As origens da psicanálise
As raízes da psicanálise encontram-se na
ideia de inconsciente dinâmico presente em Johann Friedrich Herbart,
que por sua vez foi influenciado por Leibniz e Fichte, os quais se referiam a
certas “percepções imperceptíveis”. Para Herbart, as qualidades das coisas são representações,
enquanto o ego se move entre as coisas contraditórias. Por detrás do ego
está a alma imutável. As representações se comportam opondo-se umas às
outras, convertendo-se em forças em conflito. Herbart divide a
psicologia em duas partes: (1) a psíquica estática (equilíbrio das
representações) e (2) a psíquica dinâmica (as representações mais fortes
tornam-se consciente, as mais fracas abaixo do consciente). As representações,
por sua vez, se agrupam em complexos (termos como repressão e resistência
são usados). O ego é um complexo situado no centro da consciência. O
processo pelo qual assimilamos novas representações é chamado de apercepção.
A liberdade é o domínio dos complexos mais fortes, e constitui o caráter.
Observe que em tudo o que dissemos acima
estão ausentes dois elementos fundamentais da psicologia: não há potências (ou
“capacidades” ou “faculdades”) nem sujeito. E esse defeito será transmitido por
Herbart à psicanálise e à psicologia contemporânea em geral. Assim como não há
matemática sem quantidade, não há psicologia sem potência.
Outro autor que influencia de maneira
crucial a psicanálise foi Friedrich Nietzsche. Sua influência não
é diretamente conceitual (embora Freud tenha tomado dele o conceito de id),
mas mais quanto ao espírito de fundo que a psicanálise adota. A
psicanálise procura realizar o projeto nietzscheano da transvaloração.
Freud toma de Nietzsche a ideia de que a agressividade é reconduzida pelo
indivíduo a seu interior em forma de sentimento de culpa.
Uma terceira raiz da psicanálise
encontra-se nas psicoterapias do século XIX. Em especial, dois temas
predominavam nessas psicoterapias: a histeria e seu principal método de
tratamento, a hipnose, operada por terapeutas como Charcot, Bernheim e
Janet. Para eles, a neurose se fundava em um “trauma oculto” no “inconsciente”.
Por fim, cabe mencionar, como causa
próxima, que o médico Josef Breuer foi para Freud o grande introdutor do
conceito de inconsciente e, em especial, do método catártico.
Houve tempo em que Freud chegava a atribuir-lhe o título de fundador da
psicanálise. Esse método consiste na verbalização em estado hipnótico, estado
este que Freud trocará, entre 1896 e 1900, pela livre associação de ideias
fundando propriamente a psicanálise.
Vê-se, portanto, que Freud não foi o
criador da psicologia, nem da psicoterapia, nem do inconsciente. No entanto,
Freud foi, sim, um grande divulgador do conceito de inconsciente, o qual
atribuía natureza demoníaca. Os interesses pelo oculto (hipnose, drogas,
ocultismo), aliado à curiosidade por buscar um meio “mágico” de superar a
depressão, são a base fundacional da psicanálise. Para Freud, ao fim e ao cabo
o inconsciente ocupa o lugar do transcendente tradicional.
A mecânica da psicanálise
Para Freud, o aparato anímico nada
mais é do que um conjunto de complexos, ou seja, um conjunto de representações.
Essas representações são compostas, quantitativamente falando, de energia
ou afeto, que circula pelas representações. No aparato anímico há também
certos impulsos, isto é, necessidades orgânicas, que, no linguajar freudiano,
são chamadas de pulsões. O sistema de complexos forma o que Freud, na
fase madura de sua obra intelectual (a “segunda tópica”), chama de ego.
A conduta humana se explica pela
necessidade de se desfazer de um excesso de excitação que supostamente
desestabiliza o sistema de forças. Em outras palavras, o aparato anímico tende
à quietude, não à atividade. É o princípio de constância. Não é difícil
deduzir que o método de Freud supõe o mecanicismo (daí o título desta
seção) e o determinismo absoluto.
As representações que não são coerentes com
o ego, ou seja, com os complexos conscientes, são enviadas para o inconsciente
em forma de repressões. As repressões ou têm causas morais ou causas
estéticas.
A esta altura já podemos ter uma ideia mais
clara, com base na figura abaixo, de como funciona o mecanismo de formação e
manutenção dos complexos patogênicos no âmbito da psicanálise:
Quando uma representação é reprimida, a
energia aí “estrangulada” é ocupada por uma formação substitutiva, que
pode ser uma paralisia, uma obsessão, uma fobia, sonhos, atos falhos, perdas de
objetos etc. Tais disfarces ocultam os vínculos com os complexos reprimidos. Ao
deparar-se com uma resistência, o psicanalista saberá que está diante de
uma repressão.
Dissemos acima que as causas da repressão
são éticas ou estéticas. No entanto, tais causas manifestam-se no nível do
consciente. No fundo, ou seja, no nível do inconsciente, os motivos estão
ligados à sexualidade. É verdade que Freud postulava uma dualidade pulsional: a
pulsão de autoconservação e a pulsão sexual, e mais tarde, no
período chamado “segunda tópica” (quando introduz decididamente os conceitos de
id, ego e superego), substitui tal dualidade pela pulsão de vida (eros)
e pulsão de morte. No entanto, o eros abarca tanto pulsão de autoconservação
quanto a sexual. Em outras palavras, a tendência à autoconservação é sexual.
Nas fases iniciais da vida, o prazer sexual
é percebido nas chamadas zonas erógenas, isto é, sobretudo a boca e o ânus,
e mais tarde manifesta-se também nos órgãos genitais. De qualquer forma, a
dinâmica envolve um excesso de excitação que precisa ser descarregado. O fim,
para Freud, é a própria descarga, enquanto o objeto é aquilo sobre o
qual ocorrerá a descarga. Já sabemos, pela grande fama que goza a psicanálise,
que o primeiro objeto sexual é a mãe, e o desejo de ter satisfação sexual com
ela chama-se complexo de Édipo. Não só a mãe, mas qualquer relação
amorosa, terá como fim a descarga da energia sexual. Por isso, na psicanálise
freudiana, o afeto é algo sempre egocêntrico. Se amo a alguém é porque através
desse alguém consigo descarregar minha energia sexual – em outras palavras, amo
a alguém porque, acima de tudo, amo a mim mesmo.
O complexo de Édipo só pode ser superado quando
o paciente aceita os tabus do incesto (desejo de fazer sexo com a mãe) e do
parricídio (desejo de matar o pai por ciúmes da mãe) e identifica-se
definitivamente com a figura paterna. No caso da menina, ela deve dar lugar ao “complexo
de Édipo invertido” (Jung postulou mais tarde a expressão complexo de
Elektra). Quanto às mulheres, aliás, Freud acreditava que elas não se
desenvolviam completamente porque a elas lhes falta o temor da castração.
É no alívio da pulsão que Freud explica a neurose
e a perversão. Na neurose, o complexo teria sido mal reprimido, enquanto
na perversão a pulsão é diretamente aliviada na realidade. Quanto às neuroses, há dois tipos: as
neuroses atuais (angústia (falta de satisfação sexual) e neurastenia
(inadequada satisfação sexual, como a masturbação)) e as psiconeuroses (neurose
de transferência (deslocar a energia para outro objeto distinto do ego) e neurose
narcisista (psicoses, ou seja, quanto a libido recai sobre o próprio ego).
A “terapia”, na psicanálise, é a confissão
de pensamentos e associações que afloram espontaneamente na consciência.
Trata-se da famosa livre associação. A ideia é pouco a pouco desatar os “nós”
dos complexos reprimidos e atingir o nó principal, isto é, o complexo de Édipo.
A liberdade, no âmbito da terapia psicanalítica, é a tomada de consciência do
caráter implacável do determinismo, ou seja, de que somos em última instância
orientados inconscientemente pelas pulsões sexuais.
Id, ego e superego
A conhecida tríade freudiana – id, ego
e superego – é conhecida como “segunda tópica”, conforme mencionamos brevemente
acima. O id equivale ao inconsciente, e enquanto tal é assim que o
indivíduo deve ser considerado inicialmente ou primordialmente. É no id
que se encontram, claro, os complexos reprimidos e a “herança arcaica da
humanidade”.
Se o id é como o individuo deve ser
considerado, então como surge o ego? Ele surge porque a realidade e o id
estão em conflito, e o ego surge para mediar e satisfazer em parte o
id e em parte a realidade. O ego por um lado tem um aspecto inconsciente,
cuja “função” é a repressão enquanto mecanismo de defesa, e por um outro lado é
consciente e perceptivo. Freud fala muito pouco da racionalidade, então não
sabemos ao certo “onde” a localiza. Para ele, a racionalidade não passa de
associação de palavras, o que o põe em conformidade com a tradição nominalista.
Com o tempo, os valores dos pais e da
cultura são introjetados no psiquismo formando assim o superego. Trata-se
de uma espécie de “consciência moral”, contendo os ideais do ego e as
proibições, isto é, os dois tabus que mencionamos acima (incesto e parricídio).
O ego passa, então a ser, nas palavras de Freud, “escravo de três amos”: o id,
a realidade e o superego.
Para Freud, a vida psicológica humana é precária
porque sua tendência é retornar ao inorgânico, à morte, e isto é algo
incontornável, tornando a psicanálise interminável. Não há diferença ontológica
entre vida e morte e, consequentemente, não há diferença entre enfermidade e
normalidade. Na verdade, a enfermidade é a realidade fundamental. Melhorar o
homem é uma ilusão. Não há o que melhorar quando a vida é morte. Aliás, o
sentimento de culpa advindo primordialmente do complexo de Édipo é finalmente “resolvido”
na psicanálise: ela é uma forma pós-religiosa de superação do pecado, uma
verdadeira “metapsicologia”, a substituta da metafísica.
Este caráter mórbido e, digamos logo,
ocultista da psicanálise fica mais claro em sua forma lacaniana. Explique
Echavarría:
[Segundo Lacan], trata-se de assumir um papel antipedagógico [Echevarría contrasta o psicanalista com o psicólogo tomista] e pós-moral, que serve para que a pessoa se dê conta de que Deus está morto, e de que, em seu lugar, resta apenas o vazio, a própria morte, que é a fonte última da angústia. Isso já está presente em Freud, só que de modo relativamente oculto, latente, tácito, ao passo que, em muitas outras interpretações filosóficas da psicanálise, tal finalidade já se encontra bastante explícita, como é o caso de algumas formas de psicanálise existencialista e, sobretudo, de psicanálise lacaniana e pós-lacaniana (que é, do ponto de vista filosófico, pós-moderna), que interpretam corretamente o espírito da terapia psicanalítica tal como Freud o sentiu. [...] Segundo a (tácita) teoria do conhecimento freudiana, não há a possibilidade de relação real com o psicoterapeuta, porque não há possibilidade de sair da própria psique. Nesse sentido, Freud aproxima-se do idealismo: não se pode transcender as próprias imagens.
Nas palavras de Michel Onfray, “a
psicanálise é uma disciplina que pertence ao campo da psicologia literária, vem
da autobiografia de sue inventor e funciona às mil maravilhas para compreender
a ele, e só a ele. [...] A terapia psicanalítica é a ilustração de um ramo do
pensamento mágico: como tratamento, funciona no estrito limite do efeito
placebo”.
A psicanálise pós-freudiana
(1) Psicologia do ego: desenvolvida
por Paul Shilder, Anna Freud, Heinz Hartmann, Rudolph Loewenstein e Ernst Kris.
Haveria uma área no ego que estaria livre de conflitos, o que levou uma
aproximação com a psicologia acadêmica. Lacan condenava este tipo de psicanálise
por querer aproximá-la da mentalidade pragmática americana.
(2) Psicanálise das relações objetais:
desenvolvida por Melanie Klein, Donald Winnicot e Wilfred Bion. Estuda as
relações de objeto (vimos acima o que é um “objeto” para um psicanalista) na
primeira infância, o que inclui elucubrar sobre a relação do recém-nascido com
o seio da mãe.
(3) Psicologia do self: desenvolvida
especialmente por Heinz Kohut. É uma tentativa de refundar a psicanálise por
meio do conceito de self.
(4) Neopsicanálise: desenvolvida por
Karen Horney (https://avidaintelectual.blogspot.com/2022/12/a-personalidade-neurotica.html),
Harry Stack Sullivan, Franz Alexander e Erich Fromm. Estes autores mantêm a
importância do inconsciente e de suas formas de expressão, mas não aderem
estritamente às interpretações teóricas de Freud. Descobertas importantes e
interessantes foram feitas por eles.
(5) Jacques
Lacan. Por si só constitui uma escola à parte. Em
suma, empreende uma releitura de Freud, servindo-se da linguística estrutural
de De Saussure. Segundo Lacan, “a insistência [id] faz referência
à montagem do inconsciente pessoal em uma cadeia de significados que o
ultrapassa e na qual está integrado, que é a própria linguagem inconsciente. A ex-sistência
[ego] faz referência à exterioridade do inconsciente, que não é possuído
por um sujeito pessoal – mas é antes ele quem possui um indivíduo, que é
fruto de uma violência interpretativa dentro do horizonte da linguagem”. Portanto,
em Lacan a linguagem é um elemento de violência simbólico. Lacan é um
verdadeiro profeta da “verdade da não-verdade”, do irracional, do nonsense.
A busca da verdade é um inimigo da experiência da “autognose psicanalítica”.
O inconsciente em Jacques Maritain
Maritain (genial tomista dos graus do saber)
admitia a ideia de um inconsciente automático-surdo, formado na primeira
infância e composto de automatismos da parte sensitivo-apetitiva, mas por cima
do qual haveria um inconsciente espiritual-musical, do qual brotaria a
inspiração poética, em paralelo ao intelecto agente e à species
intelligibilis (que também são “inconscientes”, aliás).
Curiosamente, Jesus Cristo também tem este
inconsciente espiritual, mas no Seu caso é uma forma tão superior de consciência,
tão “supraconsciente” (visão beatífica), que Sua consciência humana não seria
afetada, funcionando como um total inconsciente. Às vezes Maritain se refere a
tal inconsciente espiritual como uma operação mental, como a famosa “intuição
do ser”, que pode ocorrer supraconscientemente na criança e no poeta, e conscientemente
no aprendiz de filósofo e no filósofo. Em todo caso, trata-se de algo fora e
acima do terceiro grau de abstração (vimos este grau no estudo sobre os graus
do saber).
A psicologia analítica de Carl Jung
Em linhas gerais, o que Jung fez foi
traduzir as doutrinas e práticas espiritas nos termos da psicologia profunda.
Entre outros espíritas, Jung cita Madame Blavatsky, a gnose antiga, a alquimia
e as religiões orientais (budismo, hinduísmo). Estão presentes influências
filosóficas como Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche e outros. Jung é muito
influente entre os adeptos do movimento New Age.
À diferença de Freud, Jung leva em conta,
além do inconsciente pessoal, o inconsciente coletivo. A totalidade da
psique, que inclui o inconsciente coletivo, é chamado de self. As
unidades dos complexos reprimidos do inconsciente coletivo não são os
complexos, mas os arquétipos. Não é simples entender o que são os
arquétipos porque o próprio Jung oscila ao explicá-lo. Parece que se trata de
uma forma a priori kantiana que estrutura a psique de tal forma a
reproduzir as mesmas imagens em diferentes culturas e indivíduos, e que tem
algum tipo de relação com o cérebro. Essas formas não são eternas, mas fruto da
marcha da história humana. Os símbolos, que seriam semelhantes entre diferentes
culturas e eras, são o resultado da síntese entre os arquétipos e a experiência.
Note que a psicologia funciona aqui como uma substituta da religião, já que
pretende explicar os fenômenos “noomênicos” como uma religião teísta o faria.
Os arquétipos, em Jung, funcionam como personalidades independentes, como “anjos”
ou “deuses” com razão e vontade próprias e distintas do ego consciente.
Esses arquétipos (a sombra, a anima, o sábio ancião etc.) são como espíritos
guias que introduzem o iniciado no mistério da psique. A imaginação ativa
é a técnica que, inspirada nas técnicas espíritas), coloca o psiquismo sob
as personalidades ocultas no inconsciente coletivo. Trata-se de um relaxamento
para um transe mediante um diálogo, que, através de imagens como mandalas, diminui
o controle racional e volitivo para, por fim, abandonar o paciente às forças
habitantes do mundo inconsciente.
Jung quer que os homens cheguem ao processo
de individuação, ou seja, que alcancem a plena consciência de sua
divindade. Para isso, é necessário que aceitem o mal ontológico (já
vimos algo sobre isso na gnose)
e alcancem, não a perfeição, mas a “completude”, assimilando todos os conteúdos
do inconsciente na consciência. Há arquétipos maus com os quais os homens têm
de aprender a conviver, isto é, a viver com seus “demônios”.
Por isso, para Jung Deus não é Trindade,
mas Quaternidade porque inclui o Demônio, o deus deste mundo, que às
vezes também é a mulher, a “mãe terra”, o Eterno Feminino. A psicologia
analítica é, assim, “um símbolo de uma busca interior de transmutação em deus
através da operação mágica do conhecimento oculto (a gnose)”, “de despertar a centelha,
tanto divina quanto diabólica, trancada no inconsciente. Assim como o
alquimista extrai da pedra suas propriedades ocultas, o psicólogo analítico
extrai o deus terreno ou o demônio encerrado nas profundezas da psique”.
Fonte: Martín Echavarría, Correntes de psicologia contemporânea, Editora CDB, Rio de Janeiro, Brasil, 2022.
