Quer comais quer bebais, ou façais qualquer
outra coisa, fazei tudo para glória de Deus. (1 Coríntios 10:31)
Porque vale mais um dia nos teus átrios do que mil. (Salmos 84:10)
Hoje este blog completa 20 anos e pensei
que seria um bom momento para refletir a respeito da noção de progresso intelectual e, de quebra, cumprir, com imenso atraso, a promessa do post inaugural e tecer
alguns comentários sobre o livro que inspirou seu nome.
Em uma recente entrevista,
o médico e escritor Drauzio Varella see fez uma pergunta retórica: o que seria dele se não tivesse aprendido o que aprendeu nos
livros e estudos ao longo de seus 81 anos? O quanto sua consciência estaria
limitada a uma visão adolescente do mundo? De quais experiências e vivências
estaria ele privado não fosse a abertura e a riqueza que a vida intelectual lhe
proporcionou? Que aventura mesquinha e medíocre teria sido sua vida se seu
espírito não tivesse sido tocado pelo conhecimento?
Progredir intelectualmente não é acumular
ideias e fatos filosóficos e científicos. Isso não é intelectualidade, mas
erudição. É verdade que a erudição é em grande medida necessária para o desenvolvimento
da vida intelectual, mas não deve ser confundida com ela. O intelecto se
desenvolve quando ele se adequa às verdades que descobre. É como se o intelecto
se moldasse às, ou mesmo se tornasse as, verdades que vai descobrindo ao longo do tempo e, assim, adquirindo
a “forma” da própria verdade. Intelecto não é “cognição”, mas a parte mais
elevada do composto humano, ou seja, aquilo que temos de mais propriamente humano. Por exemplo, posso saber tudo sobre as formas a priori de Kant, ou seja, posso saber explicá-las
de memória com grande destreza e precisão, mas se elas não correspondem ao real então não se
trata de uma expressão de minha vida contemplativa, mas mera expressão de meu nível
cultural.
E que importância tem isso? Toda. Se
levarmos a sério as palavras de Cristo de que ele é a Verdade, e que
naturalmente toda verdade criada participa da Verdade incriada, ou seja, do
próprio Cristo, então não é difícil concluir que vida intelectual também é vida
espiritual. Ao contrário do que se poderia imaginar, o aperfeiçoamento do
intelecto (noûs) é o aperfeiçoamento do espírito humano por definição.
E o aperfeiçoamento do espírito humano implica por conseguinte no aperfeiçoamento do
caráter.
Acho cabível aqui mencionar precisamente um dos erros crassos deste grande expoente da teologia da Igreja Ortodoxa, o Pe. John Romanides. Pessoalmente o tenho com grande admiração e carinho porque foi com ele, além do Pe. Seraphim Rose, que aprendi grande parte do que sei sobre Jesus Cristo, os santos e a Igreja. No entanto, embora tenha acertado na mosca ao denunciar a religião como uma doença espiritual – o que, aliás, se aplica à própria religião cristã ortodoxa e sua mecânica litúrgico-sacramental –, o Pe. Romanides procurou alçar a Ortodoxia à pura espiritualidade do tipo monástica, isto é, à tríade purificação/iluminação/glorificação. Este expediente, claro, encontra enorme respaldo na experiência acumulada por séculos de prática hesicasta, deividamente compilada na Filocalia, mas não deixa de portar um traço ideológico inaceitável: a ideia, repetida ad nauseam pelo Pe. Romandies e seus discípulos, de que não há absolutamente nenhuma relação entre criado e Incriado. Tal postura, claramente nominalista como o próprio Pe. Romanides cogita, não tem nada de tradicional ou “ortodoxa”, mas denota uma tentativa de blindar a Ortodoxia de qualquer mácula escolástica e estabelecer um limite claro, embora falso, entre ambos. É compreensível que a partir do século XX os ortodoxos tenham se visto obrigados a elaborar uma divisão transcultural entre teologia “ocidental” e “oriental” (a exemplo de Georges Florovsky e Vladimir Lossky), mas o resultado não foi apenas inconveniente no sentido de criar um pretenso elitismo espiritual entre a Igreja oriental e as igrejas ocidentais, mas é algo simplesmente falso. A filosofia antiga, em especial Platão e Aristóteles, sempre foram para os Padres não apenas recursos indispensáveis para transmitir a Verdade revelada, mas elas mesmas, em si, são parte, embora inferior, claro, da própria Verdade. Neste sentido, os ortodoxos fariam bem em não temer, mas, pelo contrário, acolher seletivamente Tomás de Aquino e seus seguidores em geral. É o que temos procurado fazer aqui ultimamente, entre muitos outros objetivos. O Espírito, assim como o vento, sopra onde quer. Se Ele até aqui não quis soprar em mim isso não significa que eu deva fingir que estou investindo-me das energias divinas pela prática religiosa, mas devo, isso sim, como mendigo, buscá-Lo humildemente absorvendo o ser dos entes dados através de suas essências criadas. Se Deus não fez o cosmo com base em Si mesmo então o fez com base em quê? Sim, eu sei, a vida intelectual não leva à theoria, mas, como diz o povo, é o que temos para hoje.
Esta breve digressão reforça o
objetivo deste blog: servir de instrumento para a conservação e progressão da
alma após a morte. Sem este objetivo em mente é impossível ordenar o restante
de nossas vidas, por mais “sentido” que tentemos dar-lhe. Se aqui estudamos
filosofia, psicologia, religião, esoterismo, história, cultura, o que quer que
seja, a meta é uma só: enriquecer o noûs comungando-o com a Verdade. Se mulher,
família, trabalho e estudos não estiverem orientados a este fim supremo então
nada fará real sentido. O amor é o princípio de tudo, então todas as ações
humanas têm de estar ordenadas ao Amor. Tente algo diferente e o resultado será
depressão, melancolia, tristeza. Se a passagem para o mundo inteligível não lhe
apetece, ouça ao menos os sinais que lhe dão seu próprio mundo sensível e, a
partir daí, reflita e reaja.
E eis por que a obra do Pe. Sertillanges
tem tanta importância. Não tanto pelos seus conselhos práticos, que podem ou
não lhe ser úteis, mas pela ideia-força, verdadeiramente genial, de que longe
dos homens somos mais homens. É na vida interior que tomamos contato com o ser
das coisas, com o ser do mundo e, claro, com o ser humano, com a humanidade. É
longe dos homens, ou seja, ali no interior de nosso ser, que estaremos mais com
os homens. É ali, na vida noética, que encontraremos os bens a serem
compartilhados em amor fraterno com os homens. Não se trata aqui de solidão propriamente,
mas de recolhimento. Ao intelectual só a verdade interessa, e todo o resto deve
a ela submeter-se.
Não é difícil deduzir, portanto, o que deve
ser estudado primordialmente pelo intelectual. Se a ordem do espírito deve
corresponder à ordem das coisas, e se há um Ser primeiro, é aí que o saber deve
findar-se e é daí que deve extrair sua luz: metafísica, psicologia, cosmologia
e moral, eis os assuntos sobre os quais o espírito deve aplicar-se porque a
estrutura desses saberes corresponde à constituição do real e da inteligência.
Todas as demais ciências dependerão das verdades colhidas nessas.
E eis aqui que entram em cena as virtudes
necessárias para a vida intelectual. Trata-se, acima de tudo, da humildade.
A inteligência tem por base a exclusão do orgulho porque o orgulho sente
repulsa por uma ordem fora e acima dele. Ser intelectualmente forte implica,
portanto, em ser receptivo, e ser receptivo implica em ser humilde. Uma das
leis do nôus é a passividade porque, como se sabe, o intelecto compreende
tornando-se outro, e se nossa postura diante do real for de intencionalidade,
de “ansiedade”, o entendimento não ocorrerá, a verdade não penetrará.
Talvez a virtude mais prática seja a conciliação
(ou acomodação). A ideia de Sertillanges, que considero fundamental,
é que o estudioso não contraponha autores, mas os concilie. E, novamente, a
ideia é simples: o que é interessante não são os pensamentos, mas as verdades
e, portanto, não são os combates dos homens, mas sua obra e o que dela permanece.
O que deve despertar o interesse do intelectual são os pontos de contato entre
os autores, e é aí que deve empreender sua investigação.
Por fim, não nos esqueçamos que é a vida
intelectual que confere unidade interior à alma. Sem ela, alguma mania ou paixão
se apresentará sub-repticiamente como substituta da unidade, e nossas fraquezas
voltarão a dominar.
* * *
As pessoas geralmente não sabem a que ponto a inteligência é plástica e receptiva a estímulos.
[...]
Pelo pensamento nós encontramos algo, não o fazemos.
[...]
A humildade é o olho que lê no livro da vida e no livro do universo.
[...]
Aquele que aprende sempre pode chegar a nunca instruir-se se não modificar em sua própria substância o que aprendeu em dóceis intercâmbios. [...] O que eu absorvo deve tornar-se eu.
[...]
A contemplação parte do amor e termina na alegria: amor do objeto e amor do conhecimento enquanto ato de vida; alegria da possessão ideal e do êxtase que ela provoca.
[...]
A recompensa de uma obra é tê-la feito; a recompensa do esforço é ter crescido. Coisa espantosa, o verdadeiro intelectual parece escapar dessas tristezas causadas pela idade que infligem a tantos homens uma morte antecipada. Ele mantém-se jovem até o fim. Dá a impressão de tomar parte da juventude eterna do verdadeiro. Tendo em geral amadurecido muito cedo, continua maduro, em nada azedo nem decaído, quando a eternidade vem recolhê-lo.
[...]
Essa confiança que está fundada sobre uma lei das coisas pertence ao trabalho mais que ao trabalhador; no entanto, o trabalhador, também ele, deve ter fé em si mesmo. Não tem ele consigo o Deus que disse: O que busca encontra, e a quem bate, abrir-se-lhe-á? Todos nós temos a Verdade por trás de nós, e ela nos impele pela inteligência; nós a temos diante de nós e ela nos chama, acima de nós, e nos inspira. [...] A luz pode filtrar através das brechas que nosso esforço alarga; quando ela se faz presente, por si mesma expande e firma seu reinado.
Fonte: A.-D.
Sertillanges, A vida intelectual, É Realizações Editora, São Paulo,
Brasil, 2020.