28 de outubro de 2025

A elite, a classe média e a ralé


O público leigo, ou seja, o público não intelectualizado, precisa de uma interpretação totalizadora – uma identidade nacional – que lhe explique o mundo social. Há muitos séculos a religião deixou de fazê-lo, seja por incompetência, seja por inapetência. Para Jessé Souza, assim como para Max Weber e Pierre Bourdieu, nosso mundo social é explicado por dois fatores: (1) a legitimação da ordem e (2) a reprodução dos privilégios de classe.

E o aspecto nuclear da legitimação e da reprodução da ordem social brasileira é a escravidão. É a escravidão que fomentou, e continua fomentando, a separação ontológica entre seres humanos de primeira e segunda classe que chamamos de “racismo”. O termo racismo, embora originalmente usado no contexto da “pureza racial”, continua sendo usado por Jessé Souza como o elemento que explica a distinção ontológica no Brasil. A diferença, agora, é que a “raça” dá lugar à “cultura”, o que confere ares de cientificidade a algo que, em verdade, oculta os verdadeiros processos históricos de aprendizado coletivo que estão por trás da ordem social vigente. Curiosamente, o próprio esforço do discurso politicamente correto é uma evidência da desigualdade ontológica a ser negada.

Segundo Jessé Souza, o principal intelectual, ou “figura demiúrgica”, por trás do racismo cultural é Gilberto Freyre. Foi ele quem levou o culturalismo vira-lata à condição científica por excelência. Foi ele quem relegou a identidade nacional não às virtudes espirituais, mas a meras virtudes corporais: sexualidade, emotividade, “calor humano”, “ginga”, hospitalidade etc. Freyre enxergava esses traços como algo essencialmente positivo, mas foi Sérgio Buarque de Holanda que os transformou em traços negativos.

Para o autor, o núcleo da desigualdade social é a socialização familiar. Nas classes média e alta, os pais, de maneira geral, são bem-sucedidos, ou pelos menos mais bem-sucedidos do que as classes baixas, na tarefa de transmitir aos filhos disciplina, pensamento prospectivo e capacidade de concentração. Sem estas qualidades, o melhor que os pais conseguem fazer é que seus filhos sejam analfabetos funcionais. Sem o hábito da leitura, o estímulo para a imaginação, o reforço da capacidade e da autoestima, a criança crescerá afetivamente ligada à ideia de que está destinada a ser trabalhadora desqualificada. Todos esses são hábitos silenciosos e invisíveis, mas que formam a condução racional da vida. “A prisão no aqui e agora tende a reproduzir no tempo a carência do hoje, e não a saída para um futuro melhor. São produzidos, nesse contexto, seres humanos com carências cognitivas, afetivas e morais, advindo daí sua inaptidão para a competição social”.

A saída desse ciclo só pode ser dada pela sociedade, que tem de se responsabilizar pelas classes esquecidas, abandonadas e humilhadas. Urge desmantelar a existência de uma classe de “sub-humanos”, a “ralé de novos escravos”, sobre as quais as demais classes podem se diferenciar positivamente. É a lógica do sistema de castas hindu, como mostrou Max Weber, e é a lógica da ralé brasileira. Não há um sentimento de culpa no exercício da violência material e simbólica contra os mais frágeis porque, afinal, são sub-humanos, escravos, indignos. Uma herança invisível do sistema de castas da escravidão. Segundo Jessé Souza, há quatro grandes classes sociais no Brasil:

(1) A elite dos proprietários

(2) A classe média (uma esfera composta de sujeitos privados com opinião própria e que pretendem vincular verdade e justiça)

(3) A classe trabalhadora semiqualificada

(4) A ralé de novos escravos

E há três capitais cujo acesso explicam as classes sociais: o capital econômico, o capital cultural e o capital social de relações pessoais. Para a classe média, cujo capital econômico é limitado e, ademais, externo, é necessário que ela desenvolva alguma virtude interior que justifique sua posição superior em relação às classes baixas: é a meritocracia. O membro da classe média não seria um privilegiado pela vantagem em que parte na competição social, mas ele supostamente “merece” a posição que ocupa. Ademais, como o capital cultural, essencialmente simbólico, é ele mesmo tratado como uma mercadoria, ou seja, de maneira rasteira e distorcida, isso por outro lado impede que a classe média estabeleça a união entre verdade e justiça que originalmente busca.

Eis o papel que desempenham as ideias de patrimonialismo (Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Francisco Weffort) e o populismo. A classe média acredita que o Estado é um patrimônio “público” e que o “privado” o usurpa pela “corrupção”. Por outro lado, acredita também que as ações assistencialistas são populistas porque manipulam as massas ao minar sua iniciativa e força de vontade. Mediante ambas as ideias, a classe média funciona como cadeia de transmissão – o capataz e marionete – da elite sobre as classes baixas. Sem acesso aos esquemas de pilhagem da elite, a classe média se vê como “virgem imaculada” e moralmente perfeita ao defender a classe alta, ao mesmo tempo que nutre ódio secular às classes populares.

As formas da classe média de perceber virtude são duas: (1) a dignidade do trabalhador útil e produtivo e (2) sensibilidade da personalidade expressiva. A meritocracia e o “vestir a camisa da empresa” (cujo expoente é o toyotismo japonês) nasce do ponto (1), e as expressões literárias e intelectuais, massificadas nas pautas dos anos 1960 (liberdade sexual, feminismo, casamento gay, aborto livre, consumo de drogas recreativas), nasce do ponto (2).

Como escapar das falsas certezas da classe média (seja ela de esquerda ou direita, não importa)? Jessé Souza explica:

[A classe média tradicional] tem menos contribuição para uma transformação da própria personalidade. Esta inclusive, a própria personalidade, não é vista como um processo de descoberta e criação. O distanciamento em relação a si mesmo e o distanciamento reflexivo em relação à sociedade exigem pressupostos improváveis. Daí que sejam raros, mesmo na classe média privilegiada.

Para que se perceba a vida como invenção, é necessário saber conviver com a incerteza e a dúvida, duas das coisas que a personalidade tradicional e adaptativa mais odeia. A convivência com a dúvida é afetivamente arriscada e demanda enorme energia pessoal. O maior desafio aqui não é simplesmente cognitivo, mas de natureza emocional. Procura-se, para evitar a incerteza e o risco, a segurança das certezas compartilhadas. São elas que dão a sensação de tranquilidade e certeza da própria justeza e correção. Andar na corrente de opinião dominante com a maioria das outras pessoas confere a sensação de que o mundo social compartilhado é sua casa.

Fonte: Jessé Souza, A elite do atraso, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil, 2025.