Ocorre que uma coisa é dor, outra é sofrimento.
O sofrimento é a interpretação traumatizada de uma dor, e frequentemente a dor
em si é infinitamente menor, insignificante. Por exemplo, o medo de sentir dor já
é em si um sofrimento.
A mente lida bem com causa e efeito, com o que é proporcional. Mas não é fácil lidar com um sofrimento fantasioso, de uma construção fantasiosa de dor. Além de serem totalmente infelizes, as pessoas que maximizam a dor são deixadas sozinhas, rejeitadas, desprezadas, abandonadas.
O sofrimento, explica Caio Fábio, vem de
nosso estado de consciência, fruto da “árvore do conhecimento do bem e do mal”. É o ego, fruto dessa percepção, que sentimos
hoje a morte e o sofrimento. O mal existe, mas ele só existe na mente humana,
não tem realidade ontológica. Jesus Cristo nunca se referiu ao mal como algo
metafísico, hipostático, mas algo que existe no coração humano.
O sofrimento existe para aquele que não consegue
encontrar um sentido que transcenda a dor. O sofrimento bloqueia o amor, que,
por conseguinte, bloqueia a vida.
A realidade é simples: a humanidade que tem acesso aos meios de comunicação e aos recursos da modernidade existe em estado de alienação e autoengano sobre o significado natural da morte, da saída dos filhos de casa, do desenvolvimento natural dos filhos e, portanto, existe em estado de culto ao trauma e, mais do que isso, em estado de fuga ou de tratamento da dor.
[...]
A alma humana precisa ser sensível, sem ser frágil. As almas mais poéticas, mais filosóficas, mais psicológicas, mais sensíveis que já passaram pela história humana foram também as mais fortes e, paradoxalmente, as mais expostas à dor, ao trauma e à percepção como experiência do desconforto.
O motor das religiões, por sua própria
mecânica e natureza, é a culpa. Da culpa vêm a vergonha, o medo, a fuga e,
sobretudo, a fobia da morte. Mas os pecados, sejam presentes, passados e
futuros, já foram pagos por Jesus Cristo “desde antes da fundação do mundo”. É
sem culpa que devemos tratar dos pecados, das fraquezas, das imperfeições. Em
suma, para viver em paz é necessário saber três coisas: (1) a vida tem um
significado maior que a presente existência (sem fé em Deus jamais haverá vida
em nós), (2) o significado da vida passa pelas pequeninas coisas da existência
(a “paga” pela dor é pode comer o pão, beber o vinho, amar e ser amado), (3) a existência
é uma bobagem e, ao mesmo tempo, é sublime.
Uma das marcas da saúde mental de uma pessoa é a sua capacidade de variar temas, interesses, assuntos e uma abertura total para tudo o que seja humano e vida. Portanto, a maior marca de saúde mental é a alegria de ser, amar, conhecer e participar da vida, fazendo isso com amor e bom senso, sem medo da dor, especialmente da dor do amor. [...] Qualquer normalidade que não signifique individualidade capaz de interação humana e, portanto, social não é normalidade. [...] Por mais que você seja você mesmo, esse “você mesmo” só será uma individualidade sadia se for capaz do “você também”. A saúde da existência pessoal acontece nessa permanente tensão entre o “você mesmo” e o “você também”. O objetivo, no entanto, é que a maturidade faça diminuir essa tensão.
[...]
Certas marcas da normalidade podem e devem existir. Primeiro, todo ser humano precisa ser humano. Por humano quero dizer aquilo que é o fator diferencial entre o humano e o não humano, que é a gentileza e a compaixão. Segundo, todo ser humano precisa e deve perceber a existência de todos os demais humanos. Um ser humano para quem somente ele mesmo existe está perdendo humanidade, pois a verdadeira humanidade se faz, também, a partir do reconhecimento do semelhante. Assim, o normal é amar e ser misericordioso. Para Jesus, o amor é a qualidade que dá saúde e normalidade a todo ser humano.
[...]
A decisão de odiar também é profundamente moral e traz sofrimentos muito grandes, porque ninguém sofre mais do que aquele que odeia. O ódio é uma leucemia psíquica, e é extremamente penoso viver assim.
E como enfrentar a dor? Acima de tudo, com gratidão.
A gratidão é filha da graça e cria uma existência nova e feliz. Jesus Cristo
venceu o mundo e, agora, podemos celebrar a vida, as pessoas, os encontros, os
amigos. E também perseverança, entendendo que a cada dor do existir é uma
oportunidade de crescimento e amadurecimento, sem deixar que a dor seja seu
humor. Por fim, com alegria, uma vez que ela só poderá se estabelecer se
permitirmos que a eternidade nos invada e que o homem transcenda na esperança
da glória em Deus.
No entanto, aqui cabe uma observação
importante: viver pela fé significa não viver pela emoção. A alma é retardada, tardia,
lenta. O espírito pode já ter visto a vitória, mas a alma ainda permanece lamuriosa
e enlutada. Eis o homem pneumático: ele ri, chora, sente solidão, desejo, amor,
tem sonhos, gostos etc., mas tudo isso é conduzido por seu espírito: ele
aprecia tudo o que faz bem, ele sabe que para sentir-se bem tem de viver bem. A
paz do mundo é emocional. A paz de Deus é ultracircunstancial.
Fonte: Caio Fábio, O que o sofrimento ensina, Editora Planeta, São Paulo, Brasil, 2018.
