfermidade e normalidade. Na verdade, a enfermidade é a realidade fundamental. Melhorar o homem é uma ilusão. Não há o que melhorar quando a vida é morte. Aliás, o sentimento de culpa advindo primordialmente do complexo de Édipo é finalmente “resolvido” na psicanálise: ela é uma forma pós-religiosa de superação do pecado, uma verdadeira “metapsicologia”, a substituta da metafísica.

Este caráter mórbido e, digamos logo, ocultista da psicanálise fica mais claro em sua forma lacaniana. Explica Echavarría:

[Segundo Lacan], trata-se de assumir um papel antipedagógico [Echevarría contrasta o psicanalista com o psicólogo de inspiração aristotélico-tomista] e pós-moral, que serve para que a pessoa se dê conta de que Deus está morto, e de que, em seu lugar, resta apenas o vazio, a própria morte, que é a fonte última da angústia. Isso já está presente em Freud, só que de modo relativamente oculto, latente, tácito, ao passo que, em muitas outras interpretações filosóficas da psicanálise, tal finalidade já se encontra bastante explícita, como é o caso de algumas formas de psicanálise existencialista e, sobretudo, de psicanálise lacaniana e pós-lacaniana (que é, do ponto de vista filosófico, pós-moderna), que interpretam corretamente o espírito da terapia psicanalítica tal como Freud o sentiu. [...] Segundo a (tácita) teoria do conhecimento freudiana, não há a possibilidade de relação real com o psicoterapeuta, porque não há possibilidade de sair da própria psique. Nesse sentido, Freud aproxima-se do idealismo: não se pode transcender as próprias imagens.

Nas palavras de Michel Onfray, “a psicanálise é uma disciplina que pertence ao campo da psicologia literária, vem da autobiografia de sue inventor e funciona às mil maravilhas para compreender a ele, e só a ele. [...] A terapia psicanalítica é a ilustração de um ramo do pensamento mágico: como tratamento, funciona no estrito limite do efeito placebo”. Exageradas palavras estas porque o efeito placebo, afinal, é um efeito real. 

A psicanálise pós-freudiana

(1) Psicologia do ego: desenvolvida por Paul Shilder, Anna Freud, Heinz Hartmann, Rudolph Loewenstein e Ernst Kris. Haveria uma área no ego que estaria livre de conflitos, o que levou uma aproximação com a psicologia acadêmica. Lacan condenava este tipo de psicanálise por querer aproximá-la da mentalidade pragmática americana.

(2) Psicanálise das relações objetais: desenvolvida por Melanie Klein, Donald Winnicot e Wilfred Bion. Estuda as relações de objeto (vimos acima o que é um “objeto” para um psicanalista) na primeira infância, o que inclui elucubrar sobre a relação do recém-nascido com o seio da mãe.

(3) Psicologia do self: desenvolvida especialmente por Heinz Kohut. É uma tentativa de refundar a psicanálise por meio do conceito de self.

(4) Neopsicanálise: desenvolvida por Karen Horney, Harry Stack Sullivan, Franz Alexander e Erich Fromm. Estes autores mantêm a importância do inconsciente e de suas formas de expressão, mas não aderem estritamente às interpretações teóricas de Freud. Descobertas importantes e interessantes foram feitas por eles.

(5) Jacques Lacan. Por si só constitui uma escola à parte. Em suma, empreende uma releitura de Freud, servindo-se da linguística estrutural de De Saussure. Segundo Lacan, “a insistência [id] faz referência à montagem do inconsciente pessoal em uma cadeia de significados que o ultrapassa e na qual está integrado, que é a própria linguagem inconsciente. A ex-sistência [ego] faz referência à exterioridade do inconsciente, que não é possuído por um sujeito pessoal – mas é antes ele quem possui um indivíduo, que é fruto de uma violência interpretativa dentro do horizonte da linguagem”. Portanto, em Lacan a linguagem é um elemento de violência simbólico. Lacan é um verdadeiro profeta da “verdade da não-verdade”, do irracional, do nonsense. A busca da verdade é um inimigo da experiência da “autognose psicanalítica”.

O inconsciente em Jacques Maritain

Maritain (genial tomista dos graus do saber) admitia a ideia de um inconsciente automático-surdo, formado na primeira infância e composto de automatismos da parte sensitivo-apetitiva, mas por cima do qual, e mais importante, haveria um inconsciente espiritual-musical, do qual brotaria a inspiração poética, em paralelo ao intelecto agente e à species intelligibilis (que também são como que “inconscientes”, aliás).

Curiosamente, segundo Maritain, Jesus Cristo também teria este inconsciente espiritual, mas no Seu caso é uma forma tão superior de consciência, tão “supraconsciente” (visão beatífica), que Sua consciência humana não seria afetada, funcionando como um total inconsciente. Às vezes Maritain se refere a tal inconsciente espiritual como uma operação mental, como a famosa “intuição do ser”, que pode ocorrer supraconscientemente na criança e no poeta, e conscientemente no aprendiz de filósofo e no filósofo. Em todo caso, trata-se de algo fora e acima do terceiro grau de abstração (vimos este grau no estudo sobre os graus do saber).

A psicologia analítica de Carl Jung

Em linhas gerais, o que Jung fez foi traduzir as doutrinas e práticas espíritas nos termos da psicologia profunda (ou "psicologia do oculto", como a chamei aqui). Entre outros espíritas, Jung cita Madame Blavatsky, a gnose antiga, a alquimia e as religiões orientais (budismo, hinduísmo). Estão presentes influências filosóficas como Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche e outros. Jung é muito influente entre os adeptos do movimento New Age.

À diferença de Freud, Jung leva em conta, além do inconsciente pessoal, o inconsciente coletivo. A totalidade da psique, que inclui o inconsciente coletivo, é chamado de self. As unidades dos complexos reprimidos do inconsciente coletivo não são os complexos, mas os arquétipos. Não é simples entender o que são os arquétipos porque o próprio Jung oscila ao explicá-lo. Parece que se trata de uma forma a priori kantiana que estrutura a psique de tal forma a reproduzir as mesmas imagens em diferentes culturas e indivíduos, e que tem algum tipo de relação com o cérebro. Essas formas não são eternas, mas fruto da marcha da história humana. Os símbolos, que seriam semelhantes entre diferentes culturas e eras, são o resultado da síntese entre os arquétipos e a experiência. Note que a psicologia funciona aqui como uma substituta da religião, já que pretende explicar os fenômenos “numênicos” como uma religião teísta o faria. Os arquétipos, em Jung, funcionam como personalidades independentes, como “anjos” ou “deuses” com razão e vontade próprias e distintas do ego consciente. Esses arquétipos (a sombra, a anima, o sábio ancião etc.) são como espíritos guias que introduzem o iniciado no mistério da psique. A imaginação ativa é a técnica que, inspirada nas técnicas espíritas, coloca o psiquismo sob as personalidades ocultas no inconsciente coletivo. Trata-se de um relaxamento para um transe mediante um diálogo, que, através de imagens como mandalas, diminui o controle racional e volitivo para, por fim, abandonar o paciente às forças habitantes do mundo inconsciente.

O que Jung quer é que os homens trilhem seu processo de individuação, ou seja, que alcancem a plena consciência de sua divindade. Para isso, é necessário que aceitem o mal ontológico (já vimos algo sobre isso na gnose) e alcancem, não a perfeição, mas a “completude”, assimilando todos os conteúdos do inconsciente na consciência. Há arquétipos maus com os quais os homens têm de aprender a conviver, isto é, a viver com seus “demônios”.

Por isso, para Jung, Deus não é Trindade, mas Quaternidade porque inclui o Demônio, o deus deste mundo, que às vezes também é a mulher, a “mãe terra”, o Eterno Feminino. A psicologia analítica é, assim, “um símbolo de uma busca interior de transmutação em deus através da operação mágica do conhecimento oculto (a gnose)”, é um “despertar da centelha, tanto divina quanto diabólica, trancada no inconsciente”. Assim como o alquimista traz da pedra suas propriedades ocultas, o psicólogo analítico traz das profundezas da psique o deus terreno/demônio.

Fonte: Martín Echavarría, Correntes de psicologia contemporânea, Editora CDB, Rio de Janeiro, Brasil, 2022.

3 de novembro de 2025

Algumas palavras sobre dor e sofrimento


A realidade, o mundo real, é o campo da verdade. Assim, enfrentar as dores significa extrair da realidade a verdade nela contida. Mas não somente isso: as dores são fundamentais para a manifestação da graça de Deus porque o poder humano, a despeito de qual seja, mesmo em meio à virtude, corrompe. Por isso todos os homens que manifestaram a graça de Deus tiveram de viver em fraqueza pois, sem fraqueza, a graça divina gera o diabo no ser. A tendência dos homens é serem santos de si mesmos.

Ocorre que uma coisa é dor, outra é sofrimento. O sofrimento é a interpretação traumatizada de uma dor, e frequentemente a dor em si é infinitamente menor, insignificante. Por exemplo, o medo de sentir dor já é em si um sofrimento.

A mente lida bem com causa e efeito, com o que é proporcional. Mas não é fácil lidar com um sofrimento fantasioso, de uma construção fantasiosa de dor. Além de serem totalmente infelizes, as pessoas que maximizam a dor são deixadas sozinhas, rejeitadas, desprezadas, abandonadas.

O sofrimento, explica Caio Fábio, vem de nosso estado de consciência, fruto da “árvore do conhecimento do bem e do mal”.  É o ego, fruto dessa percepção, que sentimos hoje a morte e o sofrimento. O mal existe, mas ele só existe na mente humana, não tem realidade ontológica. Jesus Cristo nunca se referiu ao mal como algo metafísico, hipostático, mas algo que existe no coração humano.

O sofrimento existe para aquele que não consegue encontrar um sentido que transcenda a dor. O sofrimento bloqueia o amor, que, por conseguinte, bloqueia a vida.

A realidade é simples: a humanidade que tem acesso aos meios de comunicação e aos recursos da modernidade existe em estado de alienação e autoengano sobre o significado natural da morte, da saída dos filhos de casa, do desenvolvimento natural dos filhos e, portanto, existe em estado de culto ao trauma e, mais do que isso, em estado de fuga ou de tratamento da dor.

[...]

A alma humana precisa ser sensível, sem ser frágil. As almas mais poéticas, mais filosóficas, mais psicológicas, mais sensíveis que já passaram pela história humana foram também as mais fortes e, paradoxalmente, as mais expostas à dor, ao trauma e à percepção como experiência do desconforto.

O motor das religiões, por sua própria mecânica e natureza, é a culpa. Da culpa vêm a vergonha, o medo, a fuga e, sobretudo, a fobia da morte. Mas os pecados, sejam presentes, passados e futuros, já foram pagos por Jesus Cristo “desde antes da fundação do mundo”. É sem culpa que devemos tratar dos pecados, das fraquezas, das imperfeições. Em suma, para viver em paz é necessário saber três coisas: (1) a vida tem um significado maior que a presente existência (sem fé em Deus jamais haverá vida em nós), (2) o significado da vida passa pelas pequeninas coisas da existência (a “paga” pela dor é pode comer o pão, beber o vinho, amar e ser amado), (3) a existência é uma bobagem e, ao mesmo tempo, é sublime.

Uma das marcas da saúde mental de uma pessoa é a sua capacidade de variar temas, interesses, assuntos e uma abertura total para tudo o que seja humano e vida. Portanto, a maior marca de saúde mental é a alegria de ser, amar, conhecer e participar da vida, fazendo isso com amor e bom senso, sem medo da dor, especialmente da dor do amor. [...] Qualquer normalidade que não signifique individualidade capaz de interação humana e, portanto, social não é normalidade. [...] Por mais que você seja você mesmo, esse “você mesmo” só será uma individualidade sadia se for capaz do “você também”. A saúde da existência pessoal acontece nessa permanente tensão entre o “você mesmo” e o “você também”. O objetivo, no entanto, é que a maturidade faça diminuir essa tensão.

[...]

Certas marcas da normalidade podem e devem existir. Primeiro, todo ser humano precisa ser humano. Por humano quero dizer aquilo que é o fator diferencial entre o humano e o não humano, que é a gentileza e a compaixão. Segundo, todo ser humano precisa e deve perceber a existência de todos os demais humanos. Um ser humano para quem somente ele mesmo existe está perdendo humanidade, pois a verdadeira humanidade se faz, também, a partir do reconhecimento do semelhante. Assim, o normal é amar e ser misericordioso. Para Jesus, o amor é a qualidade que dá saúde e normalidade a todo ser humano.

[...]

A decisão de odiar também é profundamente moral e traz sofrimentos muito grandes, porque ninguém sofre mais do que aquele que odeia. O ódio é uma leucemia psíquica, e é extremamente penoso viver assim.

E como enfrentar a dor? Acima de tudo, com gratidão. A gratidão é filha da graça e cria uma existência nova e feliz. Jesus Cristo venceu o mundo e, agora, podemos celebrar a vida, as pessoas, os encontros, os amigos. E também perseverança, entendendo que a cada dor do existir é uma oportunidade de crescimento e amadurecimento, sem deixar que a dor seja seu humor. Por fim, com alegria, uma vez que ela só poderá se estabelecer se permitirmos que a eternidade nos invada e que o homem transcenda na esperança da glória em Deus.

No entanto, aqui cabe uma observação importante: viver pela fé significa não viver pela emoção. A alma é retardada, tardia, lenta. O espírito pode já ter visto a vitória, mas a alma ainda permanece lamuriosa e enlutada. Eis o homem pneumático: ele ri, chora, sente solidão, desejo, amor, tem sonhos, gostos etc., mas tudo isso é conduzido por seu espírito: ele aprecia tudo o que faz bem, ele sabe que para sentir-se bem tem de viver bem. A paz do mundo é emocional. A paz de Deus é ultracircunstancial.

Fonte: Caio Fábio, O que o sofrimento ensina, Editora Planeta, São Paulo, Brasil, 2018.

29 de outubro de 2025

Ordem, incerteza e capitalismo


Primeira hipótese
. Só há uma ação primeira. Todo o demais é um desenrolar inevitável, mesmo que quântico, sem arbítrio. O indivíduo é mais uma peça nessa grande sequência de queda de dominós. Somente o primeiro dominó é derrubado.

Segunda hipótese. Há várias ações primeiras porque há escolhas, que são alimentadas pela Fonte e realizadas pelo organismo. O indivíduo é uma peça que escolhe cair e iniciar uma nova sequência de quedas em meio a inúmeras outras quedas em andamento.

Terceira hipótese. Há ordem e aleatoriedade nas quedas dos dominós.

Eduardo Moreira entende que vivemos sob uma “ditadura da ordem”, ou seja, sob uma ditadura da necessidade de tentar prever o futuro, sob uma ditadura da necessidade não só de explicar o cosmo, mas prever o cosmo. Somos impelidos a criar uma história para que nos sintamos capazes de prever eventos futuros. Ele cita a mecânica quântica, em especial a dicotomia onda-partícula, como uma evidência de que continuamos a nos apegar a uma explicação ordenada da realidade.

A ciência nos escraviza, acredita Moreira, ao impor-nos uma ordem, e nos afasta da conexão com o que não pode ser medido. “Há uma fissura existencial profunda no ser humano” com a morte de Deus, com a morte da Fonte de infinitas possibilidades, com a morte da Pura Incerteza. Moreira estende sua crítica à ditadura da ordem ao capitalismo: haveria no capitalismo um caminho certo para a felicidade, qual seja, a aquisição de bens de consumo e acúmulo de dinheiro para eliminar toda e qualquer incerteza. Um caminho impossível porque, afinal, a felicidade só é possível na incerteza.

Moreira propõe que devemos subverter a ordem para sermos a Paz.

Fonte: Eduardo Moreira, A Intenção Primeira, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil, 2023.