1. História da filosofia
É fundamental estudar a história da
filosofia porque ninguém pode se dizer “culto” sem sabê-la. Trata-se de estudar
as grandes criações mentais do espírito humano e formar um juízo correto a
respeito delas, seja evitando condenar o que não se disse, seja repetindo erros
já cometidos no passado.
A história da filosofia é a história da
luta do intelecto humano para atingir a verdade por meio da razão discursiva.
Como tomista, Copleston acredita que há uma philosophia perennis
atemporal que permiea a história e que tal filosofia é uma espécie de “tomismo
amplo”.
2. Pré-socráticos (um vs. múltiplo)
A Jônia logrou preservar o espírito das
civilizações mais antigas, enquanto no restante da Grécia reinava a barbárie e
o caos político. Foi ali, em Mileto, na atual Didim (costa turca do Mar Egeu),
que surgiu a filosofia, o exercício da reflexão racional. Egípcios e babilônios
empreenderam cálculos práticos e astrológicos, mas a ciência e o pensamento
enquanto tal foram criação do gênio grego.
Copleston acredita que a percepção da
mudança, aliada à intuição de que “algo” permanece, levou os jônios aos
primeiros passos da filosofia cosmológica. Esse “elemento primitivo”, essa
“unidade”, foi sua busca principal: os jônicos estavam convencidos de que há um
império da lei no universo. Suas soluções ainda eram muito simplistas pois não
eram capazes de distinguir matéria de espírito, ou seja, ora o “elemento
primitivo” era material, ora ideal.
Para Tales, considerado o “pai da
filosofia”, o “elemento primitivo” era a água, enquanto para Anaxímenes,
o ar (mediante condensações tende a solidificar-se e mediante rarefações tende ao
fogo, o que de qualquer forma reduz a qualidade à quantidade). Para Anaximandro,
trata-se da uma “substância sem limites”, do apeiron. De qualquer forma,
todas as doutrinas são “materialistas” no sentido de que apontam algum elemento
material como primitivo, mas não são materialistas stricto sensu porque não
eram capazes de distinguir matéria e espírito. Estavam, segundo Copleston,
“cheios da naiveté do espanto e da alegria da descoberta”.
Quanto a Pitágoras e a escola
pitagórica, houve uma combinação de espírito científico com espírito ascético-religioso.
Sua devoção à matemática, em especial em encontrar, como nas escalas musicais,
uma proporção em números à totalidade da natureza, é marcante. E não só isso:
para os pitagóricos, as coisas são números. É claro que disso surgiu uma
miríade de caprichos e devaneios. No entanto, seu cuidado para com a alma foi a
maior influência que Platão colheu dos pitagóricos.
Ainda no contexto do movimento e do
problema do um e do múltiplo, Heráclito proclamava a irrealidade da
realidade, ou seja, nada permanece, nada é estável. Em outras palavras, a
unidade está na diversidade, ou seja, o um só existe na tensão dos
opostos. Então, que não se diga que Heráclito ensinava que não há um “algo” que
mude. Esse um, para ele, é o fogo, que se alimenta de matéria heterogênea e é
feito da tensão, da luta, da dissipação, da ardência e do desaparecimento das
coisas. O mundo é um fogo eterno, e as diferenças do mundo são o próprio um.
Estamos diante, claro, de um panteísmo filosófico, e os estoicos
herdariam de Heráclito esta cosmologia panteísta (uma razão universal que tudo
ordena). O um-fogo é chamado de Deus, e cabe ao homem manter sua alma o mais
“seca” possível, ou seja, esforçar-se para que sua razão e consciência, que lhe
são “ígneos”, vençam o prazer e ascendam à vigília, sob pena de o mundo do
“sono” lhe tornar úmido e apagar sua “igniedade”.
Algo em contraste a Heráclito, Parmênides
ensinava que o um é, ou seja, que o devir, a mudança, é ilusão. Ora, se
algo vem a ser, então vem do ser ou do não-ser. Se veio do ser, então já era.
Se veio do não-ser, então não é, já que do nada nada vem. Note que a rejeição
do movimento implica em “ver” o que não é sensível, ou seja, é introduzir uma
distinção entre razão e sensação. Essa distinção será fundamental para Platão.
Mas mesmo aqui, Parmênides ainda é materialista porque a realidade que a razão
apreende é material, inclusive atribuindo-lhe finitude espacial esférica. Portanto,
não estamos no campo do idealismo dentro do qual Platão se inserirá, mas
podemos dizer que foi Parmênides uma espécie de “pai do idealismo”.
Um de seus discípulos, Zenão defendeu
Parmênides dos ataques pitagóricos mediante engenhosas reductiones ad
absurdum. Por exemplo, imagine uma linha. Ou ela tem magnitude, ou não tem.
Se tem magnitude, será infinitamente divisível. Se não tem magnitude, não
existe. Zenão mostra, assim, que os que zombam de Parmênides são também dignos
de serem zombados. O mesmo tipo de raciocínio absurdo pode ser feito quanto ao
som, ao espaço, ao movimento etc. No final das contas, o que indicou Zenão é que
as quantidades precisam ser contínuas para dar cabo dos absurdos que ele
apresentou.
Empédocles
pode, portanto, ser visto como um intermediador entre Heráclito e Parmênides. Os
objetos são uma mistura dos quatro elementos (terra, água, ar, fogo), os quais
não vêm a ser nem desaparecem. Antes há forças físicas e materiais ativas
(amor/harmonia, ódio/discórdia) que os unem. Leucipo e Demócrito,
notórios atomistas, levaram o pensamento de Empédocles adiante concebendo
infinitos e indivisíveis átomos, que se movem no vácuo. Os atomistas
nunca explicaram o que moviam os átomos e que força os unia. Tal explicação
puramente mecânica da realidade ressurgiu na era moderna no âmbito da
física-matemática. Em particular, Demócrito ensinava que as sensações têm
natureza mecânica, isto é, os objetos emitem “eflúvios” ou “imagens” compostas
de átomos que se imprimem na alma, ela também composta de átomos. As diferenças
qualitativas não estariam nas coisas, mas nas imagens (não há qualidades
secundárias, portanto). Por conseguinte, todas as sensações são falsas, já que
nada nelas corresponde à realidade. Curiosamente, Demócrito advogava a
felicidade como o acúmulo de gozo e a minimização de problemas, alcançando-se
assim uma “alegria” da alma que corresponde à saúde do corpo. Ora, mas se os
objetos e almas são um conjunto de átomos, como é possível postular a liberdade
ética com tal determinismo atomista? Anaxágoras, por sua vez, não
concorda com Empédocles e diz que os elementos últimos não são os famosos
quatro supracitados, mas são os materiais cujas partes são qualitativamente
iguais ao todo (p.ex. ouro). Os objetos do cotidiano são compostos de “uma
porção de tudo”, ou seja, todos os elementos primordiais estão nos objetos,
apenas que um deles predomina em relação aos demais nos diversos objetos. A
grama se transforma em carne porque as partículas de carne passaram a
predominar sobre as partículas de grama. E a força que mantêm os elementos
unidos é o nous ou mente, um princípio infinito e autogovernado, que não
se mistura com nada, embora ocupe espaço. Eis o princípio espiritual e
intelectual, embora ainda tímido e confuso.
3. Sócrates e o período socrático
Do foco no objeto, cujos frutos foram
incertos – além de prolongado convívio com outros povos –, os filósofos gregos voltaram-se
ao sujeito. Por isso o sofismo é caracterizado pela civilização e
costumes humanos, ou seja, pelo microcosmo, por temas menos especulativos e
mais práticos, em especial a retórica, ou, jocosamente falando, “a arte
de ensinar os homens a fazer o injusto parecer justo”. Protágoras ficou
conhecido pelo dito “o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são o
que são, daquelas que não são o que não são”; em outras palavras, todos os
homens têm a mesma tendência ética, mas os Estados comportam variedades
específicas da lei de acordo com as circunstâncias vigentes. Não há aqui um
clamor ao relativismo, mas, pelo contrário, à tradição e à autoridade. Pródico
ensinava que na origem da religião os homens adoravam o sol, a lua, os rios,
lagos etc. como deuses. Hípias, um polímata, ensinava que a lei
frequentemente forçava o homem a agir contra a natureza. Ao contrário de
Protágoras, Górgias sustentava que tudo é falso porque ou é eterno (o
que é impossível) ou teria vindo-a-ser (o que também é impossível, acreditava
ele). Ademais, o conhecimento também é uma ilusão porque se o ser está em duas
pessoas ao mesmo tempo, como é possível se elas são diferentes uma da outra?
Admitindo a absurdidade da filosofia, dedicou-se à retórica.
Quanto a Sócrates, Copleston admite
como mais verossímil a versão de que Platão pôs em sua boa a teoria das ideias.
De qualquer forma, Sócrates foi inegavelmente o pai do uso dos argumentos
indutivos e das definições universais, ou seja, da busca dos conceitos fixos.
Não que ela tenha teorizado a própria indução lógica, mas fez uso da dialética
(ou simplesmente “conversa”, ou, tecnicamente falando, “maiêutica”, ou seja, como
uma “mãe” que gera ideias verdadeiras na mente alheia), que partia de
definições menos adequados às mais adequadas e universais (é a indução). Mas
não nos enganemos: Sócrates não buscava apenas a verdade em si, o que
certamente já é algo louvável, mas também a “vida reta”.
A sua “ironia”, pois, a sua profissão de ignorância, era sincera; ele não sabia, mas queria descobrir, e queria induzir os outros a refletir por si próprios e dedicar verdadeira meditação à obra supremamente importante de cuidar de suas almas. Sócrates estava profundamente convencido do valor da alma, no sentido do sujeito pensante e volitivo, e viu claramente a importância do conhecimento, da verdadeira sabedoria, caso se quisesse dar a atenção devida à alma.
Copleston aponta em Sócrates uma tendência
à superintelectualidade, isto é, uma tendência a acreditar que o homem, quando sabe
o que é certo, certamente irá fazer o que é certo, como se
conhecimento e virtude fossem uma e a mesma coisa. Bem, isso é falso, como bem
apontou Aristóteles em sua crítica a Sócrates. O médico aprendeu medicina, mas não
necessariamente o justo aprendeu o que é justiça. [Martín Echavarría acusa os adeptosda REBT/CBT de assumirem tal postura socrática robótica]. A alma obviamente conta com
partes irracionais, e o consentimento da vontade sofre influência não somente
do intelecto, mas dos apetites sensíveis da alma. De qualquer forma, Copleston
não deixa de notar que a ética de Sócrates permanece uma das glórias perenes da
filosofia grega.
Por fim, cabe comentar acerca de alguns
filósofos que, influenciados pessoalmente por Sócrates, continuaram seu
pensamento em uma direção muito particular. São, por isso, chamados de
socráticos menores. Euclides de Mégara (não confundir com o famoso
matemático) concebia o um com o bem, identificando-o com Deus e a razão. Diodoro
Crono identificava o atual e o possível, e disso extraía uma curiosa
conclusão: só o atual é possível; então, por exemplo, se dissemos que é impossível
que o mundo não exista, então jamais foi possível que o mundo não existisse. Antístenes,
um dos filósofos cínicos (Copleston os inclui entre os socráticos menores), foi
discípulo de Górgias antes de voltar-se a Sócrates. O traço que herdou de
Sócrates foi sua independência da opinião pública vigente, seu desprendimento
do aplauso alheio. Isso estaria muito bem não fosse por um detalhe: a ânsia de
Antístenes por independência o fez desprezar a ciência e a arte, dedicando-se
exclusivamente ao desprendimento dos desejos e à libertação das carências. Sócrates
também zombava da opinião popular, mas não o fazia por ostentação, mas por fidelidade
à verdade. Diógenes de Sinope, famoso cínico, chamava-se de “cachorro”
(daí o nome “cínico”) e defendia a vida dos animais como um modelo a ser
seguido, inclusive partilhando esposas e filhos e pregando o amor livre,
zombando das convenções. Aristipo de Cirene defendia a ideia de que somente
as sensações dão conhecimento certo e, portanto, o objetivo da vida é obter
sensações prazerosas. Sócrates de fato ensinava que a felicidade é o motivo da
virtude, mas não que o prazer seja o caminho exclusivo à felicidade.
4. Platão
a. Epistemologia. Conhecimento não é
simplesmente percepção pelo simples motivo que o conhecimento usa termos e
expressões que não são de maneira alguma perceptíveis (por exemplo, uma
miragem, objetos matemáticos, o caráter de uma pessoa etc.). Ademais, a
percepção sensível necessita da reflexão e do juízo para que faça sentido (por
exemplo, os trilhos de uma via ferroviária perceptualmente convergem, mas mediante
a reflexão sabemos que não). A percepção sensível capta somente aquilo que vem
a ser, não aquilo que é. É por isso que um juízo pode ser verdadeiro
sem que tal verdade dependa de alguém que forme o juízo. Por outro lado,
analisar as partes de uma crença não a transforma em conhecimento (p.ex. enumerar
exaustivamente as partes de uma carroça não significa conhecê-la). O
conhecimento verdadeiro tem de ser estável, permanente, fixo, capaz de ser
apreendido por uma definição clara e científica, por uma definição universal.
Os famosos níveis de conhecimento de
Platão, elencados na República, são esquematicamente os seguintes:
No lado esquerda da linha central estão os estados da mente, enquanto no lado direito estão os objetos que lhes correspondentem. Ao mesmo tempo, na parte superior temos o estado de episteme (conhecimento), que se preocupa com arquétipos, enquanto na parte inferior temos a doxa (opinião), que se preocupa com imagens. Por exemplo, se alguém diz o que é a justiça com base em casos particulares então estará em estado de doxa, ao passo que se explica com base na apreensão da justiça em si mesma, se erguendo à forma, à ideia, ao universal, então estará em estado de episteme (ou gnosis). Mas há duas subdivisões em cada estado: a eikasia se refere à imagem do que é, enquanto a pistis se refere aos objetos reais, aos “animais ao nosso redor, e todo o mundo da natureza e da arte”. A dianoia é o pensamento empreendido com a ajuda da imitação dos segmentos inferiores e que começa por hipóteses e termina numa conclusão (é claro que aqui Platão se refere à matemática e à geometria quando, por exemplo, fala de dois círculos que se interseccionam, que evidentemente são círculos inteligíveis, não sensíveis). Por fim, a noesis usa as hipóteses da dianoia para dialeticamente (ou seja, sem imagens) ascender aos primeiros princípios e, por conseguinte, “destruir as hipóteses”. Toda esta ascensão, desde as imagens até os primeiros princípios, Platão a ilustra no famosíssimo mito da caverna (leia-o aqui)
b. As formas platônicas
Platão explica na República que toda
pluralidade de coisas individuais implica em uma ideia ou forma correspondente,
que é a natureza captada pelo conceito. A realidade, portanto, não é captada
propriamente pelos sentidos, mas pelo pensamento. As formas são descobertas,
não inventadas, e mais: todas as formas, ideias, essências, têm de ter uma
essência genérica suprema. De qualquer forma, Copleston entende que Platão,
embora tenha usado uma linguagem espacial para referir-se às formas, não queria
dizer que elas existissem num espaço separado das coisas. Platão, aliás,
frequentemente faz isso: usa uma linguagem “mítica” por meio da qual não
pretende que seja tomada com absoluta exatidão.
Como bem observou Constantine Cavarnos em
seu Orthodoxy and Philosophy,
Platão não indicava que as formas existam na mente divina, mas no Timeu lemos
que tampouco existem no Demiurgo. Eis porque apontar em Platão algum teísmo
seria temerário.
Na República o bem é comparado ao sol, cuja
luz torna os objetos visíveis, lhes conferindo excelência, valor e beleza. Assim
também é o bem, que não é apenas um princípio epistemológico, mas ontológico,
um princípio do ser. O bem na República é idêntico à beleza do Banquete.
Portanto, o absoluto é ao mesmo tempo imanente (pois as coisas o materializam,
o “copiam”, o manifestam) e transcendente até o próprio ser. As metáforas de
participação (methesis) e imitação (mimesis) precisamente indicam
essa distinção entre absoluto e relativo, mas ao mesmo lhes conferem certa comunicação.
Mas como explicar que algo transcenda absolutamente os objetos de conhecimento e
ao mesmo tempo “esteja” neles? Platão não escreveu nada sobre a doutrina
integral do Um. Os neoplatônicos mais tarde introduzirão a emanação como
explicação (a “centelha divina”), mas é inaceitável deduzir que tal doutrina
encontrava-se originalmente em Platão. O mais provável, raciocina Copleston, é
que Platão tinha em mente que os ideais de justiça, temperança etc. estejam
fundados no princípio absoluto do bem, mas não parece possível afirmar que a
razão divina é o “lugar” das ideias.
Resta tratar de um assunto espinhoso: a
relação das formas com os números. Copleston – e estou plenamente de acordo com
ele nisso – não esconde seu aborrecimento em lidar com isso porque se trata do “tema
mais infeliz” da filosofia de Platão. Em suma, o motivo de Platão para
identificar as formas com números parecer ser o de encontrar o princípio de
ordem do misterioso e transcendental mundo das formas. É como se houvesse
um esquema por trás da inteligência dos corpos naturais. Os corpos não “são”
números, mas “participam” dos números porque, claro, comportam um elemento
contingente que não tem nada de “matematizável”. Platão explica, de maneira um
tanto críptica, que há uma tríade de números que provê a proporção dos
triângulos que compõem o mundo corporal: no caso do triângulo isósceles é 1, 1 e √2, e no caso do triângulo escaleno é
1, √3 e 2. Observe que há em ambos um elemento irracional que precisamente
expressa a contingência nos objetos naturais. A “ilimitação” da irracionalidade
parece se identificar com o elemento material, o elemento de não-ser, presente
em tudo o que vem a ser. Copleston identifica certo casamento entre o idealismo
e a pan-matematização platônicos: ambos se apoiam no sentido de que a
matemática ajuda a “elevar” o pensador para encontrar a verdadeira realidade e
ser da natureza no mundo ideal.
c. A psicologia platônica
Platão é claramente um dualista: a alma é
distinta do corpo, embora ambos se comuniquem. Em seus diálogos, por exemplo, encontramos
a admoestação a rejeitar certos tipos de música para que não prejudiquem a alma,
a afastar-se de hábitos corporais viciosos para que não escravizem a alma.
A alma seria tripartite: partes racional,
irascível e apetitiva, essas duas perecíveis. Embora no Fedro e na República se
diga que a alma como um todo sobrevive, parece provável que só a
racional sobreviva efetivamente (as demais
partes permanecem como potencialidades).
Por que Platão afirma a natureza tripartite da alma? Principalmente em razão do fato evidente do conflito interno da alma. No Fedro ocorre a célebre comparação na qual o elemento racional é relacionado a um cocheiro, e os elementos irascível e apetitivo a dois cavalos. Um cavalo é bom (o elemento irascível, que é o aliado natural da razão e “ama a honra com temperança e modéstia”), o outro é mau (o elemento apetitivo, que é “amigo de toda revolta e insolência”); e, enquanto o cavalo bom é facilmente dirigido de acordo com os comando do cocheiro, o cavalo mau é indisciplinado e tende a obedecer à voz da paixão sensual, de maneira que precisa ser detido com o chicote.
d. Ética
Platão é eudemonista, ou seja, sua ética é
voltada à busca do mais alto bem, isto é, da felicidade. E em que consiste a
felicidade para Platão? Consiste no desenvolvimento da personalidade enquanto
ser racional, no correto cultivo da alma, no bem-estar geral e harmonioso da
vida. Platão admite, claro, que a satisfação do desejo, desde que sejam desejos
inocentes e usufruídos com moderação, é parte da felicidade. No entanto, os
mais elevados prazeres são aqueles que não são antecedidos de dor, ou
seja, dos prazeres intelectuais.
O summum bonum ou felicidade do homem inclui, claro, o conhecimento de Deus – o que é óbvio, já que as formas são as ideias de Deus; contudo, se o Timeu for tomado de maneira literal e se supor que Deus está separado das formas e as contempla, a contemplação das formas pelo próprio homem, que é um componente integral de sua felicidade, o tornará similar a Deus. Mais ainda, homem algum poderá ser feliz a menos que reconheça a ação divina no mundo. Platão pode dizer, por conseguinte, que a felicidade divina é o padrão da felicidade do homem.
Diz Platão, portanto, que “os deuses
devotam cuidado àquele cujo desejo é se tornar justo e ser como Deus, tanto
quanto pode o homem alcançar a semelhança divina através da busca da virtude”. No
entanto, somente o filósofo pode ser virtuoso porque somente ele detém o
conhecimento necessário do que é o bem para o homem. É ele, o filósofo, que
possui o conhecimento exato para nos guiar à virtude. Por isso o homem vulgar
escolhe o mau: ele não sabe que o mau lhe prejudica e, assim, eleva determinado
aspecto do mau, mesmo sabendo que em si é mau, à condição de bem e a ela se
apega.
e. Política
Platão ensina que não há uma “moral estatal”
acima da moral individual. O homem, por ser um animal social, se organiza
socialmente e tal sociedade, portanto, é uma instituição “natural”. Ora, se é
assim, as “morais” estatal e individual são uma e mesma moral: a moral humana.
Eis por que Platão entendia que era coisa imperativa determinar a verdadeira
natureza e função do Estado.
Na República, em suma, Platão estabelece
três classes no Estado ideal: artesãos na base, a classe auxiliar ou militar
logo acima e os guardiões (ou guardião) no topo. A família e a propriedade
privada devem ser abolidas nas duas classes mais altas para o bem do Estado. Dada
a evidente dificuldade em organizar tal Estado, “Sócrates” propõe como medida
mínima investir o rei-filósofo de poder: é ele, que conhece o mundo das formas,
que poderá tomá-las como modelo para a formação do Estado. A educação daqueles
escolhidos como governantes terá por base a harmonia musical, a ginástica, a
matemática e a astronomia. A matemática em especial, como já dissemos acima,
terá a função de atrair o educando à verdade para aque adquira o espírito da
filosofia. Contudo, a matemática é um mero prelúdio à dialética, cujo fim será
alcançar a visão intelectual com o auxílio exclusivo da razão. O Estado, vê-se,
não serve a uma classe, mas para o guiamento da vida reta: diz Platão que “todo
o ouro que está sob e sobre a terra não é bastante para trocar pela virtude”.
Até mesmo a classe escrava, inferior às três classes que mencionamos, deve ser
tratada com ainda mais justiça e, explica Platão mui inteligentemente, pois
quem reverencia a justiça e odeia a injustiça descobre que a essa classe se
pode ser facilmente injusto.
Fonte: Frederick
Copleston, Uma história da filosofia, Editora Ecclesiae, Campinas, SP,
Brasil, 2021.